quinta-feira, 2 de julho de 2009

As Cenourinhas multiplicadas

Há pessoas assim, que quando armam um sarilho e são apanhadas espadeiram tanto à sua volta até que tudo submerge numa nebulosa que não deixa tirar conclusões sobre o que realmente aconteceu. Essas pessoas sabem que a defesa mais eficaz é fazer crer que os outros não são melhores, de modo a passar incólumes no ambiente de descrédito generalizado.
A Cenourinha, uma miúda irritante que ia lá a casa quando éramos crianças, era especialista neste método de defesa pelo ataque, virando sempre o bico ao prego, por mais incríveis que fossem as histórias que inventava em desespero de causa. Eu e a minhas irmãs já sabíamos que aquelas visitas iam trazer-nos sarilhos e preparávamos o terreno com antecedência, por exemplo tirando do seu alcance os brinquedos de que mais gostávamos e que ela cobiçava por sistema, arranjando sempre forma de os levar com ela, ou deixando o cão preso na casota para ela não o provocar até à merecida dentada, o que valia sempre um castigo injusto ao animal.
Mas o certo é que, por mais prudentes que fossemos, a imaginação e o atrevimento daquela peste ia sempre além do que admitíamos, como se demonstrou no dia em que escondemos atrás de um armário uma caixinha de música com uma bailarina, que me tinham oferecido há poucos dias pelos meus anos. Mas ela já tinha ouvido falar naquela maravilha e recusou-se a entrar em qualquer brincadeira sem que antes pudesse ver a caixa de música. Como nós não cedíamos, foi ter com os pais à sala, numa gritaria chorosa a exigir o brinquedo, senão queria ir para casa porque nós não éramos amigas dela…E batia o pé e arrepelava-se de raiva, mostrando-se muito ofendida com esse gesto hostil da nossa parte.
A cena comoveu logo os adultos, nós levámos uma descasca em público por sermos tão más, e o brinquedo foi parar-lhe às mãos, como “prova” de que era bem vinda. Não descansou enquanto não lhe partiu a corda, apesar dos avisos, ainda hoje acreditamos que fez de propósito, e é claro que lhe demos tabefes bem assentes, numa zaragata que alarmou os adultos. Foi aí que ela se lavou em lágrimas, exibindo a caixa de música, agora tristemente muda, e acusando-nos de a termos nós estragado “só para ela não poder brincar mais”. Tal descaramento deixou-nos perplexas, e mais ainda ficámos quando os nossos pais saíram em defesa ela, envergonhados por nos mostrarmos tão ruins e, para a consolar e nos castigar, logo decretaram que ela levaria a caixinha para casa, mesmo sem música ainda era bonita e tinha a bailarina. Ela secou logo as lágrimas, deitou-nos um olhar pérfido sob aquela franjinha ridícula que lhe dava uma carinha de anjo sonso e foi logo acolher-se junto à mãe, para evitar represálias, levando o brinquedo bem apertado debaixo do braço.
Quando finalmente os meus pais perceberam o drama todo, já era tarde, a fiteira tinha levado a melhor, e foram eles que tiveram que nos compensar por terem sido levados à certa por uma garota atrevida.
Lá em casa ainda hoje a invocamos quando é preciso qualificar o grau de descaramento intolerável que favorece os juízos injustos: “Isso é uma cena “à cenourinha” o que desarma logo a tentativa de gerar confusão.
Não me lembro de ter voltado a ver aquela Cenourinha, mas quantas outras do mesmo género encontramos por aí, ufanas do seu sucesso e muito seguras de que os outros não se atrevem a afrontá-las? Por mim, e isso ficou-me daquela cena de infância, acredito sempre que o proveito será de pouca dura.

10 comentários:

  1. Anónimo15:08

    Andam por aí, Suzana, andam por aí...

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  3. Recordar esta e outras histórias de infância é, quase sempre, agradável, tanto mais que a maioria delas contêm a chamada “moral da história” de que, muitas vezes, nos socorremos para formarmos opinião ou estabelecermos comparações, sobre isto e aquilo.
    A moral desta história de infância da nossa querida Dra. Suzana Toscano foge um pouco à norma, pois, a pérfida cenourinha acabou por obter o que queria, criando nas outras miúdas sentimentos de frustração e incompreensão, o mal ganhou ao bem!. O mesmo acontece na vida dos adultos em que, tantas vezes, o medíocre e mal formado triunfa sobre o excelente e bem formado e, este triunfo não é tão efémero como desejaríamos. Na ausência de certezas e por via das dúvidas, o melhor é não subestimarmos as cenourinhas e os nabos que a cada passo se vão cruzando no nosso caminho…

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  4. PS: Por lapso escrevi "querida" em vez de "cara". Peço desculpa, esta coisa não dá para corrigir!
    :)

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  5. Caro jotac, aqui os vizinhos espanhóis já resolveram essa dificuldade linguística há muito tempo :)Será que foi passear a Espanha??

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  6. Querida (eu não vou "por dificuldades linguísticas resolvidas pelos espanhóis") Suzana:

    De facto, quando nós éramos miúdas, estas atitudes tipo "cenourinha" tinham, como diz, gratificação de pouca dura...o que me incomoda e muito é que os tempos viraram e a moral da história, agora, não reza assim....

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  7. mas há-de rezar, Clara, e para muitos nunca deixou de ser assim, embora queiram fazer-nos crer que não é possível resistir à degradação e à má criação.
    Esta técnica da banalização do que seria intolerável é profundamente destrutiva, cito de novo Simone de Beauvoir quando dizia que o mais escandaloso, nos escândalos, é que nos habituamos a eles...

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  8. Suzana
    É de pequeninas que se fazem as "Cenourinhas" grandes. Tão pequeninas e já demonstram capacidades estratégicas verdadeiramente bélicas. Um perigo!
    Normalmente apresentam-se sedutoras (ou sedutores, sim porque tem muita aplicação a "eles"), mas depois quando começam ser contrariadas salta-lhes o verniz todo.
    Andam por aí muitas “Cenourinhas” à solta!

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  9. Pois é, margarida, daí o título...;)

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