terça-feira, 6 de setembro de 2005
“Estava escrito”…
Não gosto de funerais. Confesso, também, que nunca ouvi ninguém dizer o contrário, a não ser os profissionais do ramo.
Com a idade, a probabilidade de participarmos nestes rituais aumenta exponencialmente de tal modo que só termina com o nosso.
Muitas vezes somos confrontados com expressões curiosas, sobretudo quando estamos perante doentes de idade avançada. Acabamos por os confortar dizendo: - Ora, está muito bem. Sim senhor! Ainda vai enterrar muita gente! É um pouco macabro, mas as pessoas aceitam-na com uma expressão feliz. Claro que o nosso objectivo é tentar que as pessoas vivam mais e com qualidade. Afinal, o que fazemos não é mais do que “endrominar” ou melhor, “rasurar” o que está escrito no livro da vida e da morte.
Desde pequeno que ouço dizer que está tudo escrito num livro, sobretudo o momento da morte de cada um. Imaginava-o de muitas formas e tamanhos a ser manuseado por um barbudo carrancudo a mando de Deus. Como só conseguia vê-lo de baixo para cima, limitava-me a contemplar a lombada e as capas. Por mais esforços que fizesse não conseguia ter “acesso” ao conteúdo. E, ainda bem! Memórias da infância, despertadas, a propósito do comportamento das pessoas, no último velório de um familiar que, ainda novo, foi vítima de morte súbita. Um par de senhoras, mãe e filha, aproximaram-se da viúva e descarregaram sem dó nem piedade: - Tinha que ser filha, estava escrito. Tinha o dia e a hora marcada. Arrepiei-me todo! Ambas, frequentadoras assíduas dos rituais católicos mostravam claramente que estavam impregnadas de arcaicos conceitos mitológicos, mesmo desconhecendo os nomes ou os atributos dos velhos deuses.
Estava escrito! Estava escrito o quê? Apeteceu-me dizer, e, ao mesmo tempo, recordei-me da leitura recente de um colunista em que fazia a apologia do cristianismo na morte do paganismo, no surgimento de novos valores e na libertação da mulher. Quanto ao surgimento de novos valores é óbvio que sim, quanto ao papel da “libertação e respeito pela mulher” já não estou tão certo, pelo menos durante muitos séculos. A morte do paganismo mitológico pelo cristianismo não é lá muito evidente, pelos vistos, porque há alguém que se entretém a escrever quando devemos nascer, adoecer e morrer. Que raio de entretenimento! Cá em baixo andamos a lutar contra esse livro misterioso que impregna a mente de muitas e muitas pessoas. As afirmações que fazem nesse sentido não são circunstanciais, são mesmas sentidas. Era bom que lhes explicassem que lá em “cima” não há livros de mercearia ou “tarados” que se divertem com a miséria dos seres humanos. Afinal, 2000 anos de cristianismo não conseguiram ainda, e nem sei se irão alguma vez conseguir, eliminar a função de deuses criados à semelhança dos homens e das mulheres.
A função do cristianismo nunca foi a eliminação dos rituais ou divindades pagãs. Pelo contrário, o sucesso do cristianismo só foi possível com a absorção e adaptação de tudo aquilo que era a tradição pagã da Europa - e não só. Desde o culto de Maria, criado para combater a popularidade, durante o final do império romano, do culto de Ísis, à substituição da data de nascimento de Cristo, originalmente lá para meados de Setembro, para Dezembro, coincidindo assim com os rituais do Solstício de Inverno que grassavam pela Europa. Isto para não falar do pseudo-politeísmo, com santos, santinhos e beatos, que permite continuar a "adorar" diferentes personalidades conforme a aflição ou a necessidade.
ResponderEliminarO cristianismo, ao contrário da religião judaica que lhe deu as bases, soube adaptar-se às necessidades das pessoas comuns podendo assim prosperar.
Quanto aos "deuses criados à semelhança dos homens e das mulheres", que características ou traços tem o Deus cristão - ou Hebreu ou Muçulmano - que não sejam retirados da personalidade óbvia do ser humano?
"o estva escrito" "foi a vontade de Deus" não são mais que humanas formulas de conforto com a finalidade de aceitarmos algo tão violento para nós como a morte e aliviarmos eventuais sentimentos de culpa.
ResponderEliminarCristo sempre disse que Deus fez os homens livres...
Ps gostei da sua definição "a natureza é indiferente."
Percebo bem a revolta do Prof. Massano Cardoso perante o sentimento determinista das duas pessoas de que fala. Os médicos - sobretudo os médicos, mas não só - lutam contra a morte diariamente, lançam-se medidas de prevenção contra todo o tipo de ameaças, progrediu-se em passos de gigante na esperança de vida com qualidade - e ainda há quem acredite que "estava escrito"! Mas também concordo inteiramente com o Reformista, nos momentos de desânimo temos que acreditar que não podíamos ter feito nada, sob pena de não nos conformarmos com os factos. A ciência é uma enorme esperança mas a fé e a religião são um amparo.
ResponderEliminarQuanto à questão da emancipação das mulheres e o cristianismo, apesar de saber que é um tema muito melindroso e difícil, não posso deixar de dizer, Pinho Cardão, que Maria é adorada como mãe ou seja, com total apagamento de outras dimensões em que a mulher pode e deve afirmar-se e realizar-se. Ouso até dizer - sabendo como esta questão é difícil e com todo o respeito por quem pensa diferente - que é exactamente por isso que o sentimento de culpa continua a perseguir as mães que não podem ou não querem renunciar à sua vida profissional.