domingo, 27 de janeiro de 2008

Expiação (baseado no romance de Ian Mcewan)

Desculpem os que ainda não viram este filme, mas não resisto a escrever sobre ele.
É impossível não se ficar a pensar em “Expiação”. Não pela emoção da história, apesar de ser emocionante, mas porque nos fica aquela sensação esquisita de termos sido enganados pelo enredo, de nos sentirmos manipulados por uma série de insidiosos sinais que quase passam despercebidos, levando ao logro, ao embuste, tal como acontece tantas vezes na vida real.
Diz um comentário ao livro que é uma história sobre a culpa, o amor e o perdão. Discordo em absoluto. É uma história sobre a maldade fria, absoluta, perversa, sobre a ausência de arrependimento, porque este não existe nunca quando o que se quis foi realmente fazer mal. O arrependimento perante o que não tem emenda é uma mistificação da culpa, uma falsa pista para que se recupere a imagem limpa e inocente sem se prescindir do gesto que a manchou.
“Expiação” é a história contada por uma mulher que, ainda menina, se apaixonou por um rapaz a quem cobrou o pesado tributo do amor não retribuído e sempre inconformado.
Quando viu que era a irmã a paixão do seu amado, aproveitou um pretexto para os destruir friamente, convictamente, sem sombra da inocência que os seus 11 anos lhe creditavam. Contou com isso, com essa presunção de inocência, para mentir com segurança quando afirmou que o tinha visto na cena de violação, sendo que sabia que não era ele, tal como sabia que a prima não teria sido forçada. Calaram-se as duas, no pacto que tinham feito para o castigar por as ter desiludido.
O que é curioso é o modo como a história se entrelaça entre o que parece ser a realidade e o que a rapariga foi inventando ao sabor da sua vingança, à medida da sua crueldade. Vai-se desfiando como se ela vivesse mal com a culpa, procurasse a irmã, tivesse alguma vez pensado em resgatar a honra do rapaz.
No fim percebe-se como fomos enganados, tal como teriam sido os pais, o polícia, todos os que condenaram o inocente de quem ela se quis vingar.
O seu último romance, diz a agora escritora consagrada, esperou a vida inteira para contar aquela história. Conta-a agora porque sabe que vai morrer. Porquê? Porque não a contou logo, se queria redimir-se? A questão é que não queria. Ela manteve-os prisioneiros na sua mente, como se pudesse a todo o tempo determinar o seu destino. O mais certo é nunca mais os ter visto, foi banida da vida da irmã, meteu-se a guerra, nada leva a supor que voltaram a ver-se. Mas o que ela inventa é o que ela queria que tivesse acontecido. Teria ido ter com a irmã, com o pretexto do remorso, esperando que ela acreditasse nesse impulso e lhe admirasse o gesto de grande coragem. Diria a verdade, ilibaria o rapaz. Mas já sabia que o verdadeiro criminoso estava a salvo, tinha imunidade, seria assim um acto gratuito que não se destinava a reparar nada mas apenas a confirmar o castigo. Mas a irmã não lhe perdoaria, ah, mas não por ela, seria uma vez mais ele, sempre ele, a mostrar que estava ali, que a acusava, que lhe tinha percebido desde o início o acto infame e pretendido. Ele, que não lhe admitia a inocência, que não se deixaria enganar e que não lhe ficaria devedor pelo seu gesto de arrependimento. Nem assim ela recuperaria o seu amor, nem dando-lhe uma nova oportunidade. Por isso a sua imaginação doentia passa em revista o quarto da irmã, detém o olhar na cama desfeita, nos sinais dele a atraiçoá-la uma vez mais. Ainda não merecia que ela o reabilitasse, ainda ficaria condenado à vergonha do acto que ela lhe atribuíra.
Se eu quiser, quando eu quiser, diz ela o filme todo, di-lo sem o afirmar mas está sempre a dizê-lo, e o que se vê é que em momento nenhum ela quis desfazer o que tinha feito, em momento nenhum ela abrandou a garra da vingança na sua imaginação, porque a realidade lhe fugia.
Tratou até de pequenos detalhes. Imaginou que a irmã nunca tinha ido visitá-lo à prisão, não deixou que se encontrassem a sós antes de ele ir para a guerra, destruiu a casa à beira mar onde eles tinham sonhado encontrar-se. Ela destruiria metodicamente, persistentemente, todas as hipóteses de eles serem felizes, se o pudesse ter feito, tal como o fez na sua imaginação. Não desistiu dele, recriou-o sem o poder ter, puniu-o com todo o tipo de misérias e aflições, impôs-lhe um longa expiação por não ter querido amá-la.
Essa expiação, ela só a deu por finda quando soube que ela própria ia morrer.
Por isso guardou para o fim esse livro, porque a história só terminaria quando ela não pudesse escrevê-la mais. Até lá, adiaria a redenção, a expiação feita e refeita no seu texto interminável, de modo a que o amor que ele dedicou à irmã não encontrasse nunca a oportunidade de ser vivido livremente.
Não escreveu o livro por honestidade, como lhe perguntava o repórter, caindo também ele no logro do arrependimento. Não disse porque é que o fez, que quem o lesse perceberia. Mas não hesitou em deixar transparecer uma vez mais a sua loucura vingativa, a sua senha de marcar o seu domínio e acrescentou, com um olhar gélido e distante de quem observa os seus prisioneiros: - “Achei que era justo dar-lhes uma oportunidade de voltarem a amar-se uma vez, uma única vez, depois daquele dia na biblioteca. Eles mereciam.” Como se eles estivessem a ouvi-la e lhes provasse ainda uma vez que, como sempre, eles dependiam dela.
Um filme fantástico, brilhante, que conta a história da maldade escondida, da crueldade imaginada por um carrasco improvável que condenou o seu amor a uma longa e dura expiação. Tão longa como a vida e tão cruel como pode ser a realidade.

