sábado, 3 de julho de 2010

O Clube dos Cinco

Ontem, quando fomos a Sintra à noite, deixámos o carro junto ao portão da quinta que foi do meu avô e onde a família toda passava os meses de férias quando éramos crianças. Impossível não reviver alguns episódios dessa época, que recordo com muita ternura.
No último ano em que aí passámos férias eu e a minha irmã resolvemos criar o Clube dos Cinco, para imitar as aventuras dos livros de Enid Blyton, uma colecção de mais de vinte livros que tínhamos lido apaixonadamente. O clube era formado por nós as duas e por dois rapazes nossos vizinhos e amigos, que se insubordinaram logo de início perante o comando da minha irmã e que teimaram em ter voz activa no lema e regras do clube. Depois de muitas reuniões sem acordo, só nos faltava um cão para fazer as vezes do famoso Tim, tão esperto que era sempre uma preciosa ajuda nos enredos dos livros dos Cinco. Mas foi impossível arranjar um cão à altura. Na quinta só havia o Bolinhas, um rafeiro cheio de manhas que seguia o meu avô por todo o lado e não reconhecia outra voz de autoridade. Bem tentámos treiná-lo, ladra agora, Bolinhas, ladra, vem cá, Bolinhas, salva-me!, mas o Bolinhas olhava para nós intrigado e deitava-se no chão, de patas para o ar, à espera de festas na barriga. Substituímo-lo pela Inha, uma galinha belicosa que havia no galinheiro e que aprendeu a andar atrás de nós como um cão, desatando à bicada a todos os que se atrevessem a incomodar o grupo.
O clube reunia na sede, um casinhoto que havia na quinta para guardar as enxadas e onde ninguém iria vasculhar os nossos segredos. Inventámos um código secreto escrito e falado, com todas as letras do alfabeto substituídas por sinais subtis e levámos muitos dias a treinar o código falado, até que as novas palavras se organizassem sem hesitação. Nesses meses de férias arranjámos mil e uma aventuras na serra de Sintra, explorando atalhos misteriosos ou vestígios em ruínas, ou ficando apenas sentados nas clareiras frescas, a lanchar a nossa merenda.
Uma vez perdemo-nos por completo porque resolvemos seguir um caminhante “misterioso” que tinha um chapéu estranho e seguia de cabeça baixa a olhar de esguelha para a rua. A certa altura o homem entrou num portão e desapareceu, quando olhámos à volta não fazíamos ideia onde estávamos. A tarde já declinava e a perspectiva dos ralhos da minha avó por não cumprirmos a hora marcada aumentou o pânico. Se ao menos estivesse ali o Tim, ele havia de farejar o caminho, mas a Inha estava no galinheiro e ninguém aparecia nas redondezas.
A certa altura, um dos rapazes leu a tabuleta com o nome da rua: Rua das Murtas. Murtas?, o que será isso, interrogávamo-nos com estranheza. Até que o vício dos mistérios irrompeu na imaginação e ele disse, lívido e com a voz a tremer:
- Não deve ser murtas, deve ser Mortas, aposto que puseram assim para nos enganar, aqui deve haver almas penadas…
Nem pestanejámos. Deitámos a correr pelas ruas que iam aparecendo, sempre a descer em direcção à vila, chegámos à quinta espavoridos e tão esfalfados que nem conseguimos argumentar quando a minha avó nos pôs de castigo, uma semana sem reuniões na sede do clube e sem sair da quinta, para ver se acalmávamos a imaginação.
Esse foi o ano do grande incêndio em Sintra, em que o sol se eclipsou durante três dias, debaixo do fumo negro. Quando voltámos aos nossos passeios, as pistas que tínhamos desbravado estavam cobertas de cinza e partes inteiras da serra frondosa eram apenas uma imagem terrível de troncos carbonizados. O Clube dos Cinco encerrou aí a sua actividade, com uma cerimónia solene de homenagem à Serra de Sintra.

4 comentários:

  1. Pois, Drª Suzana Toscano, apesar do susto, o "Clube dos Cinco" tomou a excelente decisão de homenagear a Serra de Sintra. A serra que desde tempos ancestrais, foi entendida pelos homens como sagrada. Vitor Manuel Adrião, escreveu um livro com muito interesse, intitulado "Sintra, Serra Sagrada" onde aborda diferentes aspectos históricos , relacionados com a Serra e os seus habitantes, ao longo dos séculos.
    É muito bom recordar esses tempos felizes e... enquanto não for inventada a máquina capaz de nos transportar no tempo... salvemos as recordações.
    ;)

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  2. Cara Dra. Suzana Toscano:
    É lindo e simples o seu baú de memórias, e grande a sua generosidade em partilhá-lo, provocando-me, sem querer, o impulso imediato de abrir igualmente o meu e recordar o quanto feliz fui e sou por ter lido alguns desses livros…

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  3. Suzana
    A aventura das "Mortas" poderia ser contada por Enid Blyton em mais um livro dos "Cinco". Tem tudo para fazer brilhar os olhos dos mais pequenos, com a vantagem de não ser ficção.
    As suas recordações fizeram-me lembrar as minhas. Tinha um grande fascínio pelas aventuras de Enid Blyton e confesso que guardo alguns dos seus livros. Por mais arrumações que faça, estes livros simbolizam tanto que não os consigo deitar fora. Obrigada por partilhar connosco as aventuras da Suzana.

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  4. Esses livros são preciosos, ainda tenho a colecção quase toda, que também foi lida pelas minhas filhas e tenho esperança que os meus netos a encontrem nalgum site na net, quando for a vez deles...
    Foi também a contar-lhes as aventuras desse clube quando as levava a Sintra, que lhes criei a curiosidade.

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