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segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

"Sabes que dia é hoje?"

Não me posso esquecer. É impossível. Ainda tenho razão e uma memória que me obriga amiúde a mergulhar no passado, alimentando-me de histórias, de carícias, de imagens, de sons, de silêncios, de esperanças e de muito amor. Ouvi da sua boca pela primeira vez quem era o São Brás. Um santo, médico, bispo, que fez milagres com as doenças da garganta. Ela sabia o milagre da criança aflita com uma espinha espetada na garganta que não conseguia respirar, quando, ao passar por ela, a mãe pediu ao santo para a salvar. São Brás, sem qualquer instrumento, retirou da garganta uma enorme espinha que a ameaçava de morte. Deliciava-me com esta história e comecei a prestar um profundo respeito e admiração pelo santo. Talvez tenha sido o primeiro santo cuja data decorei e nunca mais esqueci, três de fevereiro. Todos os anos, enquanto fui criança, ouvia deliciado a mesma história e não deixava de colocar a minha pequena mão na garganta como a querer tirar uma espinha imaginária, embora já tivesse tido alguma experiência da incomodidade provocada por uma ou outra, pequena, claro.
Perguntei-lhe por que é que a mãe não lhe tinha dado uma pequena bola feita de miolo do pão para engolir e assim tirava a espinha. Era o que fazia comigo. Dizia que naquele caso a espinha, sendo muito grande, e estando espetada profundamente na garganta, não podia ser retirada dessa forma. Eu ouvia, fascinado, a história, afagando a garganta como se estivesse a sentir a maldita espinha. Depois vinha a pequena festa, pequena mesmo, mas mesmo assim bonita, a que não faltava os beijinhos e os abraços de parabéns. Era o dia do seu aniversário. Todos os anos ouvia a lenda do São Brás. Depois, mais tarde, já não lhe pedia para me contar novamente a história. Não precisava de a ouvir da sua boca, ouvi-a mentalmente, vezes sem conta sem deixar de afagar a garganta. Quando não estava com ela telefonava-lhe e começava a conversa dizendo, sabes que dia é hoje? É o dia do São Brás. Imagino que deveria estar a sorrir. A seguir dava-lhe os parabéns e um beijinho por mais um aniversário. Agradecia e dizíamos as trivialidades próprias do dia. Continuámos com este ritual durante muitos anos. Mesmo quando a cabeça começou a render-se ao inevitável, nunca deixou de ter a lucidez suficiente e uma explosiva alegria nesse dia que começava sempre com a mesma frase, sabes que hoje é o dia de São Brás? Ria-se. Sim, nos últimos anos ouvia-a rir-se do outro lado sempre que lhe lembrava o santo. Mesmo no último ano em que fez anos, não deixei de lhe dizer, sabes que dia é hoje? Respondeu-me: - Sei filho. Sei. É o dia de São Brás? - É! Uma pequena gargalhada, ou algo similar, saiu-lhe da garganta como se estivesse abençoada pelo santo. 
Hoje é o dia de São Brás. Já não lhe posso perguntar, sabes que dia é hoje? É o dia do santo, cuja lenda deverá ter sido a primeira, ou uma das primeiras, que fixei e que todos os anos, neste dia, gostava de a ouvir pela boca minha mãe.
- Sabes que dia é hoje?
Oiço, finjo ouvir, gostava de ouvir a resposta, é o dia do São Brás. Entretanto afago com a mão a garganta como fazia em pequeno...

3 comentários:

Bartolomeu disse...

Que bom e que conforto se sente, ao recordar aqueles mais amamos e que mais nos amam, apesar de alguns, estarem fisicamente ausentes.
À uns anos, um dos meus filhos, ainda pequeno, espetou uma espinha na garganta. Nunca me sucedeu mas pude perceber que a situação, para além da dor, provoca algum pânico. Recorri imediatamente à clinica mais próxima onde foi prontamente assistido por uma médica ainda novita. A moça sentou-o numa cadeira, colocou uma luz fortíssima muniu-se de uma pinça comprida e de uma espátula mas, chegar à espinha é que não conseguia. Depois de várias tentativas frustradas, decidiu pedir a ajuda a um colega mais velho. O colega veio, colocou os óculos meia-lua, observou, pegou nos mesmos utensílios, tentou uma, duas, três vezes e sentenciou; vai ter de levar o menino ao hospital, aqui não temos os meios necessários para extrair a espinha. Estava o Sr. Dr. a acabar de proferir a sentença, entra no consultório um enfermeiro já entrado na idade e pergunta: então o que temos aqui? O Sr. Dr. não lhe respondeu, voltou as costas e regressou para onde tinha estado, a medica novita, um pouco atrapalhada esclareceu-o da situação. Então, o Sr. Enfermeiro, pediu licença, pegou numa gaze, disse ao miúdo para deitar a língua de fora; assim que ele deitou, o Sr. Enfermeiro segurou-lha com a gaze, puxou, a garganta veio atrás, e a espinha quase que apareceu ali mesmo à mão de semear, bastou pegar nela com a pinça e, em 2 segundos o miúdo estava livre do tremendo pesadelo.
Não lhe perguntei o nome, mas é muito provável que se chamasse Brás... com toda aquela simplicidade, só podia.
;)

Suzana Toscano disse...

Como o compreendo, caro amigo. Passado o grande choque do desgosto, conseguimos felizmente ir "reconstruindo" os laços, conformando-nos com o imaginário que nos traz de novo para perto o que já não podemos alcançar. AO menos isso. Um abraço.

Catarina disse...

A história do Touro Azul é a história que me recordo há muitos anos e todos os anos porque tb a conto muitas vezes. Ainda hoje me perguntaram: "Lembra-se da história do touro azul que nos contou há dois anos? Ontem à noite pensei nesse conto, pode-nos contar outra vez? Quando foi que leu essa história?" Expliquei. "Conte-nos, por favor!" Não, hoje não, mas amanhã conto.