18 comentários:

  1. Brilhante post cara Suzana, só por isso vou ver o filme ao cinema (até porque está nomeado para Óscares).

    Por tudo mais, concordo consigo minha cara amiga. Nunca há arrependimento quando o que se faz está em perfeita sintonia com a intenção. Isto é válido para o bem e para o mal.

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  2. Dra. Susana Toscano,

    eu ainda não vi o filme, mas li o livro. Parece-me que a Dra. ST faz processos de intenção a uma personagem que nem o autor imaginou. Chega inclusivamente a dizer que parte da história é inventada. Só um exemplo do que diz: "Teria ido ter com a irmã, com o pretexto do remorso". Teria? ou foi? Como lhe disse não vi o filme, apenas li o livro. E do texto não consigo interpretar assim. É uma leitura. Abusiva julgo eu.
    Só concordo que é uma história fascinante. Para além do perdão, de culpa, de maldade, fala de nós, da natureza humana. Penso que toda a gente se reconhece em passos deste enredo.

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  3. não gostei mesmo nada do filme...
    na minha opinião(que vale o que vale) é mais uma tremenda propaganda da "máquina" de holiwood.

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  4. Caro RS,

    Convém não esquecer que os filmes são apenas adaptações dos livros (aqueles que o são) e normalmente os livros exploram uma história de uma forma totalmente diferente da forma com que é explorada num filme.

    Eu, cada vez que me lembro que o Peter Jackson - quando realizou o Senhor dos Anéis - meteu os elfos na Batalha de Helms Deep quando - no livro - eles não andam nem lá perto, pois também me dá uma coisinha má (muito embora ele explique porquê no making of).

