Na minha adolescência, as férias do Verão eram passadas, invariavelmente, na terra, em amenos e divertidos convívios com os colegas e outros jovens que nessa época vinham das cidades. O local de encontro, “Oásis”, era uma esplanada isolada junto à ponte do rio Dão, aproveitando um velho parque, com belas e frondosas árvores, entre as quais sobressaíam gigantescos cedros impedindo o sol de penetrar no espaço, a meio caminho entre a estação e a vila. Tardes e noites com jogos, música, conversas e alguns mosquitos. Durante a tarde, depois da digestão feita, dávamos uma saltada ao rio, tomávamos umas boas banhocas acabando por repousar mais uns momentos até fazer horas para o jantar, rápido, findo o qual voltávamos ao “Oásis” para a noite, que tinha que acabar antes das doze badaladas, excepto em alguns dias de festa. Mesmo assim, a hora limite era, no meu caso, até à uma, sendo um problema se chegasse meia hora depois. Feitas as contas ainda eram uns razoáveis quilómetros a pé que tinha que fazer diariamente.
No Verão dos meus quinze anos, juntou-se ao nosso grupo duas jovens que não conhecíamos de lado nenhum. Sabíamos que estavam a habitar a casa da curva do bairro. O pai, um senhor bem parecido, com aspecto de ter idade na casa do meu, passou a ser objecto de curiosidade. Quem seria? Donde vinha? Por que razão passou a ocupar uma casa, que ninguém se lembrava de ter sido habitada. Uns diziam que era engenheiro, que vinha para as obras, outros desconfiavam e diziam que não tinha cara disso. Ao fim de algum tempo a curiosidade foi satisfeita, tratava-se de um escritor. Mas o que é que fazia um escritor na vila? Devia escrever, claro. Mas porque razão escolheu o nosso espaço? Se o escolheu devia ter os seus motivos. Vi-o várias vezes a conversar junto do café da vila e fiquei a saber o seu nome: Mário Braga. Presumo que passou mais do que um Verão.
Uma das filhas, no nosso “Oásis”, desafiou-nos para um jogo de cartas. – Vamos jogar à canasta? – Canasta?! Que jogo é esse?!. Ficou com ar meio surpreendida com a nossa resposta e disse que era um jogo em que se utilizavam as 52 cartas. Aí respondemos que não sabíamos jogar com tantas cartas, só com 40 e tinha que ser à bisca ou à sueca, porque ao burro era para os mais miúdos. Bem tentou explicar as regras, mas nós não achámos muita piada. Acabou por ter que jogar à sueca e à bisca. Que remédio!
Perguntámos se o pai era escritor e ela disse que sim. Gostava da nossa vila, queria conversar com as pessoas, estudá-las, ouvir as suas histórias, tudo para se inspirar e produzir a sua obra.
Anos mais tarde, já era médico há algum tempo, em casa de um compadre, esbarrei numa obra intitulada “Histórias da Vila”. Perguntei-lhe: - Olha lá. Este autor não era aquele senhor que chegou a habitar, durante o Verão, a casa da curva do bairro? Respondeu que sim e disse que o livro contava histórias da vila. Pedi-lhe emprestado e li-o, freneticamente, de uma penada. Recordo de algumas passagens e, sobretudo, de uma personagem, facilmente identificável, que conheci muito bem. O livro tinha um encanto especial. Adorei a narrativa e a análise das suas personagens.
Há dias, num intervalo de provas académicas que decorreram em Lisboa, aproveitei a tarde do primeiro dia para não fazer nada, ou melhor, acabei por fazer o habitual, ir para a zona do Chiado, que eu adoro, percorrer os alfarrabistas. Entrei num e deparei-me com quatro obras que de imediato recolhi, a primeira das quais foi “Antes do Dilúvio” de Mário Braga. O livro editado há quase 40 anos tinhas as marcas naturais da passagem do tempo. Comecei a folheá-lo e a leitura do mesmo fez-me recordar o outro que tinha lido há muitos anos. Na última página, a fechar a obra, podia-se ler: “Santa Comba Dão. Agosto de 1966”. Ah! Então este era o livro que o senhor andava a escrever naquele belo e saudoso Verão! Em duas noites devorei-o com a mesma satisfação da leitura de “Histórias da Vila”.
