quinta-feira, 29 de março de 2007

Uma Mulher de Buço

A propósito do post do Massano Cardoso, lembrei-me de mais uma das minhas intermináveis histórias, que não resisto a contar, sem com isso querer desviar a atenção dos interessantes assuntos que se debatem aqui...
Maria Gertrudes era uma rebelde. Um retrato a sépia fixa-a ainda menina, em pé, muito direita e séria ao lado da professora que ia a casa ensinar-lhe as primeiras letras, e já lhe denuncia os traços de uma personalidade forte que havia de se acentuar ao longo da sua vida. Vestida a rigor, entre folhos, laços e caracóis, as botinas justas e um caderno em evidência, a garota não disfarça a boca torcida num esgar de contrariedade, os olhos duros de impaciência para o fotógrafo e as costas meio viradas, como se quisesse escapar ao rigor da mestra e à tirania da pose.
Era a mais velha de seis irmãos e moravam em Lisboa, na Rua da Prata, local estratégico que lhe permitiu acompanhar de perto os motins que antecederam o 5 de Outubro. Muitos, muitos anos depois, ainda contava às netas, com paixão, o dia em que ouviram uma correria e viram um jovem esfarrapado a fugir, esbaforido. A certa altura fraquejou e, sentindo-se quase apanhado, cortou um pulso e, com o sangue que escorria, escreveu na parede “República ou morte!”, esborratando o ponto de exclamação quando o agarraram para o levar para os calabouços.
Nem pelo facto de ser mulher desistiu de defender activamente as suas convicções, e juntou-se aos irmãos na campanha de Bernardino Machado, cheia de um idealismo de que fazia parte a instrução das mulheres e o direito a terem voz activa na política nacional.
Dada a paixões como era, andaria pelos 17 anos quando começou a ir à janela trocar olhares com um rapazinho seu vizinho, que achava pálido e enfermiço mas que lhe tocou o coração. Trocavam bilhetinhos cada vez mais intensos, dizia ela que ele era um poeta e uma alma sensível, não admirava que o pai o mantivesse em apertada vigilância por temer que o filho único virasse a cara aos negócios de família.
Um dia o rapaz não apareceu na varanda. Nem no outro, nem no outro. Maria Gertrudes zangou-se, achou que tinha sido iludida, o malandro teria outras intenções e ela ali a deixar-se encantar. Depois, as janelas da casa ficaram fechadas, numa sombra negra que pronunciava desgraça. Vieram-lhe dizer que o rapaz tinha morrido na véspera, de uma apendicite aguda, e que a família, destroçada, ia viver para fora.
Maria Gertrudes fechou a alma e vestiu-se de negro. Jurou que nunca casaria e que jamais pisaria uma festa ou bailarico. Arrepiou o cabelo num carrapito austero e passou a acompanhar o pai e os irmãos nas suas actividades, deixando para a mãe e as irmãs os bordados e as lides domésticas. Nunca a viram numa festa e nos bailes da aldeia ficava sentada com os mais velhos, repelindo os convites para dançar. Nem ligou quando uma penugem negra começou a despontar no lábio superior, carregando-lhe o semblante.
Morreu o pai, casaram os irmãos, a política desiludiu-a brutalmente mas sempre foi uma republicana convicta.
Andaria pelos 36 anos quando ele lhe passou à porta e os olhares se cruzaram.
Não entendeu logo aquela batida do coração, achou que o sono não chegava porque andava nervosa com o casamento da irmã mais nova, a última que faltava orientar e a sua preferida.
Gostou da coincidência dos dias seguintes, aquele homem de bela figura, feições limpas e bigode bem aparado, a passar por ela como se lhe conhecesse os passos. Chegaram à fala, ele era viúvo, sem filhos, apenas recomposto da morte da mulher às garras de uma tuberculose que não tinha conseguido vencer.
Deu brado quando ela apareceu com o primeiro vestido de luto aliviado. Foi fácil aos irmãos descobrirem a razão do fenómeno, puseram-se em campo e não gostaram da ameaça, um homem sem fortuna nem família, apenas a mãe, viúva desde a tenra infância dos filhos.
Sabendo o seu génio e vontade de ferro, abordaram-na pelo ponto fraco da sua importância na família, a responsabilidade pelos irmãos, a mãe doente e incapaz de se ver sem ela. Tinha sido ela a querer assim, não podia agora seguir outro caminho, não precisava de mais ninguém, eles contavam com ela como chefe do clã.
Maria Gertrudes olhava-se ao espelho, ainda era uma mulher bonita. Apesar da austeridade da sua figura alta, o cabelo forte e preto, preso com simplicidade, brilhavam-lhe os olhos redondos e enormes e tinha a boca firme, sombreada pelo buço que nunca disfarçara e que considerava um traço da sua personalidade. Hesitava, o José despertava nela um sentimento que julgava morto, uma felicidade que só via nos outros e que se tinha habituado a detectar e seguir, atenta mas excluída.
Tomou por fraqueza o que sentia e deixou de lhe aparecer, mas abandonou o luto.
Quando lhe tocaram à porta, viu um moço de recados com um ramo de violetas na mão, estendendo-lhe encabulado um envelope fechado. Aí, tinha escrito José: “ Não tires esse luto teimoso. Quando o meu caixão te passar à porta, pelo desgosto de te não ver, atira-me o raminho de violetas para te guardar comigo para sempre”.
Casaram sem festa nem família, numa cerimónia civil que causou o maior escândalo.
Dois dias depois, entravam na casa de Benfica, morada de férias da família e que lhe tinha cabido a ela por decisão do pai. “Hão-de todos cá vir ter comigo”, dizia ela, ofendida e revoltada. E assim foi.
Tiveram duas filhas, cinco netos, e celebraram juntos 52 anos de casamento.
A Maria Gertrudes todos prestavam vassalagem sem discussão, num círculo enorme que incluía tios, tias e sobrinhos de várias gerações. Salvo o genro, que nunca lhe apreciou o bigode evidente e o tom ríspido com que dava sentenças sobre o rumo que devia dar à sua vida.
Quando morreu, com 92 anos, a família sempre atribuiu a morte fulminante à fúria que teve quando lhe levaram um padre para a confessar, por alturas da Páscoa.