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  5. Vi o filme há cerca de uma semana, não li o livro e também eu não consegui ver essa "maldade fria" em Briony (a irmã, a escritora), Dr.ª Suzana Toscana. Senti sempre que foi a sua intensa imaginação de jovem escritora apaixonada que a fez agir daquela maneira. Aliás, há dias, dei por mim a pensar se actualmente algum jovem poderá usufruir de forma tão pura e livre da sua própria imaginação... Num mundo tão densamente preenchido, ainda há lugar para a imaginação?

    Terei sido (bem) enganada? Vou tentar encontrar o livro, para procurar perceber o sentido "original" da personagem.

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  6. Vá ver, vá Caro Anthrax, depois podemos comparar as interpretações!
    Caro RS, estou agora a ler o livro mas tenho confirmado o que disse. Repare como é simbólica a imagem da abelha presa no vidro, quando ela vê a cena do lago, ou pense que ela "vai" ao casamento da prima com o M. depois de ter visto um documentário em que a rainha visitava a fábrica de chocolates e aí ela vê estupefacta que a prima era a mulher dele. Então, "recria" o casamento e isso dá-lhe ideia de "ir" a casa da irmã para avisar que vai repor a verdade. Só que ela já sabe que o verdadeiro criminoso nunca poderá ser acusado ou seja, resolve, na sua imaginação, o dilema do autor da história...Enfim, se a sua leitura é mais generosa, ainda bem...
    Cara Sandra, se aquilo não é maldade, ainda que só em imaginação, não sei o que seja...Amor e perdão é que não é de certeza!

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  7. Dra. Suzana Toscano,

    eu vou reler essa passagem com toda a atenção. De qualquer forma o que me custa perceber é o que leva um autor a considerar que uma atitude maldosa de uma criança de 11 anos que obviamente não tem consciência perfeita dos seus actos é mantida com maldade, aí sim com muita maldade, na vida adulta até à velhice. Levanta um problema filosófico que talvez não caiba aqui. Quem é quem em criança não se recorda de atitudes infantis, mesmo aquelas que em muitos casos pudessem trazer consequências gravosas? Será que as crianças têm essa consciência? Querer fazer crer que elas a têm é introduzir um nível de responsabilidade a quem não a pode assumir. Parece-me inverosímil que um autor como Ian McEwan que nos fala quase sempre de cenários bem realistas, da nossa natureza, quisesse caracterizar uma personagem de 11 anos como um bom selvagem. Mas admito estar totalmente enganado!

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  8. Caro RS, trata-se, a meu ver, de um excelente retrato humano, bem na linha do autor e desculpe-me insistir no meu ponto de vista. É que a garota vingou-se mas não foi nesse momento, com essa idade, que urdiu a vingança toda. Ela foi levada pelos acontecimentos reais que desencadeou (a prisão dele) e que não desencadeou (a guerra, o ferimento dele, a morte de ambos) e nunca resolveu o problema na cabeça dela. Com a sua prodigiosa imaginação, uma história não pode ficar por contar, ela tinha que a recriar até ela fazer sentido, tinha que preencher os espaços em branco, que eram muitos. E fê-lo com a crueldade de quem não perdoou, já com o amor frustrado de uma mulher e não como a menina de 11 anos. É que ela também creceu, não se esqueça que só acabou o livro depois de ter escrito 20 outros e depois de saber que ia morrer. Esse não é um pormenor, que sentido é que lhe deu o caro RS?

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  9. Dra. Suzana Toscano,

    Confesso que talvez me tenham escapado detalhes que a levem a pensar que Briony não conta a história tal como ela se passou mas antes a reinventa como forma de se perdoar a si própria. Não os consegui ver, mas confesso que estou quase convencido a reler a obra e a procurá-los. Custa-me a perceber como é que uma mulher adulta, como Briony já era, considera frustrado um amor de infância. Acho eu, natural, olhar para esses amores que todos tivemos com um sorriso condescendente. Acredite que não é teimosia minha, mas a impressão com que fiquei quando li o livro foi a de uma pessoa que teve consciência do mal que produziu e tentou de alguma forma atenuar os danos produzidos. Chegada a hora da morte contou a história do que realmente aconteceu. A interpretação do que as pessoas pensam e fazem quando sabem que vão morrer é muito difícil, mas por muito maldosas que sejam sou levado a pensar que nessas alturas preferem reconciliar-se com os outros e consigo próprios e não insistirem na maldade.