A história do “Antes do Dilúvio” descreve a vida e a problemática política e social de uma vila tipicamente beirã. A personagem principal era o Chiquinho Boavida, barbeiro, cronista do semanário da região, presidente da junta de freguesia, dotado para as artes de fígaro e excelente orador, desejoso de voos mais altos, que lhe possibilitasse ir para Lisboa, a fim de fugir à tirania da mãe e poder casar com a sua eterna amada, além de tirar rendimentos dos seus talentos.
Numa das passagens, o escritor relata a entrada em cena do Recor. O Recor é o tolo do sítio, defeituoso de mão e pé direitos que nunca conseguiu sair da primeira classe. O mestre-escola chegou a dizer-lhe que batia o “record da estupidez”. De record a Recor foi um passo para passar a ser conhecido apenas pelo apodo. Era defeituoso, tinha as suas limitações mentais, mas sabia que tinha que ganhar a vida, porque a mãe era pobre. Tinha pedido mais do que uma vez um lugar na junta ou no cemitério, a fim de providenciar o seu sustento. Volta e não volta atacava o presidente da junta da freguesia. A sua entrada em cena, na obra de Mário Braga, é notável. Chiquinho Boavida, numa caminhada, matutava sobre como dar volta à vida, quando sentiu alguém, por detrás, a puxar a manga do seu casaco dizendo: - “Ó Chiquinho, o lugar?” Surpreendido, disse-lhe que estava a ser difícil porque não tinha o diploma e sem o comprovativo da quarta classe não sabia como arranjar-lhe um. Lá se descartou do pobre rapaz como pode.
No dia em que comprei esta obra, os jornais anunciavam as preocupações do senhor Presidente da República com o desemprego dos nossos jovens que estão cada vez mais qualificados mas cada vez mais longe de arranjarem um lugar que lhes possa propiciar independência e subsistência. É triste o ambiente depressivo que nos rodeia. Desempregados, incapazes de conseguirem um lugar minimamente estável, objectos de exploração indigna, o quadro não abona nada de bom e desmistifica a promessa de alguém que há pouco mais de dois anos prenunciou uma centena e meia de milhar de novos empregos! Não foi nenhum presidente de junta, foi o actual Primeiro-Ministro.
Os jovens que andam por aí não são defeituosos, o que é, também, de somenos importância, como é óbvio, não são tolos e têm, a grande maioria, diplomas de ensino superior, um verdadeiro record.
Estou a vê-los – se pudessem lá chegar, claro – a puxarem a manga do senhor Primeiro-Ministro dizendo-lhe: - “Ó Chiquinho, o lugar? “
Qual seria a sua resposta?
A do Boavida já eu sei...
No Verão dos meus quinze anos, juntou-se ao nosso grupo duas jovens que não conhecíamos de lado nenhum. Sabíamos que estavam a habitar a casa da curva do bairro. O pai, um senhor bem parecido, com aspecto de ter idade na casa do meu, passou a ser objecto de curiosidade. Quem seria? Donde vinha? Por que razão passou a ocupar uma casa, que ninguém se lembrava de ter sido habitada. Uns diziam que era engenheiro, que vinha para as obras, outros desconfiavam e diziam que não tinha cara disso. Ao fim de algum tempo a curiosidade foi satisfeita, tratava-se de um escritor. Mas o que é que fazia um escritor na vila? Devia escrever, claro. Mas porque razão escolheu o nosso espaço? Se o escolheu devia ter os seus motivos. Vi-o várias vezes a conversar junto do café da vila e fiquei a saber o seu nome: Mário Braga. Presumo que passou mais do que um Verão.
