quarta-feira, 3 de agosto de 2022

Mondrongo

Gosto de navegar no tempo. Sou um marinheiro de mares da saudade. Adoro partilhar vivências, sentimentos, emoções e, sobretudo, saborear recordações. Navegar no tempo é esquecer as más memórias. Poderão dizer, mas não as esquecemos! Está bem, não faz mal, mas é sempre possível retocá-las com cores menos dolorosas, desenhando traços finos de saudade. Navegar no tempo é transformar a realidade do passado no encanto do mundo da fantasia. São momentos deliciosos quando conseguimos misturar tudo, imagens dinâmicas, coloridas e quentes, com desejos ardentes, sensações estranhas, cheiros deliciosos, emoções perdidas e vontades achadas. O tempo mistura tudo, sem respeito por ele próprio, criando novas realidades que só ele sabe. O tempo faz esquecer a realidade dos momentos do passado, confundindo-nos propositadamente para que a saudade tenha outro sabor e cheiro. O tempo consegue o impossível que é recriar situações temporais distintas como se tivessem ocorrido no mesmo momento. Vale a pena viver a fantasia da realidade, uma fonte de prazer a que não devemos fugir. 

- Então, ainda cá estamos?

- É por pouco tempo, senhor doutor. Deve ser a última vez que nos vimos.

- Ó homem não diga isso.

- Digo, digo, eu é que sei.

- Mas não está a dar a côdea, pois não? O miolo ainda funciona. Um sorriso alargado, com alguma baba a cair do canto da boca a testemunhar o ocorrido há cerca de trinta anos, fez-me recordar o passar do tempo.

- Afinal, envelhecemos juntos. Disse-lhe meio espantado.

- Pois é, mas ainda vai sentir saudades minhas. Vai ver que vai. E bate com o punho no peito, dando a entender a fragilidade crescente do corpo e da alma a querer libertar-se.

- Vá, deixe-se disso, vamos daí. Suba. Subiu com muita dificuldade.

- Estou um mondrongo.

- Qual quê! Vamos conversar um pouco. E assim foi, com alguma provocação à mistura, ou melhor, com muita, as lembranças iam-lhe saindo a uma velocidade razoável, tendo, por vezes, misturado momentos, prazeres e aventuras, algumas mesmo loucas, quase que diria irreais. Uma verdadeira caldeirada de sabores, experiências, vivências e sentimentos que rapidamente despertaram velhas emoções fazendo com que o tempo andasse num corrupio louco, saltando anos, não interessa quantos e nem como, o que interessa foi recordar o passado através de tempos diferentes que eram e são sempre seus, e alguns também meus. Uma alegria efusiva, acompanhada de sonoros risos, inundava-lhe a fácies conseguindo repuxar os beiços descaídos, num interessante rejuvenescer em que o futuro conseguia mergulhar no seu passado.

Uma delícia, um alívio, sentir a vontade louca de recordar o que aconteceu como se o presente necessitasse desse belo e estranho alimento. O tempo da conversa não passou, foi apenas saboreado como se tratasse de um delicado copo de vinho. Mais uma memória construída para ser recordada amanhã. Amanhã? Não, ainda hoje, enquanto é tempo. 

Não sou ainda um mondrongo, mas o meu amigo Pereira tinha razão, sim, tenho muitas saudades dele. Se tenho, meu Deus.

4 comentários:


  1. A palavra "Mondrongo" chamou-me aqui.
    Existe no crioulo cabo-verdiano, nas
    variantes de algumas ilhas.
    E encontro um texto delicioso que fala
    de memórias e que também versa sobre o
    presente.

    :)
    Olinda

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  2. Olinda, quão pequeno seria o Mundo, se não fosse a memória dos Homens a estendê-lo...

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  3. Olá Olinda. Gosto em rever-te, sobretudo por ser neste blog onde são publicados textos da máxima qualidade.

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