segunda-feira, 29 de março de 2021
Embalados nas núvens
Estrepsíades, um ateniense abastado, proprietário de vinhas, rebanhos, colmeias
e olivais, descurara a gestão da sua fortuna e estava crivado de dívidas.
Atormentado com o assédio dos prestamistas, e perante a recusa das feiticeiras
da Tessália, temerosas de castigo dos deuses, em alterarem as fases da lua que
regulavam as datas dos pagamentos, recorreu aos serviços de uma escola de
filósofos sofistas que, mediante pagamento, exerciam a arte da retórica como
forma de vencer litígios ou ludibriar os credores. Assim principia Aristófanes a
sua comédia, As Núvens. Para os sofistas era retórica que determinava a verdade
e esta era a que melhor se prestava a ser manipulada, explorando ao limite a sua
qualificação como “justa” ou “injusta” e manobrando artificiosamente os
conceitos para tornar vencedoras as causas que defendiam. Esquecendo por
momentos a sorte de Estrepsíades, e saltando 2500 anos, também por cá verdade e
justiça são cada vez mais determinadas pelos sofistas que enxameiam os
ministérios da nação. Injusta era a oposição ideológica do Governo em negociar
com os privados o apoio contra o Covid, o que provocou considerável número de
vítimas por falta de cuidados médicos; mas quando o avolumar da pandemia impôs a
aceitação da oferta estrangeira, só entendível se esgotada a capacidade
nacional, logo tal resistência se tornou num “justo processo de negociação que
nunca trouxe qualquer problema”. Excepto, claro, para quem faleceu sem
assistência, mas logo “justos” e convenientes estudos vão normalizando causas e
número de falecimentos. “Injusto” foi o desconfinamento no Natal e Ano Novo;
todavia, conhecidas as consequências, logo a verdade sofista tornou “justa” a
decisão, culpando os cidadãos, suprema ironia, por terem desconfinado, e
inocentando o governo cuja decisão radicou numa justa ignorância da perigosidade
das novas estirpes covídicas, mesmo que toda a Europa já as conhecesse, uma
“injustiça” que só calhou a Portugal. Também na falta de vacinas contra a gripe
comum, a verdade sofista ilibou o governo por falhar o aprovisionamento,
responsabilizando quem logrou vacinar-se pela “injustiça” sofrida por quem não o
conseguiu. Já nos incêndios florestais de 2017 e 2018 que mostraram a
“injustiça” de uma parte do país sem Estado que o protegesse, também os cidadãos
foram os culpados. Os cidadãos que não limparam as matas, o SIRESP, a trovoada
seca, o downburst, tudo serviu para a “verdade” sofista inocentar o falhanço
governamental. Antes e agora, é a “justa causa” da neutralidade carbónica que
esconde uma “injusta” política energética geradora dos custos mais elevados da
Europa e esquece consequências económicas e sociais e milhares de desempregados,
de Sines a Matosinhos. Como também os tão proclamados “justos” apoios à perda de
rendimentos devida ao Covid, se transformaram na “injustiça” de não chegarem aos
destinatários, bem confirmada nas quebras das execuções orçamentais. Foi graças
à retórica sofista que Estrepsíades se livrou dos seus credores, por “injustos”
serem os empréstimos que estimularem a sua má gestão. Mas também logo dela foi
vítima quando o perdulário Fidípides, seu filho, considerou “justo” espancar o
pai para obter parte da herança, pois “injusto” seria não a gozar de imediato. E
de “justiça” em injustiça, foi em nome da “justiça” que, desesperado,
Estrepsíades incendiou a escola sofista que lhe restituíra a fortuna. Para
Aristófanes era nas núvens que se geravam as grandes trovoadas e tempestades,
daí o nome da peça, grandiosa metáfora das consequências trágicas dos
procedimentos astuciosos, inversores dos valores e da verdade. Coincidentemente,
ainda Aristófanes vivia e Atenas perdia a guerra com Esparta. É que, lá como cá,
sempre que tais condutas se expandem e o povo as consente, da comédia inicial
podem resultar em tragédia. (meu artigo no i- edição de 5 Março de 2021)
https://ionline.sapo.pt/artigo/726993/e-assim-vamos-embalados-nas-nuvens-?seccao=Opini%C3%A3o_i