É engraçado como a nossa memória regista as coisas mais improváveis e depois, assim de repente, salta a imagem como se fosse um filme, estivemos lá e já não o saberíamos, não fosse um pretexto qualquer iluminar a cena remota.
Quando, há dias, vi numa montra um brinquedo que me chamou a atenção, experimentei aquela estranheza de, por um instante, me sentir fora do meu espaço e do meu tempo e reconheci-me na menina pequena que, há muitos anos atrás, estava no quintal em Luanda a brincar com um urso tão parecido com aquele que agora estava ali, do outro lado da montra.
Tinha sido prenda de Natal e era o brinquedo sensação, um urso vestido com casaco vermelho, calças às riscas pretas e brancas e sapatos de verniz preto. Para além do pêlo macio da sua cabeça, todo o corpo, escondido sob as roupas, era estranhamente rígido, feito em várias peças de metal articulado. No extremo dos braços, cada mão de luva branca segurava um prato de metal e estava na caixa assim, naquela posição esquisita, como se tivesse sido apanhado a fugir da banda de música antes de terminar o concerto.
O mistério desvendou-se quando se fez rodar a corda, uma espécie de borboleta de lata disfarçada sob o casaco. O urso animou-se, a cabeça virava para um lado e para o outro, os braços aproximavam-se e tóing!, os pratos batiam um ruído roufenho, uma e outra vez, enquanto as pernas lhe permitiam uns passinhos hesitantes pelo chão fora.
Aquele brinquedo era um deslumbramento, uma inovação total no reino da garotada e eu e a minhas irmãs viemos com ele para o quintal, onde podia andar sempre em frente, afastando-se a bater os pratos até se esgotar a corda.
A casa era rodeada de um muro baixinho que a deixava exposta aos olhares de quem passava na rua. Foi por isso que os miúdos negros se foram juntando na rua, colados ao muro, a olhar o boneco como quem vê uma aparição. Estavam silenciosos de espanto, cada um que passava engrossava o grupo e os de trás já começavam a empurrar os da frente para conseguirem apreciar o fenómeno.
Levámos então o urso para cima do muro, não sei se por simpatia se por vaidade, isso já a memória apagou, e pusemo-lo a andar naquela beira estreita, tóing, tóing, a avançar a direito ao ritmo dos pratos. De cada vez que acabava a corda, os miúdos negros faziam um alarido a pedir mais, voltando à admiração muda quando recomeçava a exibição.
Estávamos assim muito entretidas quando veio de dentro da casa a Eugénia, a empregada que se ocupava de nós. Largou aos gritos, aqueles já eram tempos de ameaça e medo, havia perigo naqueles ajuntamentos, mesmo que fossem crianças, tudo o que fosse turbulência era explosivo, e enxotou-nos para casa sem nos deixar recolher o brinquedo.
Olhámos para trás mesmo a tempo de ver o urso a acabar de percorrer o muro e a cair a pique no chão, com o estardalhaço do metal a desconjuntar-se, um prato a rolar pelo chão, a cabeça de lado e as pernas bambas, como se fosse uma marioneta desarticulada. Do lado de fora, um silêncio duro, ressentido, de quem não perdoa uma ilusão desfeita.
Olhei o urso na montra, por altura do Natal, mas o que vi de súbito foi o outro, o de corda, a tocar pratos, em equilíbrio no muro do quintal, e um magote de garotos fascinados, aprisionados na minha memória naquele gesto de pasmo inocente.
Quando, há dias, vi numa montra um brinquedo que me chamou a atenção, experimentei aquela estranheza de, por um instante, me sentir fora do meu espaço e do meu tempo e reconheci-me na menina pequena que, há muitos anos atrás, estava no quintal em Luanda a brincar com um urso tão parecido com aquele que agora estava ali, do outro lado da montra.
Tinha sido prenda de Natal e era o brinquedo sensação, um urso vestido com casaco vermelho, calças às riscas pretas e brancas e sapatos de verniz preto. Para além do pêlo macio da sua cabeça, todo o corpo, escondido sob as roupas, era estranhamente rígido, feito em várias peças de metal articulado. No extremo dos braços, cada mão de luva branca segurava um prato de metal e estava na caixa assim, naquela posição esquisita, como se tivesse sido apanhado a fugir da banda de música antes de terminar o concerto.
O mistério desvendou-se quando se fez rodar a corda, uma espécie de borboleta de lata disfarçada sob o casaco. O urso animou-se, a cabeça virava para um lado e para o outro, os braços aproximavam-se e tóing!, os pratos batiam um ruído roufenho, uma e outra vez, enquanto as pernas lhe permitiam uns passinhos hesitantes pelo chão fora.
Aquele brinquedo era um deslumbramento, uma inovação total no reino da garotada e eu e a minhas irmãs viemos com ele para o quintal, onde podia andar sempre em frente, afastando-se a bater os pratos até se esgotar a corda.
