sexta-feira, 4 de agosto de 2006

Purgatório

Quando era miúdo massacravam-me o juízo com a ameaça do inferno sempre que fazia asneiras e, na melhor das hipóteses, iria, quando morresse, para o purgatório, já que não tinha perfil ou capacidades de ir para o céu. Claro que não era um santinho nem para lá caminhava. Mas já começava a ter algumas dúvidas sobre alguns santos, isto é, se teriam direito a tamanho estatuto. As minhas dúvidas sobre quanto tempo teria de permanecer no purgatório nunca foram devidamente esclarecidas. Diziam-me que podia lá estar pouco tempo, séculos ou muitos milhares de anos. - Séculos?! Mas não há possibilidade de encurtar o tempo? Perguntei, com a maior naturalidade. - Sim, se alguém rezar por nós e se dermos esmolas para as alminhas do purgatório. O que me foram dizer. Corri logo para a caixa das alminhas do purgatório despejando as poucas moedas que levava para comprar os cromos do futebol e uma caixita de chicletes. Foi um grande sacrifício, confesso, mas ao mesmo tempo um alívio, ao pensar que poderia ter encurtado a estadia de algumas almas, empurrando-as para o céu. Desde então e durante algum tempo investi o que podia ser, na altura, considerado um verdadeiro PPRA (Plano de Poupança para a Reabilitação da minha Alma). Sempre que via uma caixinha de esmolas para as alminhas lá ia uma moedita. A outra situação em que dava uma esmola era para o Senhor da Ponte, mas por outros motivos. O Senhor, apesar de estar na cruz, numa capela octogonal, que só conseguíamos ver através de um minúsculo janelo gradeado, parecia que piscava o olho ao pessoal, com um sorriso meio cúmplice, e ajudava-nos nas nossas malandrices. Sucesso garantido, merecedor dos cinco tostões, um escudo ou vinte cinco mil réis, consoante a gravidade do disparate. Ah grande Senhor da Ponte!
O dia do juízo final constituía um grave problema caso me apanhasse ainda no purgatório. Corria o risco de não subir ou então ter que descer.
O anúncio do fim do mundo é uma constante assustadora. Guerras, ameaças climáticas, doenças infecciosas graves, bioterrorismo, bombas nucleares, colisão com meteoros, tudo serve e está ao nosso alcance. Mas, mesmo assim, é muito pouco provável que todos os seres humanos sejam exterminados. Haverá sempre algumas bolsas de resistentes, dotados de capacidades regeneradoras susceptíveis de ultrapassarem os problemas. Não é a primeira vez que ocorrem grandes tragédias. O que poderá acontecer, caso aconteça uma grande catástrofe, é o fim da civilização, o que não é sinónimo de fim da humanidade. Mas, os resistentes, apesar da regressão aos níveis mais primários, acabarão por descobrir novamente as flechas, a roda, a máquina a vapor, o automóvel, a bomba atómica, os chips, os computadores, os blogs e tudo o mais, e acabarão por arrebentar mais uma vez este planeta. É uma questão de tempo. Sendo assim, vamos adiando o dia do juízo final, o que é muito bom, porque espero poder ter algum rendimento do meu investimento infantil, isto é, se entretanto não liquidarem com o purgatório! Nunca se sabe...

4 comentários:

  1. Estimado Professor

    Seguindo com interesse os seus posts, queria apenas comentar-lhe este:
    Que se saiba, apenas dois meteoritos algumas vez "arrebentaram", ou quase com o planeta.
    Que me recorde, quando história era uma disciplina séria, guerras sempre pertenceram ao vocabulário dessa área do conhecimento, desde que se conheçe história e antes dela.
    Que tenha conhecimento somos espécie com carta de alforria há uns 200.000 anos e, pelo menos até ao momento, ainda não nos modificámos biologicamente.
    O mundo, no sentido mais literal do termo, pode acabar, mas garanto-lhe que nunca será por pbra e graça do homo sapiens, sapiens ou outra qualquer espécie, isso é topete novecentista
    Agora, cada um inventa e arranja os locais que mais lhe interessam........entre eles, o purgatório
    Cumprimentos
    Adriano Volframista

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  2. Caro Adriano Volframista

    De acordo. O eventual fim da civilização não é sinónimo de fim da humanidade. Se alguma “coisa” ocorrer não será por culpa do homem que, mesmo assim, poderá sobreviver. O que pretendo dizer, entre muitas outras coisas, é desmistificar determinadas correntes escatológicas que povoam o colectivo e que não contribuem para o progresso e bem-estar.
    Um ensaio de um colega chegou muito mais longe. Quando o Sol se extinguir, daqui a muitos milhões de anos, e caso não tenhamos emigrado para outras paragens, mesmo assim, as bactérias com as suas capacidades únicas de adaptação a condições extremas (que já se verificam de momento) e interessantes capacidades de comunicação entre si, poderão continuar a sobreviver criando aquilo que ele chama de “civilização bacteriana”, onde tudo correrá bem, desde que não comecem a criar religiões diferentes…
    Quanto ao purgatório, meu caro, foi um massacre desproporcionado e pelos vistos nada rentável…
    Cumprimentos.

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  3. Está lindo! *Clap, clap, clap* :)

    Mas tirando isso, caro Professor, acho inacreditável o que uma pessoa faz para enganar as crianças. É como a história do Pai Natal.

    Para mim, descobrir que não havia Pai Natal foi dramático. Não chorei mas, fiquei muito desiludido. No entanto, também é verdade que a desilusão durou pouco tempo. O peso dos presentes falou mais alto e a coisa passou-me depressa. Só que agora, o que é que eu digo aos meus sobrinhos? Não lhes posso dizer, assim de chapa, que não há Pai Natal (e muito menos que ele foi inventado pela Coca-cola), mas também não lhes posso dizer que há.

    Explicação para o Coelhinho da Páscoa e para os ovos, já arranjei (fui obrigado a encontrar uma explicação coerente pois, não quero que fiquem a pensar que os coelhos põem ovos. E então, transformei o coelho numa espécie de distribuidor de ovos postos por galinhas). Agora para o Pai Natal a coisa é mais complicada.

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  4. Caro Prof. Massano Cardoso

    Não vai ter de se procupar. Com as novas teorias de gestão a promover a redução das camadas hierárquicas, certamente assistiremos ao desaparecimento do purgatório.

    Parlelamente, admitindo que o purgatório cai na categoria dos entes públicos, seguramente será previsto um programa de formação de caracter excepcional, com a duração de algumas dezenas de horas, que faculte a habilitação necessária ao ingresso no paraíso.

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