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  10. Caro RS, também estou a ler o livro e acredito que é essa a impressão que "ela" quer dar, aliás é por isso mesmo que o filme é equívoco, porque não mostra, dá a entender e as pessoas não vêem se não pensarem um bocado no que viram. É o que se passa na vida real, não acha, quantas vezes somos iludidos pelas aparências, quantas vezes somos manipulados com total inocência, sem duvidar por um momento de que as coisas foram como nos querem fazer crer? A simulação é uma arte...
    Mas pode ser que eu corrija esta ideia agora ao ler o livro, se assim for cá virei dizer.

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  11. ...e repare que há uma diferença muito grande entre o que ela sente e o que ela QUIS que nós pensássemos que ela sentia. Isso só é claro na entrevista, onde ea fraqueja quando as perguntas são mais directas...

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  12. Em minha opinião, o mais importante não é tanto saber qual a interpretação "verdadeira", mas antes, a forma brilhante como a Dra. Suzana Toscano redigiu esta abordagem, que quase nos "obriga" a ver o filme ou comprar o livro...
    *****

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  13. Anónimo11:51

    é impressionante o efeito do cinema sobre as pessoas. este filme é péssimo. tem algumas cenas visualmente interessantes, um grafismo irreprensível, de facto, mas o argumento é uma confusão, a polícia prende um homem com base numa única testemunha que não passa ainda de uma criança, depois de este recuperar duas crianças desaparecidas... só isso compromete todo o enredo. mas gostei da música, dos flashbacks, tem aspectos positivos, mas chamar a isto cinema é no mínimo muito mau. há verdadeiras obras-primas...

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  14. Cara Alice, discordo de si, olhe que a realidade muitas vezes ultrapassa a ficção. É capaz de encontrar muitos casos semelhantes, mais ou menos dramáticos em termos de justiça...