Uma das filhas, no nosso “Oásis”, desafiou-nos para um jogo de cartas. – Vamos jogar à canasta? – Canasta?! Que jogo é esse?!. Ficou com ar meio surpreendida com a nossa resposta e disse que era um jogo em que se utilizavam as 52 cartas. Aí respondemos que não sabíamos jogar com tantas cartas, só com 40 e tinha que ser à bisca ou à sueca, porque ao burro era para os mais miúdos. Bem tentou explicar as regras, mas nós não achámos muita piada. Acabou por ter que jogar à sueca e à bisca. Que remédio!
Perguntámos se o pai era escritor e ela disse que sim. Gostava da nossa vila, queria conversar com as pessoas, estudá-las, ouvir as suas histórias, tudo para se inspirar e produzir a sua obra.
Anos mais tarde, já era médico há algum tempo, em casa de um compadre, esbarrei numa obra intitulada “Histórias da Vila”. Perguntei-lhe: - Olha lá. Este autor não era aquele senhor que chegou a habitar, durante o Verão, a casa da curva do bairro? Respondeu que sim e disse que o livro contava histórias da vila. Pedi-lhe emprestado e li-o, freneticamente, de uma penada. Recordo de algumas passagens e, sobretudo, de uma personagem, facilmente identificável, que conheci muito bem. O livro tinha um encanto especial. Adorei a narrativa e a análise das suas personagens.
Há dias, num intervalo de provas académicas que decorreram em Lisboa, aproveitei a tarde do primeiro dia para não fazer nada, ou melhor, acabei por fazer o habitual, ir para a zona do Chiado, que eu adoro, percorrer os alfarrabistas. Entrei num e deparei-me com quatro obras que de imediato recolhi, a primeira das quais foi “Antes do Dilúvio” de Mário Braga. O livro editado há quase 40 anos tinhas as marcas naturais da passagem do tempo. Comecei a folheá-lo e a leitura do mesmo fez-me recordar o outro que tinha lido há muitos anos. Na última página, a fechar a obra, podia-se ler: “Santa Comba Dão. Agosto de 1966”. Ah! Então este era o livro que o senhor andava a escrever naquele belo e saudoso Verão! Em duas noites devorei-o com a mesma satisfação da leitura de “Histórias da Vila”.
A história do “Antes do Dilúvio” descreve a vida e a problemática política e social de uma vila tipicamente beirã. A personagem principal era o Chiquinho Boavida, barbeiro, cronista do semanário da região, presidente da junta de freguesia, dotado para as artes de fígaro e excelente orador, desejoso de voos mais altos, que lhe possibilitasse ir para Lisboa, a fim de fugir à tirania da mãe e poder casar com a sua eterna amada, além de tirar rendimentos dos seus talentos.
Numa das passagens, o escritor relata a entrada em cena do Recor. O Recor é o tolo do sítio, defeituoso de mão e pé direitos que nunca conseguiu sair da primeira classe. O mestre-escola chegou a dizer-lhe que batia o “record da estupidez”. De record a Recor foi um passo para passar a ser conhecido apenas pelo apodo. Era defeituoso, tinha as suas limitações mentais, mas sabia que tinha que ganhar a vida, porque a mãe era pobre. Tinha pedido mais do que uma vez um lugar na junta ou no cemitério, a fim de providenciar o seu sustento. Volta e não volta atacava o presidente da junta da freguesia. A sua entrada em cena, na obra de Mário Braga, é notável. Chiquinho Boavida, numa caminhada, matutava sobre como dar volta à vida, quando sentiu alguém, por detrás, a puxar a manga do seu casaco dizendo: - “Ó Chiquinho, o lugar?” Surpreendido, disse-lhe que estava a ser difícil porque não tinha o diploma e sem o comprovativo da quarta classe não sabia como arranjar-lhe um. Lá se descartou do pobre rapaz como pode.
