O senhor António Rosa faleceu há poucos dias tendo manifestado a vontade de ser sepultado no novo cemitério de Abrantes construído há quase três anos ao estilo americano.
A polémica à volta deste jardim prendeu-se com o facto de não poder haver jazigos, cruzes, relevos da sepulturas, flores ou outros ornamentos.
Quebrar as tradições não é nada fácil. Os autarcas, às tantas, já deviam sentir-se como novos Odoricos Paragauçus, personagem cómica criada pelo dramaturgo brasileiro Dias Gomes, e interpretado na série televisiva pelo actor Paulo Gracindo, que ansiava estrear o seu novo cemitério, promessa da campanha eleitoral. O pior é que ninguém morria!
Ao ler esta notícia recordei-me de dois momentos. O mais recente foi como deputado em que me pediram para estudar a feitura de um projecto-lei relativamente ao destino a dar aos restos mortais dos corpos depositados nos jazigos. Nalguns cemitérios, ao fim de alguns anos, muitos acabam por ser abandonados ou apresentarem sinais de degradação com urnas desfeitas originando uma atmosfera pouco digna, ou mesmo nada. Quando fui contactado para esta tarefa tinha acabado de ir a um funeral em que constatei casos semelhantes, num cemitério de Coimbra, tendo ficado indignado com quadros verdadeiramente macabros. É certo que estamos a falar do terreno dos mortos, mas o facto destes não se importarem, não significa que não sejam respeitados, respeito esse que é extensível aos vivos quer sejam ou não familiares. Aceitei a incumbência e, para o efeito, adquiri várias obras sobre a matéria com o objectivo de estudar vários aspectos, sobretudo os tempos mínimos necessários à remoção dos restos mortais e os destinos a dar-lhes. Não descrevo as obras, porque, de facto, são lúgubres, mas, curiosamente, aprendi muito!
O outro momento teve a ver com o facto de há muitos anos ter ido a um curso de verão numa universidade norte-americana.
Fiquei instalado numa residência universitária. Quando cheguei ao quarto, já a tarde ia avançada, deparei, através da janela, com um belo e frondoso parque do outro lado da rua com gradeamento metálico a relembrar o do Jardim Botânico em Coimbra. Árvores de grande porte, provavelmente centenárias, enxameavam um terreno de características irregulares, tipo colinas, com arruamentos sinuosos, canteiros floridos, relvado bem aparado, parecendo-me descortinar um ou outro banco, enfim uma paisagem muito encantadora. Pensei na sorte em ter aquele quadro mesmo em frente. Assim que tivesse uns momentos livres teria que dar uma volta pelo jardim. Ao fim do segundo ou terceiro dia, tendo a tarde livre, dispus-me a visitá-lo. Olhei pela janela, vi pessoas a passear, outras sentadas, crianças a andar de bicicleta, uma senhora a empurrar um carrinho de bebé, um jovem a fazer jogging e o jardineiro em cima de um cortador da relva a andar de um lado para o outro, ou seja vida no parque. Contornei o gradeamento à procura da entrada. Assim que entrei cruzei-me com algumas pessoas que revelaram a sua simpatia cumprimentando-me, fazendo recordar as saudações que se fazem nos nossos meios pequenos. Não foi preciso muito tempo - bastou contornar a primeira colina - para verificar a existência de pedras tumulares disseminadas, aparentemente ao acaso, revelando estar num cemitério! Cemitério muito diferente dos nossos, quase que me apeteceria dizer alegre, mas cemitérios alegres é algo que não existe. No entanto, sentia-se uma certa paz e até uma beleza difícil de explicar, ao ponto de as crianças e os adultos partilharem o espaço para actividades lúdicas sem se incomodarem.
Pensar na morte não é agradável, mas pensei que se um dia pudesse ser enterrado num local igual a este contribuindo para a beleza e frondescentes árvores e flores e permitir uma sensação de tranquilidade aos familiares não deixaria de ser uma pequena maravilha.
O senhor António Rosa teve bom gosto ao optar pelo novo cemitério e os autarcas de Abrantes estão de parabéns pela iniciativa.
Se o cemitério construído por Oderico Paragauçu fosse idêntico a este estou certo de que não se importaria em ser o primeiro a inaugurá-lo esperando o tempo que fosse preciso...
A polémica à volta deste jardim prendeu-se com o facto de não poder haver jazigos, cruzes, relevos da sepulturas, flores ou outros ornamentos.
Quebrar as tradições não é nada fácil. Os autarcas, às tantas, já deviam sentir-se como novos Odoricos Paragauçus, personagem cómica criada pelo dramaturgo brasileiro Dias Gomes, e interpretado na série televisiva pelo actor Paulo Gracindo, que ansiava estrear o seu novo cemitério, promessa da campanha eleitoral. O pior é que ninguém morria!
Ao ler esta notícia recordei-me de dois momentos. O mais recente foi como deputado em que me pediram para estudar a feitura de um projecto-lei relativamente ao destino a dar aos restos mortais dos corpos depositados nos jazigos. Nalguns cemitérios, ao fim de alguns anos, muitos acabam por ser abandonados ou apresentarem sinais de degradação com urnas desfeitas originando uma atmosfera pouco digna, ou mesmo nada. Quando fui contactado para esta tarefa tinha acabado de ir a um funeral em que constatei casos semelhantes, num cemitério de Coimbra, tendo ficado indignado com quadros verdadeiramente macabros. É certo que estamos a falar do terreno dos mortos, mas o facto destes não se importarem, não significa que não sejam respeitados, respeito esse que é extensível aos vivos quer sejam ou não familiares. Aceitei a incumbência e, para o efeito, adquiri várias obras sobre a matéria com o objectivo de estudar vários aspectos, sobretudo os tempos mínimos necessários à remoção dos restos mortais e os destinos a dar-lhes. Não descrevo as obras, porque, de facto, são lúgubres, mas, curiosamente, aprendi muito!