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  15. Olá, eu não vi o filme mas li o livro, e não concordo nada com o que aqui diz sobre a Briony. Talvez o filme tenha uma abordagem diferente do livro, mas duvido, o próprio IM seguiu a sua adaptação, e parece que ficou contente.
    Vejo muita coisa na Briony, mas não vejo qualquer maldade, e acho que não percebeu o âmago da história. Para começar, no final do livro ela lembra-se que teve uma paixoneta pelo Robbie, mas revela-nos que ela lhe passou no mesmo dia em que lhe contou. Mas o livro já mostrara que ele chegou a pensar o contrário – que foi essa paixão e um eventual ciúme que a levou à mentira. Mais tarde percebe-se que a própria Briony fica chocada quando percebe que acham que ela mentiu. Para ela, o “crime” nunca fora uma mentira, mas um simples engano… E por aqui se percebe a verdadeira questão do livro, questão cara a Ian McEwan: tudo na vida é uma questão de ponto de vista. Várias pessoas, por um maior ou menor grau de conhecimento, de experiência, de inteligência, etc… podem ver uma mesma situação e tirar conclusões diferentes. E achar que viram coisas diferentes. Isso acontece na vida real, todos os dias. Somos todos diferentes. O problema nesta história é que Briony viu uma série de situações que não tinha idade, nem maturidade, nem experiência para perceber; a sua mente hiperactiva, ajudada pela necessidade de criar ordem em cada pedaço de caos que encontra, tirou conclusões erradas; e ela resolveu agir em conformidade. E ninguém a parou, e ela não teve a consciência e maturidade suficientes para perceber a diferença entre as suas convicções e a realidade complexa de pessoas adultas. E quando agiu, fê-lo com a convicção de quem não percebeu nada mas acha que percebeu tudo: foi abelhuda, foi arrogante, e cometeu um acto de consequências desastrosas para aquelas duas pessoas. Não acredito, nem penso que o livro nos leve a crer, que o fez com maldade ou intenção de magoar. A sua cabeça tonta, imaginativa e que gostava de arrumar o caos, convenceu-se que a irmã estava em perigo, que a prima tinha sido abusada, que estava portanto criada uma situação de caos; convenceu-se que o pouco que descobrira nesse dia sobre o Robbie indicava que ele era a fonte de todo o mal; e acreditou que lhe cabia a ela reparar o caos e salvar as duas raparigas. Tão simples e tão terrível como isso. O ponto de vista de uma criança, a criar o horror na vida de adultos. E se ela não sofreu obviamente tanto como o Robbie e a Cecília, sofreu pelo menos mais tempo. E já agora uma nota, ela explica porque é que não publicou o livro mais cedo: por causa das questões legais que o livro levantaria e os processos que a prima e o seu marido andavam a mover a torto e a direito, por difamação. E afinal, os amantes, a quem interessava mais o pedido de desculpas, já estavam mortos. Claro que ela foi cobarde por não ter falado com eles antes de morrerem. Mas ser cobarde não é o mesmo que ser maldosa. E parece-me plausível que tenha composto a história, por simples sentimento de culpa: quis desfazer o erro, a mente que criou o equívoco, o “crime” criou depois a sobrevivência e o happy ending dos amantes como forma de compensação. Fechou o círculo mental. Não os deixou perdoarem-na, porque achou que não tinha perdão.
    Os verdadeiros maus da fita aqui são outros: a Lola e sobretudo o marido, de que não me lembro o nome. Esses sim tinham plena consciência do que se passara e calaram-se. Esses sim, agiram com maldade, ou pelo menos com a consciência do erro. A Briony era uma criança e a sua tontice e casmurrice foi usada por eles, porque lhes deu jeito. Eu cheguei ao fim do livro e consegui ter pena da Briony; acho que a intenção de IM também era essa.
    Ainda achei que o livro tinha uma vaga moral por trás disto tudo, sobre os pais ausentes (os da Briony e os da Lola), que mais ou menos inconscientemente, podem criar e alimentar um monstro, sem sequer se aperceberem. Os adultos naquela casa deveriam conhecer melhor a Briony, saber como a sua cabeça funcionava, e deveriam ter sabido desmontar aquele seu equívoco. E deveriam ter percebido que a Lola estava a mentir. Por alguma razão, as crianças não são adultas. :)

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  17. Cara Filipa, excelente, esta interpretação, gostei imenso de a ler e admito perfeitamente essa leitura, explicada por si com um encadeado muito lógico.Também já li entretanto o livro, é bastante mais denso do que o filme, mas ambos deixam margem para outras interpertações, incluindo a minha. Contunuo a pensar - e há muitas passagens do livro que o admitem, sobretudo na primeira parte, até à denúncia que ela faz - que mostram que ela ficou muito contrariada quando ele lhe entregou o bilhete em vez de lhe ligar a ela, que correu para ele quando o viu. Mostra que ela desconfiou logo da prima, da pretensa zaragata com os irmãos, e que a viu seguir um caminho diferente dos outros quando foi à procura dos gémeos. Mostra, em resumo, que ela pressentiu que a prima não era inocente e conluiou-se com ela no silêncio. Na conversa a duas, de certo modo ela domina a prima, comprometendo-a com o silêncio. Depois, todo o livro é uma construção dela para se redimir do que não fez depois, do que não teve coragem, para ficarmos só pela cobardia, destruindo um a um todos os argumentos que pudessem ser invocados para a culpabilizar. os mesmos que a Filipa invoca aqui. Por isso achei que ela nunca se arrependeu e que ele é que foi condenado à expiação. Quanto à ordem, é verdade que ela tinha essa mania da ordem, por isso ficou sempre sem norte, a vida dela foi uma espécie de sombra da irmã, nunca recuperou o seu caminho condutor, causou a desordem e depois não foi capaz de viver com isso.Além disso, quem conta a história é uma adulta, não a criança, ela preocupa-se pouco com o que a criança fez, o que ela revê e analisa é tudo o que se seguiu. Mas, como lhe digo, admito perfeitamente a sua interpretação, pelo menos apazigua um pouco o espírito, achei o livro fantástico mas inquietante.Como os outros dele, de resto.

