Descia as escadas conjuntamente com mais dois colegas, um israelita de origem americana, que se borrifava para a religião, e um polaco, católico até à medula. Sábado de manhã. O dia estava muito quente. Apetrechámo-nos, a conselho do colega judeu, de água e deliciosas uvas. Descíamos a escada quando o polaco, de máquina fotográfica ao pescoço, começou a tirar fotografias ao muro das lamentações. O que foste fazer. Uma senhora, que vinha em sentido contrário, começou a barafustar, e penso que a insultá-lo, por causa disso. Falava hebraico. O nosso colega explicou-nos que nós não podíamos tirar fotografias ao muro das lamentações porque era o dia sagrado. Defendeu o polaco, e, ao bom estilo de um típico cowboy norte-americano, quase que a mandou para o outro lado, dizendo ao nosso colega que não ligasse àquela parvoíce, e que tirasse as fotografias que quisesse. Eu, que não tenho o hábito de andar com máquinas ao pescoço, levava a minha ao ombro descaída para as costas, disse-lhe para a esconder e respeitar aquele pessoal que vive e se alimenta do mais perigoso do fundamentalismo, o religioso. Concordou e enfiou-a dentro do saco de plástico onde tinha as uvas. É melhor assim. O israelita-americano riu-se do meu conselho enquanto ia lançando para o ar gordas uvas as quais mastigava com um prazer indiscutível, indiferente ao "conflito" religioso. Passámos junto ao muro, onde tivemos que enfiar o "kipá" de papel e ali ficámos um pouco vendo aquela cena de baixar e levantar a cabeça vezes sem conta. Por vezes cheguei a ficar com receio de que partissem a cabeça no muro. Uma coisa tive a certeza, não sofriam de cervicoalgias! Continuámos a nossa peregrinação e entrámos no setor muçulmano. Aí foi mais complicado. Fui revistado e entrevistado por dois soldados fortemente armados. Quando olharam para o passaporte e me perguntaram o apelido mudaram de atitude e tornaram-se mais cordiais. Fiquei espantado. Tentaram pronunciar o apelido Cardoso e repetiram duas ou três vezes, agora com simpatia e deixaram-nos a entrar no recinto das mesquitas. O judeu norte-americano riu-se e explicou-me que o meu nome tinha "Cardo" o que para os judeus tem algo de simbólico, correspondendo à via principal do coração de Jerusalém, que ainda se pode ver no seu quarteirão da cidade velha.
O episódio que mais me marcou foi na esplanada das mesquitas. À entrada do local de onde Maomé subiu ao céu fui impedido de entrar com a máquina fotográfica e a bolsa onde tinha os meus documentos e dinheiro. O vigilante, árabe, disse-me que tinha de colocar tudo num cacifo livre em frente da mesquita, sapatos, bolsa e máquina. Olhei-o perplexo e um pouco incomodado sem saber o que fazer, mas o árabe, apercebendo-se da minha inquietação, disse o seguinte: - Não tenha medo. Árabe é ladrão mas não rouba em solo sagrado. Nunca largou o seu sorriso, profundo, estranho e enigmático aos olhos de um ocidental. Entrei e andei sempre a pensar no que teria de fazer quando saísse dali e não encontrasse os meus pertences. Continuei a olhar para o colega israelita que não mostrou o menor sinal de incómodo. Se ele não diz nada é porque vai correr bem. Ainda lhe perguntei se era para ter receio, respondeu-me com um levantar dos ombros, com os árabes nunca se sabe. Valha-me Deus, pensei. E já que estava num local onde havia "três", qualquer um já me servia. Quando saí, estava tudo no seu lugar. O árabe, de olhar estranho e enigmático, reconheceu-me, e ao longe fez-me a sua tradicional saudação não largando aquele sorriso que nunca mais esqueci. Estava assim terminada a minha visita à mesquita onde muitos homens faziam exercícios, sentados nas pernas, debruçavam-se e abriam as mãos ao alto. Pensei, estes não devem sofrer de lombalgias.