6 comentários:

  1. História deliciosa!
    Quanto ao último parágrafo, também estou de acordo com a opinião da família. Fazer uma coisa dessas, naquela idade e com uma história de "buço" vigorante, é mesmo para matar...

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  2. Mas que bela e determinada avó!...
    Alguma vez entrou no carro do genro?

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  3. Cara Suzana Toscano,

    Parabéns, pela surpresa, suponho, que nos fez a todos. O conto que aqui nos trouxe é bem bonito : pela história que conta e pela forma em que está vazado, em bom ritmo narrativo. Revela veia literária. Conviria explorar esse «recurso endógeno», talvez reprimido ou negligenciado. Aguardemos, pois.

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  4. Pois não, Pinho Cardão, o Pontiac era muito selectivo.
    Caro António Viriato, ainda bem que gostou, eu divirto-me imenso a contar histórias, a escrita é um prazer e uma terapia...
    Caro Massano Cardoso, ainda bem que confirma o diagnóstico, há coisas que, mesmo que a ciência não o demmonstre, são instintivas.:)

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  5. Suzana,
    Tão giro imaginar naqueles tempos como as pessoas namoravam ou namoriscavam, se conheciam e passavam dos olhares à acção, como expressavam o amor e os seus encantos...
    Mas já naquela altura se faziam casamentos às escondidas. A Maria Gertrudes era realmente uma mulher rebelde para o seu tempo...
    Uma história tão bem contada que à medida que a vamos lendo vamos sentindo a vida da Maria Gertrudes. Parabéns Suzana, a sua veia literária está cada vez mais bonita.

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  6. Suzana,
    É sempre um prazer ouvir histórias tão fabulosas! Alguém com histórias maravilhosas como esta têm até uma obrigação moral de as partilhar de forma tão envolvente como a Suzana faz! A Sara e a Catarina também devem estar muito orgulhosas da mãe que têm!! ;)
    Beijinhos.

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