A casa era rodeada de um muro baixinho que a deixava exposta aos olhares de quem passava na rua. Foi por isso que os miúdos negros se foram juntando na rua, colados ao muro, a olhar o boneco como quem vê uma aparição. Estavam silenciosos de espanto, cada um que passava engrossava o grupo e os de trás já começavam a empurrar os da frente para conseguirem apreciar o fenómeno.
Levámos então o urso para cima do muro, não sei se por simpatia se por vaidade, isso já a memória apagou, e pusemo-lo a andar naquela beira estreita, tóing, tóing, a avançar a direito ao ritmo dos pratos. De cada vez que acabava a corda, os miúdos negros faziam um alarido a pedir mais, voltando à admiração muda quando recomeçava a exibição.
Estávamos assim muito entretidas quando veio de dentro da casa a Eugénia, a empregada que se ocupava de nós. Largou aos gritos, aqueles já eram tempos de ameaça e medo, havia perigo naqueles ajuntamentos, mesmo que fossem crianças, tudo o que fosse turbulência era explosivo, e enxotou-nos para casa sem nos deixar recolher o brinquedo.
Olhámos para trás mesmo a tempo de ver o urso a acabar de percorrer o muro e a cair a pique no chão, com o estardalhaço do metal a desconjuntar-se, um prato a rolar pelo chão, a cabeça de lado e as pernas bambas, como se fosse uma marioneta desarticulada. Do lado de fora, um silêncio duro, ressentido, de quem não perdoa uma ilusão desfeita.
Olhei o urso na montra, por altura do Natal, mas o que vi de súbito foi o outro, o de corda, a tocar pratos, em equilíbrio no muro do quintal, e um magote de garotos fascinados, aprisionados na minha memória naquele gesto de pasmo inocente.
Pode chegar a assustar-nosa forma tão inesperada e fantástica, como por vezes as memórias regressam e se manifestam. As memórias de infância, mesmo que por vezes desagradáveis ou nefastas, oferecem-nos sempre o agradável sabor do reviver e a fidelidade dessas imagens, mostram-nos ainda com uma nitidez noutras situações difíceis de rever, pessoas, locais, sons, cheiros etc. que tal como a cara Suzana refere, não suspeitávamos que ainda estivessem guardados nos arquivos da nossa memória.
ResponderEliminarBelíssimo conto, cara Suzana... afnal, aquele urso-músico e os rostos daquelas crianças, não estávam apagados para sempre.
São pequenas coisas,pelo menos parecem, que surgem desligadas aqui e ali, muitas vezes as pessoas nem reparam nelas ou não perdem tempo a deter-se para as olhar de novo. Mas a verdade é que um qualquer critério selectivo fez com que ficassem registadas,todos temos essa experiência, é intrigante saber o que as distinguiu aos nossos olhos naquele momento, que valor, que sensibilidade as captou. Ainda teríamos essa capacidade tempos depois? A memória é não só o reflexo do que se viveu mas também do modo como se viveu. Costumo ouvir a minha mãe e a irmã a falarem da sua juventude comum, as mesmas pessoas, os mesmos acontecimentos, o mesmo ambiente. Raramente coincidem nas memórias e é ao ouvir as duas a discordar que conseguimos ter o quadro mais completo do que afinal se passou. Um puzzle que resulta do acerto da percepção de cada uma.É por isso que, em tribunal, é preciso ouvir várias testemunhas...
ResponderEliminarAcerca da diferença entre os "olhares" da sua mãe e irmã, acerca do mesmo local, das mesmas pessoas e da mesma situação, lembrei-me de um dia, quando ha algum tempo atrás fui almoçar com umas colegas de emprego a um restaurante no Porto Brandão. O dia Outonal estáva explêndido e a viágem no barco quase vazio para atrvessar o rio decorreu de forma bastante agradável. No regresso, tal como a nossa amiga pézinhos realçou num comentário recente, reparámos na luminosidade excepcional que fazia realçar o conjunto harmonioso do casario desde Caxias a Belém, secundado por montes e a mata de Monsanto. É sem sombra de dúvida uma paisagem magnífica, porém, a forma como cada um de nós viu e sentiu aquilo que todos estavam a ver em simultâneo e na mesma prespectiva, revelou-se diferente nos pormenores. Concluo assim, se é que é possível concluir-se, que, se um grupo pequeno de pessoas, que se encontra perante a mesma realidade, no mesmo momento, a vê e entende de forma diferente entre si, mais fácilmente se gerará a discordância de opiniões quando a matéria em análise e consideração se encontra num plano de observação que requer, para alem do sentido da visão, a capacidade de conseguir projectar o entendimento dessa matéria, numa prespectiva politica e/ou social.
ResponderEliminar