A propósito do post do Massano Cardoso, lembrei-me de mais uma das minhas intermináveis histórias, que não resisto a contar, sem com isso querer desviar a atenção dos interessantes assuntos que se debatem aqui...
Maria Gertrudes era uma rebelde. Um retrato a sépia fixa-a ainda menina, em pé, muito direita e séria ao lado da professora que ia a casa ensinar-lhe as primeiras letras, e já lhe denuncia os traços de uma personalidade forte que havia de se acentuar ao longo da sua vida. Vestida a rigor, entre folhos, laços e caracóis, as botinas justas e um caderno em evidência, a garota não disfarça a boca torcida num esgar de contrariedade, os olhos duros de impaciência para o fotógrafo e as costas meio viradas, como se quisesse escapar ao rigor da mestra e à tirania da pose.
Era a mais velha de seis irmãos e moravam em Lisboa, na Rua da Prata, local estratégico que lhe permitiu acompanhar de perto os motins que antecederam o 5 de Outubro. Muitos, muitos anos depois, ainda contava às netas, com paixão, o dia em que ouviram uma correria e viram um jovem esfarrapado a fugir, esbaforido. A certa altura fraquejou e, sentindo-se quase apanhado, cortou um pulso e, com o sangue que escorria, escreveu na parede “República ou morte!”, esborratando o ponto de exclamação quando o agarraram para o levar para os calabouços.
Nem pelo facto de ser mulher desistiu de defender activamente as suas convicções, e juntou-se aos irmãos na campanha de Bernardino Machado, cheia de um idealismo de que fazia parte a instrução das mulheres e o direito a terem voz activa na política nacional.
Dada a paixões como era, andaria pelos 17 anos quando começou a ir à janela trocar olhares com um rapazinho seu vizinho, que achava pálido e enfermiço mas que lhe tocou o coração. Trocavam bilhetinhos cada vez mais intensos, dizia ela que ele era um poeta e uma alma sensível, não admirava que o pai o mantivesse em apertada vigilância por temer que o filho único virasse a cara aos negócios de família.
Um dia o rapaz não apareceu na varanda. Nem no outro, nem no outro. Maria Gertrudes zangou-se, achou que tinha sido iludida, o malandro teria outras intenções e ela ali a deixar-se encantar. Depois, as janelas da casa ficaram fechadas, numa sombra negra que pronunciava desgraça. Vieram-lhe dizer que o rapaz tinha morrido na véspera, de uma apendicite aguda, e que a família, destroçada, ia viver para fora.
Maria Gertrudes fechou a alma e vestiu-se de negro. Jurou que nunca casaria e que jamais pisaria uma festa ou bailarico. Arrepiou o cabelo num carrapito austero e passou a acompanhar o pai e os irmãos nas suas actividades, deixando para a mãe e as irmãs os bordados e as lides domésticas. Nunca a viram numa festa e nos bailes da aldeia ficava sentada com os mais velhos, repelindo os convites para dançar. Nem ligou quando uma penugem negra começou a despontar no lábio superior, carregando-lhe o semblante.
Morreu o pai, casaram os irmãos, a política desiludiu-a brutalmente mas sempre foi uma republicana convicta.
Andaria pelos 36 anos quando ele lhe passou à porta e os olhares se cruzaram.
Não entendeu logo aquela batida do coração, achou que o sono não chegava porque andava nervosa com o casamento da irmã mais nova, a última que faltava orientar e a sua preferida.
Gostou da coincidência dos dias seguintes, aquele homem de bela figura, feições limpas e bigode bem aparado, a passar por ela como se lhe conhecesse os passos. Chegaram à fala, ele era viúvo, sem filhos, apenas recomposto da morte da mulher às garras de uma tuberculose que não tinha conseguido vencer.
Deu brado quando ela apareceu com o primeiro vestido de luto aliviado. Foi fácil aos irmãos descobrirem a razão do fenómeno, puseram-se em campo e não gostaram da ameaça, um homem sem fortuna nem família, apenas a mãe, viúva desde a tenra infância dos filhos.
Sabendo o seu génio e vontade de ferro, abordaram-na pelo ponto fraco da sua importância na família, a responsabilidade pelos irmãos, a mãe doente e incapaz de se ver sem ela. Tinha sido ela a querer assim, não podia agora seguir outro caminho, não precisava de mais ninguém, eles contavam com ela como chefe do clã.