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  18. Também gostei de ler as suas opiniões, que encontrei quando procurava precisamente comentários ao livro e ao filme. É engraçado como temos interpretações tão diferentes sobre o mesmo livro, sobre as motivações psicológicas para o mal. É a tal questão do ponto de vista. Talvez a sua visão seja mais cínica, a minha mais ingénua. É uma tendência minha. Mas eu não resisti a voltar às passagens que descreve, e continuo a não ver lá essa intenção. Por ex., a Briony estava estática na ponte quando o Robbie a chamou, e nem se mexeu de início. Estava à espera de “algo significativo” que lhe acontecesse, tinha decidido esperar por isso depois de ter abandonado a peça com uma birra, e decidido que era tempo de deixar as peças infantis e tornar-se numa escritora realista. Já andava às voltas com o que vira na fonte, como leitmotiv para uma nova história, mais adulta, e quando finalmente se decidiu a ir ter com ele e recebeu a carta, achou que isso era a coisa significativa por que estava à espera, correu com ela sem dizer nada e leu-a. A carta chocou a criança mas foi uma fonte de inspiração para a escritora em potência: tinha descoberto o mau da fita e uma das suas vítimas, mais tarde descobriu a segunda. E descobriu-a depois de deambular sozinha, a pensar com algum receio que o Robbie era louco e andava à solta, numa noite tão escura. E então tornou-se a heroína, salvando as duas do lobo mau. Ao contrário do que a Suzana acha, eu acho que ela não tinha nenhuma empatia especial pelo Robbie, ele foi apenas um personagem naquela história toda (ele que até era uma pessoa próxima). E assim que se convenceu que a Lola tinha sofrido nas suas mãos, também a tornou uma personagem do seu “filme”, depois transformou-se ela própria na personagem principal que não conseguira ser na peça, dominou todos os relatos, e não lhe deu hipótese de os refutar ou sequer de se fazer ouvir. Recuperou o papel principal que a Lola lhe tinha roubado na peça, e essa é uma das voltas curiosas que o Ian McEwan dá à história, apesar de não me parecer que a Briony tenha feito a denúncia com esse objectivo. Mas pensando bem, talvez tenha sido esse o seu maior mal: deixou-se ofuscar pelo brilho do seu papel e não conseguiu perceber que eram todos pessoas reais, num mundo que ela não compreendia ainda bem. Faltou-lhe empatia e humildade. E o sentido da realidade, às vezes tão escasso nas crianças.
    Também achei o livro fascinante, muito rico em termos psicológicos. E acho que o Ian McEwan entrou maravilhosamente bem na pele e sobretudo na cabeça daquela criança, daquela menina solitária que vivia tão dentro da sua cabeça e tão fora da realidade – o que é basicamente triste. Acho-a completamente realista, e espantosamente bem descrita. Concordo que a maior parte da história é contada de um ponto de vista adulto, mas acho no entanto que a primeira parte, no que diz respeito aos pensamentos da Briony, e apenas aí, é o ponto de vista da criança que é descrito. Não sei como é que essa parte foi passada para o filme, é difícil mas é uma parte fundamental do livro. Normalmente não gosto de ver os filmes de livros de que gostei. Sobre este, ainda vou pensar.

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