domingo, 9 de novembro de 2008

“Rabanadas, meu Deus”!

Pediram-me para escrever uma crónica, para uma edição de Natal, focando aspectos relacionados com a alimentação. Pois é! Às tantas estavam à espera do “nutricionalmente” correcto. Mas, Natal é Natal, e por isso...

Comer constitui a principal preocupação e actividade dos seres humanos, ou melhor, de todas as espécies desde o início dos tempos. Os nossos antecessores viram-se à nora para arranjar comida. Não falo apenas dos que nos precederam nas épocas mais remotas, mas também dos mais próximos. A miséria e a fome perseguem-nos, provocando ansiedade, e, quando se materializam, chegam a ser responsáveis pelos comportamentos mais selvagens que se podem imaginar. Daqui se pode inferir que, quando encontravam alimentos, os nossos antepassados comiam à tripa forra, porque não sabiam qual seria a próxima refeição. Ninguém consegue imaginar um troglodita, um Cro Magnon, ao acordar de manhã, na sua caverna, ter à disposição um pequeno-almoço nutritivo, respeitando as regras dietéticas tão vulgarizadas hoje em dia. Qual quê! Quando encontrava comida devia ser uma festa. E que festa! Com o tempo, aprendemos a produzir alimentos e a compreender os ciclos da vida e da morte. A domesticação dos vegetais e dos animais propiciou meios fabulosos responsáveis por inúmeros fenómenos, nomeadamente o nosso sucesso cultural.
Hoje, pertencemos à primeira ou à segunda geração que não sofre fome. A situação inverteu-se de tal forma ao ponto dos excessos alimentares terem sido transformados na regra geral, com todo o cortejo de problemas que os acompanham: diabetes, obesidade, hipertensão, enfartes, acidentes vasculares cerebrais e muitas formas de cancro. Uma tragédia, dizem muitos responsáveis. Daqui provém os constantes e intensos alertas para alterarmos os hábitos, para comermos racionalmente, para não cometermos desvios, para ter uma alimentação mais equilibrada, para não sermos tão sedentários. Enfim, uma catrefada de recomendações e de apelos. É fácil ditar os tais conselhos, mas já não é tão fácil segui-los, porque, interiormente, existe um “bichinho”, muito bem escondido nas profundezas do nosso cérebro, a empurrar-nos para os alimentos como um camelo por água ao fim de uma longa travessia do deserto. Obviamente que temos de dar no toutiço do tal bichinho e não ir nas suas cantigas, porque o perigo da superalimentação é uma realidade, facto que qualquer um pode verificar, dentro de casa, no emprego ou na rua. Basta olhar para as pancinhas que se pavoneiam orgulhosamente por aí. Mas tal como já tinha dito no início, quando o nosso avô e a nossa avó das cavernas encontravam comida era uma festa dos diabos. Quando mais tarde, os nossos avós mais novos, conseguiam ter boas colheitas, a alegria não era menor. Neste caso, festejavam a natureza, agradecendo a sua generosidade com festas, alegria e barriga cheia. Rapidamente, o homem associou alimentos a alegria, e decidiu pagar o tributo à natureza, e aos deuses, com comida e festas.
É comum, em todas as civilizações e povos, que os principais acontecimentos da vida pessoal, da vida familiar, da vida comunitária e da vida da natureza serem comemorados com comida e bebidas. Sem comida e bebidas nada feito.
O homem sabe que é pequenino e muito frágil. Também aprendeu que existe um ciclo de vida e morte. Sabe que a sua existência depende do ciclo da natureza. Que todos os anos o Sol morre e nasce. Sem Sol não há vida. Assim, logo que começa a levantar-se no solstício do Inverno, corre a comemorar o seu nascimento com o mesmo entusiasmo e alegria quando nasce um filho seja o seu ou o de Deus. Come e bebe em sua honra.
O Natal é um dos períodos mais importantes da vida humana. Simboliza uma vida nova, é símbolo da esperança, transforma-se num ventre capaz de gerar melhores dias, desperta a solidariedade, apaga as más memórias, acaricia as tristezas, e humaniza-nos com o calor emanado do Sol de Inverno, da fé, da família e dos amigos. Perante estes factos, em que a alegria acaba por estar presente, mesmo nos que sofrem, temos o dever de o festejar, comendo e bebendo. Cada um fará o que entender e, se ultrapassarem os limites – mas não muito! -, nada a reprovar ou a apontar. Até os doentes podem cometer algumas asneiras. As regras dietéticas ficam para depois. Eu também vou cometer alguns desvios! Nesta época, empanturrava-me com figos secos, filhoses, frutas secas, nozes, pinhões, bolo-rei e rabanadas. Rabanadas, meu Deus! Como vou passar este ano sem as minhas rabanadas? Ai não passo! Já estou a idealizar uma meia rabanada com muito pouco molho. Sento-me, vou olhá-la, toco-a suavemente com o garfo e, ao depositá-la na boca, deixo-a desfazer-se lentamente de forma a que todas as minhas glândulas gustativas originem uma explosão de sentimentos e de belas lembranças da vida, e de outros Natais, louvando o nascimento do Sol e do Menino com o firme desejo de que os seres humanos sejam mais humanos e mais felizes...

2 comentários:

  1. Anónimo00:21

    Rabanadas? Ouvi falar em rabanadas? Caro professor, muito obrigado pelo seu texto e pelo educativo que ele contém mas... Natal é uma vez por ano e como consigo eu resistir a rabanadas... como? O colesterol e afins? Bem, em Janeiro penso no assunto! :-)

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  2. 1532, François Rabelais publica o seu romance "Pantagruel Rei dos Dipsodos", talvez embalado pelo sucesso que o livro conheceu, o autor publica de seguida "Gargântua" pai de Pantagruel. 441 anos após, estreia-se no cinema francês "La Grande Bouffe" avec messieur Marcello Mastroianni. Neste filme baralhava-se o pleno abuso gastronómico, com as abundâncias sexuais, tudo mexido e remexido numa amalagama estonteante e nauseante que, suponho, seria porventura intencionalmente provocante.
    Aposto que o Sr. Professor já reflectiu acerca da ligação entre entre sexo e alimentação e se o bichinho que nos compele ao "morfanço", não tem uma secreta cumplicidade, ou paixoneta por uma bichinha marota conhecida lá no meio por líbido,e que para disfarçar a gula se permite desculpar com o efeito afrodisíacos de alguns alimentos!?
    Hmmm... parece-me que neste universo que nos compõe, andam uns bichos muito marotos.
    ;)))

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