O outro momento teve a ver com o facto de há muitos anos ter ido a um curso de verão numa universidade norte-americana.
Fiquei instalado numa residência universitária. Quando cheguei ao quarto, já a tarde ia avançada, deparei, através da janela, com um belo e frondoso parque do outro lado da rua com gradeamento metálico a relembrar o do Jardim Botânico em Coimbra. Árvores de grande porte, provavelmente centenárias, enxameavam um terreno de características irregulares, tipo colinas, com arruamentos sinuosos, canteiros floridos, relvado bem aparado, parecendo-me descortinar um ou outro banco, enfim uma paisagem muito encantadora. Pensei na sorte em ter aquele quadro mesmo em frente. Assim que tivesse uns momentos livres teria que dar uma volta pelo jardim. Ao fim do segundo ou terceiro dia, tendo a tarde livre, dispus-me a visitá-lo. Olhei pela janela, vi pessoas a passear, outras sentadas, crianças a andar de bicicleta, uma senhora a empurrar um carrinho de bebé, um jovem a fazer jogging e o jardineiro em cima de um cortador da relva a andar de um lado para o outro, ou seja vida no parque. Contornei o gradeamento à procura da entrada. Assim que entrei cruzei-me com algumas pessoas que revelaram a sua simpatia cumprimentando-me, fazendo recordar as saudações que se fazem nos nossos meios pequenos. Não foi preciso muito tempo - bastou contornar a primeira colina - para verificar a existência de pedras tumulares disseminadas, aparentemente ao acaso, revelando estar num cemitério! Cemitério muito diferente dos nossos, quase que me apeteceria dizer alegre, mas cemitérios alegres é algo que não existe. No entanto, sentia-se uma certa paz e até uma beleza difícil de explicar, ao ponto de as crianças e os adultos partilharem o espaço para actividades lúdicas sem se incomodarem.
Pensar na morte não é agradável, mas pensei que se um dia pudesse ser enterrado num local igual a este contribuindo para a beleza e frondescentes árvores e flores e permitir uma sensação de tranquilidade aos familiares não deixaria de ser uma pequena maravilha.
O senhor António Rosa teve bom gosto ao optar pelo novo cemitério e os autarcas de Abrantes estão de parabéns pela iniciativa.
Se o cemitério construído por Oderico Paragauçu fosse idêntico a este estou certo de que não se importaria em ser o primeiro a inaugurá-lo esperando o tempo que fosse preciso...
Compreende-se caro professor Massano Cardoso, que os novos estilos sociais de vida, sobretudo nas cidades, são incompatíveis com alguns preceitos fúnebres que encontram aceitação e seguimento nas sensibilidades humanas, sobretudo naquelas que acompanham o mesmo, com o culto religioso e penso no ocidente serão a maioria.
ResponderEliminarPor isso penso que não será fácil encontrar uma fórmula que concilie com a dignidade de que o caro professor fala, neste (como é habito) grandioso post.
Os cemitérios relvados, arborizados, decorados, serão possívelmente mais bem aceites e úteis, numa sociedade menos supersticiosa e menos arreigada aos preceitos religiosos, na medida em que se convertem num local de convívio,dinâmico.
Penso que até o clero fosse o sector mais resistente à introducção da generalização deste modelo, mas até posso muito bem estar a fazer uma ideia errada.
Pessoalmente, gostava de ser enterrado naquilo que me pertençe, um cantinho pacato do meu terreno, de onde se usufrui uma belíssima vista, só tem um senão... é que a vista é orientada a nascente, o que inviabiliza a "coisa" dado que a cabeça deve ficar orientada para norte ou nascente. Tambem não sei se o "pessoal" cá em casa ia na conversa, mas, pelo andar da carroagem, não me admiro mesmo nada que daqui a algum tempo, cada um vá passar a ter de enterrar os seus mortos. Não me admiro mesmo nada.
No cemitério de Monchique, em Guimarães, a coisa também era para ser mais ou menos assim, sem "jazigos, cruzes, relevos das sepulturas, flores ou outros ornamentos", mas depois lá se percebeu que o povo manda, e vota, e agora, quem lá for visitar o cemitério galardoado com prémio de arquitectura paisagística lá verá "jazigos, cruzes, relevos das sepulturas, flores ou outros ornamentos".
ResponderEliminarOlhar para um relvado e sentir como morte se transforma em vida ou deixar flores e sentir como a vida se transforma em morte.
ResponderEliminarA Leonor toca em aspectos que caracterizam a sensibilidade humana: "olhar e sentir", com a inevitável repercussão no entendimento da morte, ou... na transformação da vida.
ResponderEliminar;)
Afinal cara Lenor, já sabemos que tudo se transforma e que essa transformação vai tornando a vida temporal em eterna.
;)
interessante post, porque eu nunca me deu para pensar nele e não conhecia nenhum cemitério-jardim.
ResponderEliminarTambém, vi esses cemitérios americanos, reflexo de uma cultura bem diferente, sem a visão terrífica da morte como distanciamento ou com monumentos que querem prolongar na morte o que se foi em vida, rico ou pobre, importante ou invisível. Visitei este ano o cemitério da Normandia, um relvado imenso só com cruzes brancas muito alinhadas, um silência tranquilo, famílias a passear sem a gravidade cisrcunspecta que assumimos quando aqui visitamos os nossos mortos. Talvez por cada vez menos nos identificarmos com essa cultura se assista a um crescente número de cremações, enquanto não conseguirmos conviver com naturalidade com o espaço que reservamos aos que já partiram.
ResponderEliminarBelissimo post, Prof. Massano, como sempre.