Leio os jornais e vem-me à memória uma história contada por Gabriel Garcia Marquez no seu livro “Viver para contá-la”.
Conta ele que numa pequena aldeia pacífica começaram a aparecer cartas anónimas denunciando a vida de uns e de outros. O dia seguinte, portador de novas cartas, era temido, e a pouco e pouco todos começaram a desconfiar de todos. Qualquer gesto, qualquer frase, era considerada uma ameaça e deixou de haver amigos, vizinhos ou irmãos. Todos eram inimigos de todos, de lado algum podia vir o bem ou um gesto amigo, tudo era colocado sob suspeita. As ruas começaram a ficar desertas, as janelas fechavam-se aos olhares indiscretos, a vida tornou-se uma pesadelo. Todos eram vigilantes de todos, todos eram vítimas de todos.
A voracidade com que é tratada qualquer situação “suspeita” e o imediato turbilhão de comentários, dúvidas, ligações, começa a tornar-se uma espécie de psicose nacional que é em si francamente preocupante.
O objectivo é suspeitar, tirar a credibilidade, lançar a mancha sobre quem age ou decide, raramente é esclarecer ou contribuir para que os erros não se repitam – é o escândalo que interessa e, de preferência, que ninguém no futuro se atreva a decidir seja contra quem for. Adie, levante dúvidas, peça pareceres, vá empatando até que as coisas se decidam sozinhas. Geralmente, por desistência dos interessados. O pior é se nesse caso também se levanta a dúvida sobre tão longa demora - se o assunto era para recusar então porque é que não se pôs termo à questão em devido tempo?
Não sei se o caso que tem feito correr tanta tinta nos últimos dias tem ou não qualquer fundamento, nem nada do que li me leva a qualquer conclusão que me habilite a falar sobre ele.
Fica-me, no entanto, a ideia geral de que, no limite, todos os actos praticados por um Governo (pelo menos os de gestão) devem ser especialmente sindicados sobre as suas eventuais motivações ocultas e que todos os dias vão aparecer mais duas ou três situações que alimentem esta espécie de desporto nacional. Como o “caso” descrito numa coluna inteira do “Público” de 6ª feira, sob o título “Reestruturação retirou processo da Portucale das mãos de técnica” que deixa a desejável aura de mistério sobre o facto de “uma técnica que há mais de dez anos dava sucessivos pareceres negativos sobre o abate dos sobreiros” e que deixou de ter competência nessa matéria na sequência da nova lei orgânica do Ministério da Agricultura...Eu sei que se fazem leis orgânicas com demasiada frequência, mas uma nova lei orgânica de um Ministério para afastar técnicos dos processos que se arrastam anos e anos é no mínimo um exagero!
Acaba de tocar na ferida. Hoje, o que mais me assusta é que possa ser alvo de qualquer suspeita. É terrível ter de conviver com uma situação dessas, face à quase impossibilidade prática de a eliminar. Mark Twain afirmou um dia: “vivemos numa permanente ansiedade de acontecimentos que nunca irão ocorrer”.
ResponderEliminarSe ao menos a suspeita fosse morta à nascença, mas não, adquire vida, alimenta-se de novas suspeitas e consome-nos lentamente.
Caro Massano Cardoso, o problema é exactamente essa ameaça implícita que sente cada um que vê e assiste ao que se passa (não só agora, é um fenómeno recorrente). Parece que estamos todos empenhados em demonstrar que é melhor não fazer nada, ficar muito quietinho a dizer mal do que alguns incautos ousem decidir. É o nosso "medo de existir" e uma boa explicação para a falta de confiança e de iniciativa que é também característica lusa. Contou-me uma vez um empresário de sucesso (que se mantinha na fábrica apesar dos seus 82 anos) que dava sempre aos seus empregados o direito de errar 20% das suas decisões desde que se tratasse de iniciativas para inovar ou corrigir algum aspecto que estava a dar problemas. Com isso eles ousavam arriscar e conseguiam excelentes desempenhos e a empresa progredia imenso.
ResponderEliminarNão é esta a regra em Portugal, pelo contrário, ai de quem falha ou, sequer, de quem é suspeito de ter errado! De nada servirá ter feito muitas coisas com acerto, o que fica é o estigma do insucesso. Com o "castigo" regozijam-se os meros espectadores, justificando a sua inércia com os dissabores sofridos pelo atrevido.
Meus Caros Amigos, não será porventura por acaso que nas "sondagens" e "barómetros" aparece sempre bem cotado o político de quem não se conhece decisão de relevo, ou ainda mais acima, o político de quem não se conhece decisão nenhuma.
ResponderEliminarVeja-se o caso deste Executivo. Decisões, nem vê-las. Basta olhar para o repositório de avisos, portarias e despachos de mero expediente em que se transformou nos últimos meses o Diário da República. No entanto, as avaliações são positivas. E de facto, tem a sua lógica: quem não decide não corre o risco de ver sindicadas as suas decisões.
A prazo, a muito curto prazo, ver-se-ão os resultados para o País desta anestesia geral...
Eu não suspeito de ninguém, apenas leio o que vem aparecendo nos jornais.
ResponderEliminarQuanto ao absurdo e possível exagero na suposição de uma possível decisão política na alteração legislativa para afastar funcionários que 'encravam' (na perspectiva dos promotores) processos, concordo com Suzana Toscano, é um absurdo. Mas será um exagero?
É claro que há coincidências, mas uma coisa não tem nada a ver com a outra?
Uma coisa é certa, quem queria ver um projecto aprovado e viu essa pretensão negada durante mais de dez anos, nunca desistiu e de repente viu esse projecto aprovado, e pelos vistos, com o auxílio de legislação nova.