quarta-feira, 28 de dezembro de 2005

O Perú


Antes que a política volte a ocupar os nossos dias, deixem-me contar-vos por que motivo me recuso a assar o perú de Natal.
Desde que me lembro que todos os anos chegava a nossa casa o cesto da Conceição. A Conceição era uma antiga empregada da minha avó que ficou amiga da minha mãe até morrer de velhinha. Morava no campo e criava amorosamente um peru que lhe mandava religiosamente num cesto, pelo Natal. Acontece que o bicho era gordo, tão gordo e luzidio que mal cabia no forno e havia sempre um abanar de cabeças muito céptico: - Não cabe, mãe, é melhor ir a assar noutro lado, não vês que aqui não cabe?
Escusado. Era para assar ali e acabou-se, era uma homenagem a quem o dava com tanta amizade. O meu pai, muito engenhoso como sempre, desmontava o forno e fazia milagres para lá encaixar o peru, mas era certo e sabido que, a meio da assadura, o molho caía para fora do tabuleiro e pegava fogo. Uma fumarada, muita agitação, lá se compunha tudo e, muitas horas mais tarde, tostado e delicioso, o peru ocupava o seu lugar central na mesa de Natal. As asas carbonizadas eram disfarçadas com um artístico improviso e todos faziam as honras a tão delicioso presente.
Um ano aconteceu que o bicho era tão grande que, antes que a minha mãe o visse, o meu pai resolveu serrá-lo a meio para ser feito por duas vezes. Foi um drama, por pouco não tínhamos Consoada…
Num ano em que estive fora, o Natal foi a altura em que senti umas saudades impossíveis. Liguei para casa a meio da tarde, a imaginar a azáfama de que, pela primeira vez, eu não fazia parte. Atendeu uma das minhas irmãs, a voz alterada, a tentar não gritar comigo. "– O que há? Aconteceu alguma coisa? – perguntei em pânico. – Claro,- gritou ela - , tinhas que ligar logo na altura em que o peru está a arder?" Fiquei em suspenso, do outro lado do Atlântico, até confirmar que só se tinham carbonizado as asas…E fartei-me de rir sozinha, por ter apanhado em cheio aquele pedacinho de Natal de casa.
O “peru da Conceição” anulou para sempre qualquer competição. Nunca mais foram tão grandes, nem tão saborosos e, sobretudo, nunca mais nenhum teve honras de histórias para celebrar. Mas esses, os dela, são sempre lembrados como se estivessem à nossa frente.

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