domingo, 14 de dezembro de 2014

Capão

Hoje (sábado) passei a tarde numa modorra saudável, sem fazer nada. Ia lendo alguma coisa simpática, e ligeira, ao mesmo tempo que deitava o olho para a televisão onde o capão era rei e senhor. Coitado do animal. Tiram-lhe os "grães" quando são novos, como disse a senhora, e os desgraçados deixam de cantar, ficam sem a crista e perdem o "bício" de galar. Quem ganha são os que apreciam a sua carne, mais gostosa e cheiinha de gordura. Parece que a história remonta aos idos romanos, quando um patrício qualquer, incomodado com o seu cantar, mandou-os capar. Olhando para o lado é possível ver gente que deve ter sido capada, contra a sua vontade. Não galam o próximo, perderam a crista e não cantam de galo. É pena, porque podiam ser úteis para por alguma ordem na capoeira onde vivemos, embora reconheça que alguns indivíduos deviam ser capados quando praticam atos condenáveis, sobretudo quando se trata de crianças. Não é que advogue a castração física, como ordenou o rei D. Pedro, como castigo, ao seu amigo e mais que amigo, o escudeiro Afonso Madeira, por ter sido apanhado a dormir com a mulher de um nobre. Não sei se foi por isso ou por ciúmes. Deste modo o pobre do rapaz foi transformado num capão, "e engrossou em pernas e corpo, e viveu alguns annos engelhado do rosto e sem barbas, e morreu depois de sua natural morte". No filme, onde se retrata a história deste rei e o seu amor, há uma passagem em que se ouvem as "bolinhas" de Afonso Madeira a cair num vaso de metal. Arrepia! Ai não que não arrepia.
Ao ouvir a vida dos capões tive de recordar este episódio e um outro. Em pequeno, um colega queria ir para o seminário. A rapaziada "fez-lhe" a cabeça, dizendo-lhe que capavam todos os seminaristas. "Estás tramado. Quando fores para o seminário cortam-te os tomates". Recordo que não havia nenhum dia que um de nós não deixava de fazer aquilo que agora seria classificado de bullying. Fazíamos isso porque tínhamos péssimas experiências com as conversas dos padres, manhosas e incompreensíveis para miúdos; faziam perguntas muito esquisitas. Eu nunca as tolerei e achava-as mais do que despropositadas. Mas isso era eu, que desconfiava de homens de saias, e, também, felizmente, graças aos ensinamentos de republicanos familiares os quais foram muitos úteis. Deixei de ver o meu amigo durante muitos anos. Mais tarde, vim a saber que "preservou os seus testículos", transformando-se num pai e avô babado. 
Qual capão, qual quê!

1 comentário:

  1. Tirando a parte gastronómica acerca da qual não me posso (ainda) pronunciar, este texto fez-me pensar nos eunucos que serviam nos haréns moçulmanos, repletos de belíssimas odalíscas, nos. Fez-me lembrar também os Almuadens que do alto dos minaretes, anunciavam aos fieis o início das orações. Estes homens eram escolhidos por ser cegos, ou então, cegavam-nos para que pudessem "assumir o cargo". Isto para que não pudessem, do alto dos minaretes observar a intimidade nas casas em redor.
    Lembrou-me ainda o poema de José Carlos Ary dos Santos:

    POETA CASTRADO, NÃO!

    Serei tudo o que disserem
    por inveja ou negação:
    cabeçudo dromedário
    fogueira de exibição
    teorema corolário
    poema de mão em mão
    lãzudo publicitário
    malabarista cabrão.
    Serei tudo o que disserem:
    Poeta castrado não!

    Os que entendem como eu
    as linhas com que me escrevo
    reconhecem o que é seu
    em tudo quanto lhes devo:
    ternura como já disse
    sempre que faço um poema;
    saudade que se partisse
    me alagaria de pena;
    e também uma alegria
    uma coragem serena
    em renegar a poesia
    quando ela nos envenena.

    Os que entendem como eu
    a força que tem um verso
    reconhecem o que é seu
    quando lhes mostro o reverso:

    Da fome já se não fala
    ‑ é tão vulgar que nos cansa
    mas que dizer de uma bala
    num esqueleto de criança?

    Do frio não reza a história
    ‑ a morte é branda e letal –
    mas que dizer da memória
    de uma bomba de napalm?
    E o resto que pode ser
    o poema dia a dia?
    ‑ Um bisturi a crescer
    nas coxas de uma judia;
    um filho que vai nascer
    parido por asfixia?!
    ‑ Ah não me venham dizer
    que é fonética a poesia!

    Serei tudo o que disserem
    por temor ou negação:
    demagogo mau profeta
    falso médico ladrão
    prostituta proxeneta
    espoleta televisão.
    Serei tudo o que disserem:
    Poeta castrado não!

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