sexta-feira, 24 de agosto de 2007

Lamento por um veto

Acabo de saber que o senhor Presidente da República devolveu à Assembleia da República para reponderação, o decreto que visava alterar o velho Decreto-lei nº 48051, de 27 de Novembro de 1967 que define o regime jurídico comum da responsabilidade civil extra-contratual do Estado e das demais entidades públicas.
Suspeito que esta recusa de promulgação signifique o definitivo abandono de uma iniciativa legislativa que não é simpática a qualquer poder, sejam quais forem os seus titulares, muito mais em circunstâncias de dificuldade financeira, como são as actuais.
Trata-se, porém, de uma lei, a meu ver, essencial.
Num momento em que se acentuam as tendências do Estado para muscular os mecanismos de efectivação das responsabilidades dos cidadãos perante ele, é uma má notícia este retrocesso num processo que se arrasta pelo menos desde os tempos do XIV Governo Constitucional.
O decreto aprovado pela AR para valer como lei, numa visão aliás bem mais tímida do que outras aprovadas pelos Executivos subsequentes sobre o que deve ser a leal e honesta relação dos poderes públicos com os cidadãos quando estes sofrem as consequências danosas da actuação licita (mas anormal) ou ilicita daqueles, era importante para clarificar, por exemplo, a responsabilidade no exercício das funções política e legislativa e não só da administrativa; ou dos magistrados quando ajam com dolo ou culpa grave. Ou ainda para afastar as dúvidas que ainda hoje incrivelmente subsistem sobre o direito à indemnização do detido em prisão preventiva quando esta tenha sido decretada ilegalmente. Ou tornar operantes, com tudo o que carregam de preventivo, os mecanismos de responsabilização subjectiva através do direito de regresso sobre funcionários e agentes do Estado que actuem culposamente.
Sinto este insucesso legislativo como um retrocesso no esforço de modernizar o Estado. Porque o Estado moderno não pode servir-se da sua potestas para fugir a responsabilidades. Nem deve deter prerrogativas que lhe permitam subtrair-se ao dever de reparar os prejuizos que as suas acções e omissões provocam, quando faz todos os dias galarim em publicitar a severidade com que persegue os que, para consigo, entende e trata como relapsos.
Lamento, sobretudo, a fundamentação da devolução do decreto. Ao que parece, o senhor Presidente da República considera que o diploma poderia ter, se entrasse em vigor, "consequências financeiras cuja razoabilidade, em termos de esforço fiscal dos contribuintes, é questionável".
Pois para mim o que é questionável é que o Estado, e no Estado aqueles que agem incompetentemente com dolo ou com culpa, continuem imunes às consequências financeiras da sua incompetência.
Ficam a ganhar os contribuintes com o actual estado de coisas? Não tenho dúvidas: não ficam.

6 comentários:

  1. Caro JMFA,

    Estou perfeitamente de acordo com as suas palavras.

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  2. Estranho que o garante da defesa do estado de direito a confunda com a defesa do direito do estado. Qualquer dia está a fazer viagens às Seicheles só porque nunca lá esteve.

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  3. "Pois para mim o que é questionável é que o Estado, e no Estado aqueles que agem incompetentemente com dolo ou com culpa, continuem imunes às consequências financeiras da sua incompetência."

    That's the point.

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  4. Ora essa!

    Agora, imaginem o que qualquer português, mal disposto com o Estado, faria!

    Alguém construiu uma casa frente à minha que estraga a paisagem - Vá de processar o Estado.

    Alguém ficou à minha frente num concurso de promoção - Vá de processar o Estado.

    Imaginem todas as situações possíveis!

    Em vez de 40%, passaríamos a pagar 120% de impostos!

    Que vos parece?

    Era fácil, todos os anos teríamos de contrair um empréstimo, no montante dos nossos próprios encargos, acrescido de 120% dos nossos rendimentos, já que seria essa a nova taxa de imposto.

    Seria a insolvência absoluta nem menos de 2 anos!

    E como os próprios funcionários seriam responsabilizados, imagino como eu, "engiñero com 34 anos de bons serviços ao Estado", teria actuado, se soubesse que teria um cutelo desta ordem sobre o pescoço - teria mantido a independência de que me orgulho?

    Não sei!!!

    É claro que esta jurisdicionalização total da vida pública poderia ter algum interesse; mas esse não será o móbil de ninguém que se preze!

    Fico por uma interpretação mais prosaica: já imaginaram um Ferrari num caminho da cabras?

    Seria o caso!

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  5. Concordo com o "apócrifo".

    Fico curioso dos comentários do F. de Almeida, Tonibler e antrhax.

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  6. Anónimo16:11

    Prezados Aprocrifo e just-in-time:
    Aqui vai a minha muito sintética resposta - Artigo 22º da Constituição.
    Diz o seguinte, por muito que vos espante, há já 32 anos: "Responsabilidade das entidades públicas - O Estado e as demais entidades públicas são civilmente responsáveis, em forma solidária com os titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, por acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício, de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem".
    Nem no tempo da "antiga senhora" se questionava o dever de o Estado responder pelos danos que, mesmo no interesse geral, provoca com a sua acção e por sua omissão aos cidadãos. Há exactamente 40 anos que em Portugal vigora uma lei com os objectivos daquela que o Parlamento aprovou com um alcance, devo dizer de novo, bastante tímido face ás exigências do Estado de Direito. A responsabilidade do Estado e das demais entidades públicas é um imperativo do princípio fundamental da igualdade como, noutra sede mais apropriada, explicaria.
    Os exemplos que o prezado Apócrifo avança no seu comentário não fazem - desculpe-me a falta de diplomacia que espero não interprete como descortês - qualquer sentido, porquanto o decreto que o senhor Presidente da República vetou nunca poderia ser invocado para impor ao Estado a obrigação de indemnizar. Basta ler o decreto no site do parlamento para o perceber.

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