sábado, 5 de novembro de 2022

Clara

Adoro escrever. Preciso de sonhar e de dar largas à imaginação mesmo na mais estranha solidão. Vivo sem compreender a vida. Sou um saco de confissões, de desejos, de medos, de terrores, de amores, de ilusões, de doces e de alegrias. Mesmo num dia banal encontro sempre motivos de reflexão. Os seres humanos são verdadeiros exemplos de saber, de emoções, de solidariedade e de esperanças a par de muita dor, do sofrimento da alma e até da morte anunciada.
A senhora, com mais de quarenta anos, pediu-me um esclarecimento. Tinha tido recentemente uma filha e “perdeu” a visão. – Acha que foi da gravidez? – Foi de repente? – Foi. – Mas é só para o perto, não é? – Sim, porque ao longe continuo a ver bem. Sorri. Olhei para os exames e comprovei défice de visão apenas para o perto. Nada de especial. Depois expliquei-lhe que era natural a diminuição da acuidade visual com a idade. Uma mera questão ótica, na medida em que o “formato” do olho se altera com a idade, tal como acontece com o corpo. Tentei explicar que o facto de ter estado grávida, e as alterações decorrentes da mesma, poderão ter tido alguma responsabilidade no assunto, mas que não era sinónimo de gravidade, além de que a diminuição da visão ao perto tem a característica de ser quase abrupta. - A idade explica o assunto. – Mas há pessoas que são muito mais velhas do que eu e continuam a ver sem problemas. – Pois! Cada caso é um caso. Às tantas muitas dessas pessoas não “precisam” dos olhos para ver ao perto e nem dão conta disso. Sorri. – Não é o meu caso. Retornei ao tema da gravidez. – É o primeiro filho? – Sim. Nem imagina o “esforço” que tive para engravidar. Mais de dez anos em tentativas e tratamentos. Sorri e dei-lhe os parabéns. Logo de seguida perguntei o nome. Teve uma menina. – Como se chama a sua menina? – Clara. – Lindo nome. Parabéns. Um nome pouco frequente nos dias de hoje. Antigamente ainda o usavam, depois parece que se “esqueceram”. Digo isto, porque habitualmente pergunto às senhoras os nomes dos filhos. Uma atitude que considero simpática e que é bem vista pelas trabalhadoras. – Ainda há pouco, no decurso de um exame a uma senhora brasileira, que veio para Portugal com a família, disse-me que a sua  menina também se chama Clara. Dei-lhe também os meus parabéns, tanto mais que os brasileiros são useiros em nomes por vezes muito peculiares. Sorriu. – Olhe, senhor doutor. Nomes tínhamos nós há muitos anos, fosse rapaz ou rapariga. O nosso sonho era um dia usá-los. Nomes nunca nos faltaram. 
Felicitei-a novamente. Desejei-lhe saúde, bom trabalho e as maiores felicidades para a Clara. – Olhe. Não sei se sabe, mas Santa Clara, além de ser padroeira da fala, também é padroeira das doenças visuais. – Ai é? – Sim. Não é só a Santa Luzia. Sorriu e saiu embrulhada  num pouco de felicidade. 
Quando saiu, recordei uma conversa tida há muitos anos com a minha avó. Era muito pequeno. Contou-me que o meu pai falava muito pouco ou quase nada até aos cinco anos. Tiveram que fazer uma promessa à Santa Clara para lhe dar a fala. O que é certo é que a partir daquela altura começou a falar quase ininterruptamente durante o resto da vida, até quase aos noventa e um anos! O meu pai nunca estava calado, apenas quando dormia. Às vezes dizia-lhe: -  A avó fez uma grande asneira, nunca devia ter feito a promessa de levar de pedir à Santa Clara a fala para ti. Sorria e voltava a falar como se não ouvisse.