No dia em que comprei esta obra, os jornais anunciavam as preocupações do senhor Presidente da República com o desemprego dos nossos jovens que estão cada vez mais qualificados mas cada vez mais longe de arranjarem um lugar que lhes possa propiciar independência e subsistência. É triste o ambiente depressivo que nos rodeia. Desempregados, incapazes de conseguirem um lugar minimamente estável, objectos de exploração indigna, o quadro não abona nada de bom e desmistifica a promessa de alguém que há pouco mais de dois anos prenunciou uma centena e meia de milhar de novos empregos! Não foi nenhum presidente de junta, foi o actual Primeiro-Ministro.
Os jovens que andam por aí não são defeituosos, o que é, também, de somenos importância, como é óbvio, não são tolos e têm, a grande maioria, diplomas de ensino superior, um verdadeiro record.
Estou a vê-los – se pudessem lá chegar, claro – a puxarem a manga do senhor Primeiro-Ministro dizendo-lhe: - “Ó Chiquinho, o lugar? “
Qual seria a sua resposta?
A do Boavida já eu sei...
Simplesmente delicioso caro Professor Massano Cardoso!
ResponderEliminarTodas as aldeias, sem o pedirem, possuem o seu "tolo".
Cada povo, a pedido (a voto), tem o primeiro ministro e os ministros que merece (que elege). Porém, esta aldeia governamental, consegue bater o "record" de tolos. Cada tolice, parece mais incrível que a anterior, com a promessa de gerar basta descendência.
Bem pode o caro Professor prescrever umas pílulas para aumentar os níveis de paciência do Sr. Presidente da República, ou então, transgrida a ética e troque a receita por uns que o levem a "virar a mesa" e a colocar o Sr. Socrates no sítio, antes que o nomeiem rei da Europa e, então aí é que temos o "caldo totalmente entornado".
Desejo-lhe um excelente Natal caro Professor, e para todos os seus.
excelente crónica como sempre professor massano.
ResponderEliminare com a qual me identifico , quando eu com 28 anos , todos os dias luto para ter o meu lugar no mercado de trabalho...
Fantásticas prosa e ironia, Caro Salvador !!!:-))))
ResponderEliminarE sabe-se lá, quantos licenciados a trabalharem em call-center's, Macdonald's, operadores de caixa de hiper's e afins ?
Aqui para nós, que "ninguém nos ouve", conheço um Mestre de engenharia mecânica, que por motivo de desemprego, trabalha num telemarketing de produtos naturais.
A juntar a esta NEGRA realidade. há a dos pais desses jovens licenciados, que tb estão (alguns) pai e mãe desempregados. Eu conheço !!!
como será o Natal num agregado familiar com esta situação de desemprego tão desesperante ?
Complicado, muito complicado....:-(
Que os desempregados sejam um forte motivo de reflexão em todos os lares portugueses.
Obrigada pelas suas crónicas de pequenos grandes momentos da sua vida.
Um Santo Natal !
O mundo evolui, transforma-se, mas na sua essência mantém as mesmas características de outras épocas. Sempre dominado pela injustiça social qual rainha má que só sabe alimentar-se do sofrimento de muitos que são cada vez mais muitos, mesmo demasiado muitos...
ResponderEliminarUm Natal mais justo para todos.
Há pouco tempo reli o belo e terrível conto de Gabriel Garcia Marquez "Ninguém Escreve ao Coronel" onde se vai desfiando devagarinho, dia a dia,a angústia de não ter como sobreviver, todas as portas fechadas, o correio sempre mudo, as últimas moedas a escoar-se até não sobrar nada com que enganar a fome. O desemprego e a pobreza, assim descritos com a crueza que nos leva a sentar àquela mesa sem nada, a sentir o frio do velho coronel e o desejo de não voltar para casa sem notícias de que a pensão tinha finalmente sido atribuida,são um tormento sentido a cada segundo por quem os sofre.Quem espera desespera,e tem que procurar na ilusão das promessas de "um lugar" o ânimo para se levantar no dia seguinte. Não dispensa a leitura dos posts do Massano Cardoso, claro, mas vale a pena ler.
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