Quando chegámos ao setor cristão as coisas foram diferentes. A igreja do Santo Sepulcro não me surpreendeu como estava à espera. Desorganizada e escura. Subitamente, um religioso, não sei de que seita cristã, barbudo e com cara de poucos amigos, pôs-se a discutir e por pouco não andava à pancada com outro padre ou monge cristão de outra seita. Olhei estupefacto para o meu colega judeu não praticante e apontei-lhe a cena. Deu uma gargalhada, que seria impensável a um cristão num templo sagrado, e respondeu-me, não ligues é comum estes tipos andarem à pancada e a fazerem cenas por causa dos seus "territórios". Valha-me Deus, pensei, onde fui cair. Estes devem sofrer de algias e hematomas pós traumáticos.
Um local de três religiões, que explica, e bem, a intolerância social e até uma certa agressividade. Em vez de ser um local sagrado, capaz de unir a humanidade, não é mais do que um epicentro vivo que alimenta o radicalismo e muitos comportamentos sociais que grassam, infelizmente, por esse mundo.
Discutimos este e muitos outros assuntos, nomeadamente a famosa síndrome de Jerusalém. Felizmente não fui atingido, mas as explicações são deveras interessantes.
A minha viagem a Jerusalám, há já longos anos atrás, foi das mais impressivas de todas as minhas deambulações pelo mundo.
ResponderEliminarGostava de voltar,mas como me revolta a exacerbada estupidez colectiva reinante naquela região, vou adiando.
Caro Dr. Massano, pela sua descrição de Jerusalém, eu estaria tramado. Com todos esses salamaleques, eu, que tenho uma hérnia discal, ficava rapidamente feito num molho de brócolos (isto, se a Mossad não desse cabo de mim primeiro).
ResponderEliminarEmbora pratique kickboxing (durante todo o ano – embora falte mais do que eu queria) e windsurf (só no verão), só tive uma crise séria há mais de 20 anos.
Agora, que estou de férias, o meu vizinho (que é mergulhador, daqueles que prendem cabos submarinos), convenceu-me a levantar um pneu de um camião, virando-o e revirando-o várias vezes. Acontece que levantei o pneu numa má posição e agora estou a tomar Relmus e Voltaren diariamente. Sem poder fazer o meu adorado windsurf.
Quanto ao seu texto, Dr. Massano, é uma crónica que eu leria diariamente em qualquer jornal. Mas está na Internet e, portanto, sempre acessível.
Votos de boas melhoras, caro Diogo.
ResponderEliminarE pode ser que o Prof. Massano comece a receitar via 4R, aliviando assim as dores dos nossos comentadores.
Não sei é se a Ordem permite...
Um pneu de camião?!
ResponderEliminarChiça.
Está bem medicado. Falta o fator tempo...
está provado que exercícios com pneus não dão bom resultado. Conheço um tipo que transporta um pneu de camião em volta da cintura e noto pela expressão dele que também sofre que nem um danado.
ResponderEliminarO windsurf é um desporto que acho especialmente interessante, não só pelas manobras de mudança de direção e de equilíbrio, mas sobretudo pela velocidade que vejo os praticantes atingir, quando o vento está de feição. Pratiquei vela de competição durante vários anos e em diferentes classes, mas nunca me atrevi a experimentar equilibrar-me em cima de uma prancha... agora que já estou demasiadamente velho para isso, também já não o farei. Ainda bem, porque se praticasse essa modalidade, certos dias, depois de ouvir certas noticias, tenho quase a certeza que me montava na dita, entrava pelo mar dentro, sempre a direito e das duas, uma: ou fazia a volta ao mundo, ou por esta altura já seria habitante do reino de Neptuno e, quem sabe, namorado da bela sereia.
Li com agrado ao seu relato e sem conseguir esconder um inoce te sorriso... :-)
ResponderEliminar...sorriso ampliado pelas referencias religiosas cruzadas, que irremediavelmente me remeteram para um filme que vi owntem, nas amoreiras.
De titulo 'Que mal fiz eu a Deus ?'
Fica aqui o link http://m.cinecartaz.publico.pt/Mobile/Filmes/Index/334286
Excelente e com muito humor, retrata bem a tematica da sua cronica. Estou certo que se o vir...irà apreciar
Obrigado pela vossa simpatia.
ResponderEliminarUm abraço.