Maria Gertrudes olhava-se ao espelho, ainda era uma mulher bonita. Apesar da austeridade da sua figura alta, o cabelo forte e preto, preso com simplicidade, brilhavam-lhe os olhos redondos e enormes e tinha a boca firme, sombreada pelo buço que nunca disfarçara e que considerava um traço da sua personalidade. Hesitava, o José despertava nela um sentimento que julgava morto, uma felicidade que só via nos outros e que se tinha habituado a detectar e seguir, atenta mas excluída.
Tomou por fraqueza o que sentia e deixou de lhe aparecer, mas abandonou o luto.
Quando lhe tocaram à porta, viu um moço de recados com um ramo de violetas na mão, estendendo-lhe encabulado um envelope fechado. Aí, tinha escrito José: “ Não tires esse luto teimoso. Quando o meu caixão te passar à porta, pelo desgosto de te não ver, atira-me o raminho de violetas para te guardar comigo para sempre”.
Casaram sem festa nem família, numa cerimónia civil que causou o maior escândalo.
Era a mais velha de seis irmãos e moravam em Lisboa, na Rua da Prata, local estratégico que lhe permitiu acompanhar de perto os motins que antecederam o 5 de Outubro. Muitos, muitos anos depois, ainda contava às netas, com paixão, o dia em que ouviram uma correria e viram um jovem esfarrapado a fugir, esbaforido. A certa altura fraquejou e, sentindo-se quase apanhado, cortou um pulso e, com o sangue que escorria, escreveu na parede “República ou morte!”, esborratando o ponto de exclamação quando o agarraram para o levar para os calabouços.
Nem pelo facto de ser mulher desistiu de defender activamente as suas convicções, e juntou-se aos irmãos na campanha de Bernardino Machado, cheia de um idealismo de que fazia parte a instrução das mulheres e o direito a terem voz activa na política nacional.
Dada a paixões como era, andaria pelos 17 anos quando começou a ir à janela trocar olhares com um rapazinho seu vizinho, que achava pálido e enfermiço mas que lhe tocou o coração. Trocavam bilhetinhos cada vez mais intensos, dizia ela que ele era um poeta e uma alma sensível, não admirava que o pai o mantivesse em apertada vigilância por temer que o filho único virasse a cara aos negócios de família.
Um dia o rapaz não apareceu na varanda. Nem no outro, nem no outro. Maria Gertrudes zangou-se, achou que tinha sido iludida, o malandro teria outras intenções e ela ali a deixar-se encantar. Depois, as janelas da casa ficaram fechadas, numa sombra negra que pronunciava desgraça. Vieram-lhe dizer que o rapaz tinha morrido na véspera, de uma apendicite aguda, e que a família, destroçada, ia viver para fora.
Maria Gertrudes fechou a alma e vestiu-se de negro. Jurou que nunca casaria e que jamais pisaria uma festa ou bailarico. Arrepiou o cabelo num carrapito austero e passou a acompanhar o pai e os irmãos nas suas actividades, deixando para a mãe e as irmãs os bordados e as lides domésticas. Nunca a viram numa festa e nos bailes da aldeia ficava sentada com os mais velhos, repelindo os convites para dançar. Nem ligou quando uma penugem negra começou a despontar no lábio superior, carregando-lhe o semblante.
Morreu o pai, casaram os irmãos, a política desiludiu-a brutalmente mas sempre foi uma republicana convicta.
Andaria pelos 36 anos quando ele lhe passou à porta e os olhares se cruzaram.
Não entendeu logo aquela batida do coração, achou que o sono não chegava porque andava nervosa com o casamento da irmã mais nova, a última que faltava orientar e a sua preferida.
Gostou da coincidência dos dias seguintes, aquele homem de bela figura, feições limpas e bigode bem aparado, a passar por ela como se lhe conhecesse os passos. Chegaram à fala, ele era viúvo, sem filhos, apenas recomposto da morte da mulher às garras de uma tuberculose que não tinha conseguido vencer.
Deu brado quando ela apareceu com o primeiro vestido de luto aliviado. Foi fácil aos irmãos descobrirem a razão do fenómeno, puseram-se em campo e não gostaram da ameaça, um homem sem fortuna nem família, apenas a mãe, viúva desde a tenra infância dos filhos.
Sabendo o seu génio e vontade de ferro, abordaram-na pelo ponto fraco da sua importância na família, a responsabilidade pelos irmãos, a mãe doente e incapaz de se ver sem ela. Tinha sido ela a querer assim, não podia agora seguir outro caminho, não precisava de mais ninguém, eles contavam com ela como chefe do clã.
