sábado, 9 de setembro de 2006

O Pacto

Sem surpresa verifico que muitas das apreciações que estão a ser feitas sobre o pacto celebrado entre PS e PSD para a área da justiça centram-se na questão de saber quem ganhou e quem ficou a perder. E do lado de quem ganhou, quem afinal ganhou mais.
Os outorgantes, eles mesmos, esforçam-se por dar a entender que o mérito do acordo, sendo obviamente dos partidos, que revelam aliás um elevado sentido de responsabilidade, é todavia mais de um do que do outro. O próprio Primeiro-Ministro, no discurso de hoje à tarde a pretexto das Novas Fronteiras, não se eximiu a passar a mensagem, com absoluta claridade e sem meias palavras, de que se regozijava com o pacto construído sobre as propostas do PS contidas no programa do Governo.
Duas notas para além do registo desta esperada reacção dos intervenientes e dos que ficaram de fora.
Primeira nota. Sobre o mérito das soluções acordadas, para além de umas mal engendradas declarações de um ou de outro representante dos agora chamados "operadores judiciários", nada! Admito que se saiba pouco sobre as medidas, mas também não estranharei que quando se souber tudo, a atitude seja o oco discurso habitual.
Segunda nota. Boa parte das reformas agora pactuadas entre PS e PSD foram ditadas, como se sabe, pelos processos judiciais mais mediatizados dos últimos anos. E no entanto, o problema dos excessos de prisão preventiva, da violação vergonhosa, impune e sistemática do segredo de justiça, da morosidade intolerável dos processos, do obscuro sistema de acesso ao patamar superior da judicatura, da inadequação do modelo de governação das magistraturas, do papel do ministério público, dos pruidos em definir prioridades da política criminal, da falta de coordenação dos meios de investigação, da competência e da eficácia desta, da protecção contra a agressão mediática quase diária de direitos fundamentais dos cidadãos a contas com a justiça, da discussão fora dos tribunais dos casos judiciais por advogados e magistrados que despem a toga ou a beca e vestem o fato de sindicalista ou de opinador acentuando a paranoia onde deveria haver ponderação e serenidade, não são problemas que nasceram com os casos Moderna, Casa Pia, Apito Dourado ou outros a que o País assiste com a mesma gula que acompanha a telenovela das 9.
Muito antes destes processos, centenas, milhares de portugueses foram vítimas de prisão injusta porque injustificada e sem formação de culpa. Antes deles ficou incontáveis vezes sem defesa e protecção o bom nome, a família, a fazenda ou a liberdade porque a demora da justiça se transformou em aviltante denegação de justiça. Antes deles, após a espera de muitos e muitos anos portugueses e portuguesas morreram sem verem a indemnização a que tinham direito sentenciada ou a pensão a que tinham direito ignorada ou a dignidade e o seu bom nome repostos após reiterados enxovalhos e vexames públicos.
O mal residiu então nas leis que ainda temos? Talvez residisse. Nas leis feitas precisamente pelos mesmos que agora as reformam numa retratação louvável...
Mas não pode deixar de sentir-se que o repentino despertar para essa realidade teve afinal como causa não o protesto dos milhares de portugueses a quem foi feita má justiça porque baseada em suposta má lei, mas o altíssimo som das parangonas sobre os casos mais mediáticos envolvendo mediáticas personagens!

Eu, que levo mais de 20 anos de trabalho como advogado, tenho o meu juizo feito sobre os males da justiça. Há já algum tempo que se me faleceram as ilusões sobre a eficácia destas reformas quando ditadas pelas conjunturas que revelam, afinal de contas, a fraqueza do Estado em aplicar a lei a todos. Mas estou pronto e interessado em tornar-me no mais entusiástico optimista se por efeito de algumas das leis cuja promessa de alteração agora se contratualizou, puder ver resolvidas definitivamente acções que propuz nos ínicios dos anos 90, julgadas no fim dessa década ou já neste século, a aguardar há 3 anos a redacção da sentença em 1ª instância!

Para que na mente de quem me lê não fique a dúvida acerca da razão para este cepticismo, direi que o mal não está, a meu ver, onde o querem surpreender.
O mal está antes na atitude da sociedade perante a justiça. Questão que daria para um livro gordo!
E está sobretudo na boa formação humana e cívica, na atitude e na competência de advogados, magistrados e funcionários. O problema está em que, faltando estas, a falta não se supre por decreto. Infelizmente...
Haverá hipóteses de se pactuar algo capaz de mudar a atitude das pessoas perante a justiça? E outro capaz de mudar as pessoas que fazem a justiça? Se houver, nesses depositarei esperança. E sentirei então vontade de, como nos ingénuos primeiros tempos, voltar a escrever justiça com maiuscula.

1 comentário:

  1. Os casos mais mediáticos trouxeram ao comum cidadão a consciência de que metade do estado português é um lixo fascista com pouca solução.
    Eu confesso que não sabia. Não sabia que um amanuense a quem se chama magistrado põe um deputado da república sob escuta, não sabia que se podia estar 4 anos preso sem culpa formada, não sabia que os meus segredos podem ser tornados públicos por esses mesmo amanuenses sem que ninguém, senão os próprios, tenha poder para o impedir. Não sabia que se podia espezinhar um pessoa como fizeram com o Pedroso, o Isaltino e com a Felgueiras.


    Diz-me que é uma questão de atitude da sociedade perante a justiça. Talvez. Afinal, nunca nos deu para chamar os juízes de ladrões corruptos, tentar dar-lhes umas cachaporradas no meio da rua, como fizémos com os políticos. Nunca exigimos que os magistrados se submetessem a sufrágio. Nunca matamos um ou dois. Talvez.

    Mas espero agora que os nossos representantes do PSD e do PS o façam. Já não era mau se obrigassem o sistema de justiça a cumprir a lei fundamental deste país. Tenho alguma esperança que consigam alguma coisa. Mas também lhe digo, se dois partidos repletos de advogados e juristas se não conseguem fazer nada de jeito com isto, vão fazer com o quê?

    ResponderEliminar