sexta-feira, 30 de dezembro de 2005

"O Tempo, esse grande escultor"

Não se possui ninguém (mesmo os que pecam não o conseguem) e, sendo a arte a única forma de posse verdadeira, o que importa é recriar um ser e não prendê-lo. Gherardo, não te enganes sobre as minhas lágrimas: vale mais que os que amamos partam quando ainda conseguimos chorá-los.

Marguerite Yourcenar in “O Tempo, esse grande escultor”



Vi ontem na SIC Notícias, um excelente documentário de Cândida Pinto sobre Sá Carneiro e Snu Abecassis. Baseado em breves imagens de arquivo e depoimentos da família e amigos, o filme consegue construir de forma serena mas muito interessante a história de uma paixão que ficou para a História.
Este País do fado, da acomodação ao destino infeliz, tem um estranho fascínio pelos amores que tudo desafiam e se erguem como estandartes a mostrar que é possível, que “há razões que a razão desconhece” e que só os espíritos mesquinhos teriam preferido ver abafado o ímpeto da paixão. Também é certo que as histórias mais celebradas acabaram mal, numa espécie de vingança do destino que não deixa ser felizes para sempre os que desafiaram as páginas do que estava escrito. Talvez seja essa a moral nacional, não sei, Pedro e Inês deixaram marcas em rios de lágrimas engrossados pelas fontes do amor…
Nunca saberemos como terminaria a paixão de Snu e Sá Carneiro, se comportaria a lenta e difícil metamorfose do impulso avassalador para um amor profundo e sereno, que permite que duas pessoas envelheçam juntas, ou se se iria evaporando com a erosão dos anos, passada a rebeldia da transgressão e o fascínio de poder recomeçar quando tudo já parecia tão determinado.
A figura de Snu Abecassis aparece apenas desvendada, algo indecisa sobre qual seria o pendor dominante – se a jovem inquieta, ávida de aventuras, alegre e empreendedora, se a mulher culta e profissional competente, se a mãe distante, se a sedutora que fazia amizades e dinamizava círculos de convívio, se a mulher discreta, de roupas simples e elegantes, que causava sensação, se a apaixonada que troca os frios nórdicos e civilizados por um país meio esquecido e antiquado onde abre caminho sozinha, sem abdicar do seu estilo muito próprio…
Notável o modo discreto e franco, com um traço de amargura mal disfarçado, como dois dos filhos se lhe referiram “tenho pena de não ter conhecido melhor a minha mãe” ou “tinha um beijo de manhã, outro à noite, era um ritual…” em contraste com o afecto visível do filho de Sá Carneiro, a quem o pai disse, quando ele se juntou à nova família “vou educar-te outra vez”, o único que usou a palavra “saudade” para exprimir o seu sentimento.
Não sei quantas vezes será ainda efabulada esta paixão, as intrigas políticas, as pequenas ou grandes traições que a envolveram, quantas vezes a memória será corrigida e acrescentada. O Tempo, esse grande escultor, se encarregará de o fazer.

6 comentários:

  1. Concordo com o Pinho Cardão, mas ainda vou mais longe, se me permite, só uma mente feminina pode fazer uma análise tão simples e tão brilhante.

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  2. Há certos episódios da vida portuguesa que sempre me envergonharam como português. Um deles é a forma como os meus concidadãos se deram ao nojento deplante de julgarem moralmente Sá Carneiro e Snu Abecassis como se fossem portadores de lepra.

    Lembro-me, tinha 14/15 anos na altura, de ter ouvido esse nome estranho e pensar "coitada da mulher, o que é que ela tem que ver com esta estupidez?".
    Também nos cabe a nós todos um enorme pedido de desculpas à família da senhora (Sá Carneiro era político, sabia ao que ia), uma vez que à própria não é possível, e deveria ser o PR a fazê-lo que é para isso que serve.

    Era o povo que ia dar vivas ao Tonico e à Malvina ao aeroporto, e que ofendeu como quis quem vivia simplesmente a sua vida. Muito me envergonhou, na altura. Sei que o meu povo é infinitamente estúpido, mas também se sabe desculpar.

    Não esqueço, também, o responsável confesso da campanha moralista da altura que pretendia obter ganhos políticos mesmo que as vidas particulares fossem destruídas. Chama-se Mário Soares, é candidato a PR e um ser sem escrúpulos.

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  3. O aplauso dos meus bons amigos é um suplemento muito especial para este fim de ano!Muito obrigada. Um excelente 2006, cheio de inspiração e muitas alegrias, é o que vos desejo também!

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  4. Caro Tonibler, Sá Carneiro e Snu Abecassis desafiaram uma moral profundamente enraizada, bastante hipócrita, é verdade, mas muito forte na sua aparência. Seria utópico imaginar que não haveria críticas violentas à ousadia e mais ainda se situarmos a história na sua época. Talvez hoje a tolerância fosse muito maior (admito, não tenho a certeza) ou a crítica menos explícita, mas realmente não acho que fosse caso para essa vergonha nacional de que fala. Já quanto ao caso de Mário Soares, concordo inteiramente consigo. Eu não me lembrava disso e fiquei escandalizada quando vi ontem, nesse documentário, o modo cínico como o próprio contou o episódio, embrulhando o partido numas desculpas mal amanhadas e tendo mesmo o descaro de dizer que cumprimentou Snu como se nada fosse, depois de ter feito campanha explorando o "escândalo". Pior. Quando ela lhe virou a cara, e muito bem, MS contou que lhe disse que era a política, que a política tem destas coisas, Sá Carneiro era católico e afinal tinha deixado a família...MS era visita da casa.

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  5. Cara Suzana, lembro-me perfeitamente de ter sentido essa vergonha. Nacional, ou não. Aquela sensação "Ceus! Eu faço parte desta gente!".
    E lembro-me bem que moral era apenas a arma, não era o motivo. As críticas violentas vinham dos sectores "progressistas e operários"(onde vivia), não vinham dos sectores católicos. Era usar a vida pessoal para projectar ódio e inveja, naquela mania lusa de deitar abaixo. E isto é que me envergonha, não é a moral mais ou menos conservadora que, essa, gera críticas mas não são violentas, gera pena mas não gera vergonha.

    Quanto ao Mário Soares, já nem digo nada. Já só estou à espera ver o camarada Pinho Cardão a escrever impropérios sobre ele, conforme o sujeito vai fazendo por isso...:)

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  6. Foi, de facto, um documentário comovente, sobretudo naquela parte em que a Primeira Dama de então, Manuela Eanes, acólita da Opus Dei, se recusou a enviar um convite àquela que vivia numa união de facto com o Primei-Ministro Sá Carneiro.
    Pois é, meninas, como dizia o Pároco de São João de Deus, é casar ou professar...

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