Maria Gertrudes olhava-se ao espelho, ainda era uma mulher bonita. Apesar da austeridade da sua figura alta, o cabelo forte e preto, preso com simplicidade, brilhavam-lhe os olhos redondos e enormes e tinha a boca firme, sombreada pelo buço que nunca disfarçara e que considerava um traço da sua personalidade. Hesitava, o José despertava nela um sentimento que julgava morto, uma felicidade que só via nos outros e que se tinha habituado a detectar e seguir, atenta mas excluída.
Tomou por fraqueza o que sentia e deixou de lhe aparecer, mas abandonou o luto.
Quando lhe tocaram à porta, viu um moço de recados com um ramo de violetas na mão, estendendo-lhe encabulado um envelope fechado. Aí, tinha escrito José: “ Não tires esse luto teimoso. Quando o meu caixão te passar à porta, pelo desgosto de te não ver, atira-me o raminho de violetas para te guardar comigo para sempre”.
Casaram sem festa nem família, numa cerimónia civil que causou o maior escândalo.
Dois dias depois, entravam na casa de Benfica, morada de férias da família e que lhe tinha cabido a ela por decisão do pai. “Hão-de todos cá vir ter comigo”, dizia ela, ofendida e revoltada. E assim foi.
Tiveram duas filhas, cinco netos, e celebraram juntos 52 anos de casamento.
A Maria Gertrudes todos prestavam vassalagem sem discussão, num círculo enorme que incluía tios, tias e sobrinhos de várias gerações. Salvo o genro, que nunca lhe apreciou o bigode evidente e o tom ríspido com que dava sentenças sobre o rumo que devia dar à sua vida.
Quando morreu, com 92 anos, a família sempre atribuiu a morte fulminante à fúria que teve quando lhe levaram um padre para a confessar, por alturas da Páscoa.
Tiveram duas filhas, cinco netos, e celebraram juntos 52 anos de casamento.
A Maria Gertrudes todos prestavam vassalagem sem discussão, num círculo enorme que incluía tios, tias e sobrinhos de várias gerações. Salvo o genro, que nunca lhe apreciou o bigode evidente e o tom ríspido com que dava sentenças sobre o rumo que devia dar à sua vida.
Quando morreu, com 92 anos, a família sempre atribuiu a morte fulminante à fúria que teve quando lhe levaram um padre para a confessar, por alturas da Páscoa.
História deliciosa!
ResponderEliminarQuanto ao último parágrafo, também estou de acordo com a opinião da família. Fazer uma coisa dessas, naquela idade e com uma história de "buço" vigorante, é mesmo para matar...
Mas que bela e determinada avó!...
ResponderEliminarAlguma vez entrou no carro do genro?
Cara Suzana Toscano,
ResponderEliminarParabéns, pela surpresa, suponho, que nos fez a todos. O conto que aqui nos trouxe é bem bonito : pela história que conta e pela forma em que está vazado, em bom ritmo narrativo. Revela veia literária. Conviria explorar esse «recurso endógeno», talvez reprimido ou negligenciado. Aguardemos, pois.
Pois não, Pinho Cardão, o Pontiac era muito selectivo.
ResponderEliminarCaro António Viriato, ainda bem que gostou, eu divirto-me imenso a contar histórias, a escrita é um prazer e uma terapia...
Caro Massano Cardoso, ainda bem que confirma o diagnóstico, há coisas que, mesmo que a ciência não o demmonstre, são instintivas.:)
Suzana,
ResponderEliminarTão giro imaginar naqueles tempos como as pessoas namoravam ou namoriscavam, se conheciam e passavam dos olhares à acção, como expressavam o amor e os seus encantos...
Mas já naquela altura se faziam casamentos às escondidas. A Maria Gertrudes era realmente uma mulher rebelde para o seu tempo...
Uma história tão bem contada que à medida que a vamos lendo vamos sentindo a vida da Maria Gertrudes. Parabéns Suzana, a sua veia literária está cada vez mais bonita.
Suzana,
ResponderEliminarÉ sempre um prazer ouvir histórias tão fabulosas! Alguém com histórias maravilhosas como esta têm até uma obrigação moral de as partilhar de forma tão envolvente como a Suzana faz! A Sara e a Catarina também devem estar muito orgulhosas da mãe que têm!! ;)
Beijinhos.