Ouvi ontem, da boca do senhor Presidente da República, estas palavras: "Quando a legislação não é aplicada, os cidadãos podem recorrer a instâncias próprias, ao sistema de justiça". Não me apercebi de imediato que se estava a referir à recusa por parte dos órgãos de governo da Madeira em aplicarem - leia-se, criarem as condições para aplicação - a lei que consente a interrupção da gravidez a pedido da mulher e o direito de o realizar no sistema público de saúde.
Só me dei conta que era esse o móbil da declaração presidencial quando o locutor o referiu. Confesso que fiquei perplexo. E mais perplexo fiquei quando ouvi o senhor Presidente da República, primeiro garante do respeito pela Constituição e pela regularidade do funcionamento de todas as instituições democráticas, declarar ainda que é "às instâncias próprias, judiciais, que compete analisar se há ou não cumprimento da lei e, se não há, aquilo que deve ser feito".
Não foi um momento particularmente feliz do senhor Presidente da República.
Sem discutir o acerto das opções vertidas na lei, o que está em causa é recusa de aplicação de uma lei da República numa parcela do território nacional, por deliberado acto de rebeldia de um governo regional. E a isso o supremo magistrado não pode nem deve ficar indiferente. Nem muito menos dar a entender que esse é um problema que se resolve com o recurso aos Tribunais pelas grávidas que não virem reconhecido um direito que - concorde-se ou não - lhes é outorgado pela vontade da Nação expressa em letra de lei!
Já agora, porque parece que de repente os mais elementares princípios são subvertidos da forma grosseira que a falta de crítica facilita, diga-se que a explicação dada pela Assembleia e pelo Governo Regional da Madeira para se recusarem a aplicar a lei é absurda e intolerável. A razão invocada, recordo, é esta: levantaram-se dúvidas sobre a constitucionalidade do diploma aprovado pela Assembleia da República, promulgado pelo Chefe do Estado e publicado no jornal oficial. Em vigor, portanto. Mas porque se levantaram essas dúvidas aguardam que o Tribunal Constitucional se pronuncie. Ora, as leis não deixam de ser leis - e de obrigar como tal - porque se requereu a fiscalização da sua conformidade constitucional. Beneficiam, como é óbvio, da presunção da sua constitucionalidade, desde logo em homenagem à legitimidade democrática de quem as fez. E é assim até que essa presunção seja elidida por decisão do órgão próprio.
Imaginam o que seria se cada um de nós se pudesse furtar ao cumprimento da lei por via da mera alegação da sua inconstitucionalidade? Alguém cumpriria as que consentem que o Estado nos vá constantemente ao bolso?
Totalmente de acordo.
ResponderEliminarNotável nota!
ResponderEliminarO senhor Presidente da República desconhece as suas funções?
Tem que "presidir"! Foi eleito para isso. Hum! Não estou a gostar desta atitude, tipo "Pilatos".
É o discurso do funcionário público: "Ai isso não é comigo! Vá ali à outra secção, que talvez eles possam ajudá-lo."
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