terça-feira, 30 de novembro de 2004

Connaught Place



A fotografia foi tirada há dias em Connaught Place no centro de Nova Deli. Mas poderia ter muitos outros cenários. Poderia ter sido tirada em outras paragens da Ásia. Ou na África devastada pela guerra ou depauperada pela corrupção. Na América do Sul...
Ao longe distinguiam-se as silhuetas e o movimento de crianças e de animais. Julguei tratar-se de um parque infantil naquela que é uma das áreas mais cosmopolitas da grande cidade. Mas a foto documenta uma realidade bem diferente. Retratam a execução de aterros para a construção de um centro comercial. A mão-de-obra é infantil e feminina. A dureza do trabalho dificilmente imaginável mas pacientemente suportada por quem precisa de garantir pelo menos uma refeição por dia. Os miúdos que carregam os burros não devem ter mais do que 8 anos. As mulheres, mesmo grávidas, partilham do esforço das crianças sobre um calor sufocante. Uma das faces da realidade de um mundo que o ocidente faz por ignorar.
No momento em que registava esta imagem, precisamente em Deli, próximo daquele local, reuniam-se especialistas de muitas nacionalidades numa conferência planetária destinada a debater nada mais nada menos do que a importância do capital humano e a relevância da formação e da educação na economia global e no desenvolvimento. A escolha do local da conferência internacional pode não revelar cinismo, mas a concreta circunstância não deixou de me parecer um paradoxo.
De volta ao hotel dediquei-me a ler alguma da documentação distribuída. Atentei nas informações sobre o Estado anfitrião. Mais de 70% do quase bilião de seres humanos que ali fazem pela vida tem menos de 35 anos. 29 milhões nascem em cada ano. Daquele bilião, só 6% atinge um nível escolar acima dos patamares mínimos da literacia. 73% dos que obtêm grau de licenciatura ou superior estudaram artes…
A outra Índia, é a do encantamento. A Índia das grandezas passadas. Dos locais de sonho. Dos Fortes Vermelhos de Deli e de Agra. Do Palácio do Vento de Jaipur. Do Taj Mahal ao cair do dia. Dos mercados da Old Delhi e do cheiro intenso a especiarias. A India das majestosas heranças dos diferentes Impérios.
Dessa não escrevo.
Pelo menos enquanto não desaparecerem as imagens que registei em Connaught Place naquele fim de manhã de um fim de Novembro de 2004. Tal como não me apeteceu falar das belezas do sul de Angola depois de visitar um centro de crianças órfãs de guerra, sem nome, algures na região de Benguela, num centro de acolhimento de uma ONG. Nunca desapareceu a impressão dessas imagens. A sensação do mais absoluto desprezo pela vida e condição humanas. Que a tudo se sobrepôs.

JMFAlmeida

quinta-feira, 25 de novembro de 2004

O Estado dos Orçamentos

Chocante, mas não surpreendente, o artigo de Medina Carreira no Diário Económico , oportunamente reproduzido pela Grande Loja. Um retrato a preto e branco, mas justificadamente sombrio, da evolução das contas públicas portuguesas nos últimos vinte e cinco anos, o mesmo é dizer, um indicador da estrutura do Estado português e da sua evolução. Lições a tirar:

  1. A tese do "Monstro" mantem-se actual em toda a expressão por que foi formulada. Diria mesmo que essa expressão foi muito modesta relativamente à dimensão do fenómeno que queria traduzir.
  2. O problema não é do partido A ou B, entre os três ou quatro que por lá passaram, é um problema, no mínimo, de regime.
  3. A realidade confirma a intenção: Portugal é uma democracia a caminho do socialismo, afirma-o o preâmbulo da Constituição, ainda que a ideia tivesse sido depurada no articulado.
  4. Quando a despesa pública passa de 30,9% do PIB em 1980 para 50,6% em 2004 só poderemos concluir que há uma parte da sociedade portuguesa que beneficiou desta expansão e houve outra que sustentou e sustenta a primeira. Resta ainda uma terceira parte: a dívida, a pagar pelas próximas gerações. Eleger os "políticos" como os principais responsáveis é fácil. A responsabilidade política serve para tudo, principalmente para esconder as responsabilidades que todos temos em alimentar ao "Monstro".
  5. Considerando a hipótese da irreversibilidade da tendência, poderemos contar com uma despesa pública perto dos 97% do PIB, em 2030.
  6. Se houver um Partido apostado em fazer parar o crescimento do "Monstro" não pode contar com o actual sistema político para o ajudar. A experiência do Governo Barroso é sintomática. Há um problema de governabilidade do Estado e da sociedade portuguesa que inibe qualquer esforço de reforma. Não há nenhum partido que esteja disposto a governar para perder as eleições a seguir. Mesmo que a tal estivesse disposto, a sua acção seria facilmente travada pela arquitectura constitucional e institucional.
  7. Por isso, parecem-me perfeitamente inúteis e ridículas algumas das polémicas em torno do OE 2005. Deixo duas perguntas, decorrentes de duas hipóteses meramente académicas, para reflexão do leitor: 1) Barroso ainda seria Primeiro-ministro: apresentaria um orçamento muito diferente do que foi apresentado por Santana Lopes? 2) Sócrates já seria Primeiro-ministro: apresentaria um orçamento muito diferente do que apresentaria Guterres? E entre todos, seriam substancialmente diferentes?

Convido o leitor para o excerto da obra de Anselmo de Andrade que titulei em post de Anarquia Mansa. Diz tudo, com a vantagem de o ter dito em 1911. Quanto ao título do artigo de Medina Carreira - O Titanic afunda-se e a orquestra toca! - permitam-me discordar: a orquestra já não toca (Cf. post A Banda ) e o Titanic deu à costa:

Foto: Miguel Mealha, Broken Santa Maria


domingo, 21 de novembro de 2004

Desenvolvimento sustentável

Preocupante descobrir que de tão utilizada a expressão começa a dissolver-se na sua própria banalização. E é tão simples quanto o traduz o velhíssimo e sábio provérbio queniano:
´Trata bem a Terra. Ela não te foi dada pelos teus pais. Foi-te emprestada pelos teus filhos´.


"The Haunted Tree"by David Julian

Lembrança de JMFerreira de Almeida

sexta-feira, 19 de novembro de 2004

Oceanos

Um desígnio nacional para o século XXI. Cinco objectivos estratégicos propostos pela Comissão Estratégica dos Oceanos:
  1. Valorizar a associação de Portugal ao oceano como factor de identidade.
  2. Assegurar o conhecimento e a protecção do oceano.
  3. Promover o desenvolvimento sustentável da economia.
  4. Assumir posição de destaque e especialização em assuntos do oceano.
  5. Construir estrutura institucional moderna de gestão do oceano.
A riqueza das ideias e das propostas justifica o título do Público: Portugal à procura da sua identidade nos oceanos. Atribuir a Portugal uma nova identidade, tornando-o protagonista mundial no que diz respeito aos oceanos, pode ser a nova missão do país.

Muito bem! O relatório está feito e agora?

Pedro Câmara, "... do Restelo"

"Oh gloria de mandar! Oh vãa cobiça
Desta vaidade, a quem chamamos fama!
Oh fraudulento gosto, que se atiça
C'huma aura popular, que honra se chama!
Que castigo tamanho, e que justiça
Fazes no peito vão, que muito te ama!
Que mortes, que perigos, que tormentas,
Que crueldades nelles exp'rimentas!

Luís de Camões, Os Lusíadas, Canto IV, Est. XCV
Edição (desenterrada da estante) do Visconde de Juromenha (1870).


Talvez a propósito, a expressão do mito republicano da identidade perdida:

"No presente, a mais completa e dolorosa carencia d'um sentimento nacional, e portanto d'uma ideia directriz governativa; a pulverisação literal da sociedade; o isolamento e a indisciplina dos espiritos, o antagonismo e a dispersão das vontades, a secura e o retrahimento das almas, com tanta eloquencia revelados na pobreza e contradicção das ideias, na fraqueza e incoherencia dos actos e na ausencia de larga sympathia reciproca, effusiva, moralisadora e humana; e - consequencia inevitavel - em todos nós, sem excepção, um fermento de iiritabilidade e de amargura, um como sentimento constante de que estamos a falhar deploravelmente na vida, como homens e como povo.
(...)
Recordar de passagem que a ideia de Patria se abysmou nas profundezas do mar, ao fazermos a travessia de Lisboa a Calecut (...).

Bazilio Telles, O Problema Agricola, Porto, 1899, pp. 257-8.

Tudo é tão recorrente.

segunda-feira, 15 de novembro de 2004

Uma ideia para o País

Francisco Assis lamentava-se em Barcelos: do Congresso do PSD "não saiu uma única ideia para o país". Sócrates mandou Assis a Barcelos para ver se encontrava uma ideia para o País: regressou de mãos vazias, fazendo mergulhar o PS numa profunda depressão. O PS também não tem uma ideia para o país. Sócrates já percebeu que o "choque tecnológico" só serviu para consumo interno. O País não lhe deu ouvidos porque todos percebem que a tecnologia de pouco serve sem educação, sem formação, sem cultura. Guterres já o havia tentado, sem sucesso. Resta-lhe esperar pelo próximo Congresso, o do PCP. Sócrates manda o Raposo a Almada e fica ansiosamente a aguardar que lhe tragam o arremedo de uma ideia. No mínimo, um poster de Jerónimo de Sousa e a oportunidade de crescer um pouco mais à esquerda.

domingo, 14 de novembro de 2004

A Banda



Foto: Miguel Mealha, "Band, religious holiday"

A Banda espera, enquanto a procissão ainda vai no adro. Todos tocam de ouvido, falta a pauta e não se enxerga o maestro.

domingo, 7 de novembro de 2004

Anarquia mansa

É de uma grande monotonia a nossa história financeira. Nas suas linhas gerais cifra-se em gastar mais do que se tem, fazer deficit e pagar mais tarde com empréstimos. Tal é o seu lacónico sumário.
(...)
Causas de ordem económica, e causas de ordem política, explicam esta desagradável situação. As guerras, as aventuras marítimas, o estímulo das grandezas alheias, a paixão do fomento, o progressivo alargamento da acção do Estado, a diminuição do poder comprador da moeda, foram causas económicas de aumento das despesas, e da consequente acumulação de dívida. Acrescentem-se as causas de ordem política, como são as tendências a considerar cousa alheia o dinheiro do Estado - como se o Estado não fôssemos nós todos - e a geral ambição de melhorar as condições de vida, tão própria do nosso país como de outros, sem distinção de território, de clima, de população ou de forma de governo, e está explicada a persistência do deficit orçamental, e a grandeza da nossa dívida pública.
(...)
Não é Portugal, na estreiteza do seu território europeu, menos difícil de governar do que outras nações de maior quinhão na carta do mundo, sendo deveras complicado o seu organismo nacional. Na sua composição entraram tão variados e opostos elementos, sem nenhum preponderante a dominá-los e a dirigi-los, que logo desde o seu princípio lhe faltaram a coesão e a unidade, que o absolutismo lhe emprestava, mas que nunca veio propriamente a adquirir, e portanto o espírito de associação e solidariedade, que são as suas consequências. Da falta destas qualidades, indispensáveis para que uma nação seja um todo bem composto, resultou uma anarquia mansa, que neste meio de impulsivos meridionais se manifesta muitas vezes pela indisciplina em baixo, e pela desunião em cima.

Anselmo de Andrade, Relatório e Propostas de Fazenda, 1911.