domingo, 13 de janeiro de 2008

Saudável confissão

A lei, recentemente publicada, da responsabilidade civil extracontratual dos entes públicos e dos seus agentes, já revela efeitos muito positivos.
Soube-se hoje que os senhores magistrados procuram quem os segure.
Na SIC-N ouve-se a explicação: apesar da lei só prever que se responsabilizem juizes e procuradores pelo erro grosseiro e em casos de dolo ou culpa grave, os sindicatos sentem que o melhor é prevenir em vez de terem de remediar à sua custa e não, como até agora, à custa dos contribuintes.
Esta consciência, feita confissão, de que podem os senhores magistrados responder pelo erro, constitui um verdadeiro avanço civilizacional porque, até aqui, era coisa nunca vista a admissão de que os efeitos danosos de uma acusação ou de uma sentença pudessem, ainda que no limite, responsabilizar quem a elas dolosa ou culposamente conduziu, ou com o mesmo grau de censura, as produziu. Mesmo que isso significasse o horror da privação da liberdade sem razão. Ou a perdas patrimoniais irreparáveis.
Conscientes já estão. Mas isso não significa que os sindicatos, e os magistrados que os dirigem, estejam de acordo com a lei que lhes despertou a consciência.
Ouço (confesso que sem qualquer espanto) o presidente do sindicato dos magistrados do Ministério Público dizer que esta lei os vai inibir de fazer o que devem quando pela frente encontrem "ricos e poderosos" porque sabem que estes têm agora a possibilidade de os perseguir pelos erros cometidos e pelos prejuízos que inflingiram. Movendo contra eles, em especial, os "grandes escritórios de advogados".
Explica o Dr. Cluny que isso significará um enorme constrangimento à sua função de aplicar a lei e de perseguir os infractores.
Extraordinária leitura esta! Da lei, mas sobretudo da dignidade e da coragem dos senhores magistrados!
Desde logo porque é suposto que os senhores procuradores estejam habituados a enfrentar no dia-a-dia, com coragem, os mais temíveis "grandes escritórios de advogados". Mas pelos vistos a coragem esvai-se quando são eles, os magistrados, quem tem de se defender. Significativo...
Mais. Reconhecendo-se que a lei só impõe o direito de regresso do Estado contra magistrados que, com dolo ou culpa grave, sejam agentes de um dano moral ou material ressarcível, para o senhor procurador Dr. Cluny é preferível o benefício do infractor (o magistrado relapso) do que a justiça feita aos cidadãos vítimas de actuação grosseiramente errada e culposa de procurador ou juiz, incluindo aos "ricos e poderosos" que por o serem, não têm menos direitos.
A visão sindical do Dr. Cluny, para além do habitual maniqueísmo classista que só aqui ainda se usa, revela uma inadmissível noção de justiça: é boa, a justiça, quando as consequências punitivas da violação dos deveres que a lei impõe se fazem sentir sobre os outros. De outra sorte, quando somos nós os visados, a lei é iníqua e a justiça péssima!
Quanto à ideia de que a lei vai levar à inibição ou ao condicionamento na actividade do ministério público ou da judicatura, estou certo de que se trata da expressão de um sentimento de um procurador da república, não generalizável aos senhores magistrados.
Tenho-os em melhor conta do que o Dr. Cluny os tem porque lhes reconheço, pelo menos a grande parte deles, a dignidade e a coragem no exercício das funções constitucionais que desempenham que os farão imunes ao medo das consequências. Até porque sabem, como qualquer bom magistrado sabe, que num Estado de Direito ninguém pode ficar impune perante o erro intencional.
Adenda: Recebi uma mensagem de correio electrónico chamando-me a atenção para o facto de o sindicato dos magistrados do Ministério Público já ter solução para minimizar os efeitos iníquos da lei. O Estado deve subsidiar o seguro de responsabilidade civil, pessoal, dos senhores juizes e dos senhores procuradores, alegando que é isso que se faz noutros países.
Nada como um subsidiozito do Estado para nos sentirmos mais livres e desinibidos!

9 comentários:

  1. Caro Ferreira de Almeida,

    O que temo nesta lei é que deixe de existir para sempre o "erro grosseiro" de qualquer magistrado. Não estou a ver um magistrado a decidir num qualquer recurso que outro magistrado teve um erro grosseiro, dado que estamos a falar de um dos lobbys mais poderosos deste país.

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  2. Mas que porcaria de funcionários públicas arranjámos nós!!...

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  3. Jamais... jamais...
    até ver...

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  4. Não acredito que o Dr. Cluny tenha dito o que aparece no postal... é mau demais para ser verdade.

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  5. Não sendo minha intenção subestimar o tema do post e a sua importância, ouvi agora um programa na TV que me deixa um bocadinho nauseada, e ao mm tempo perplexa:

    - a polémica sobre o artº 30, etc, etc, e TAL !!!

    vim ver na web ...

    encontrei este blog, que resume bem o assunto:

    http://cadeiradopoder.blogs.sapo.pt/39246.html

    os políticos de "sapato italiano" deste nosso país começam a exceder-se... de forma perigosa, e parece-me até, descontrolada.

    Não hão-de os magistrados estarem com a preocupação de garantirem um apoio em caso de erro profissional ...

    Tal é a "confiança" que eles têm no Estado que servem.

    às vezes penso que o termo certo para tudo o que nos rodeia, no momento actual, é o de "italianização" da vida política portuguesa.

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  6. Anónimo23:09

    Também assisti a parte do programa a que Pézinhos se refere. Tratava dos efeitos das recentes alterações aos códigos penal e de processo penal, não discutidos por teóricos em linguagem técnica, sempre hermética, mas vistos à luz de casos concretos, chocantes, de facto.
    Não me quero pronunciar sobre as questões aí debatidas, tanto mais que, nalguns aspectos, o programa confunde causas com demagogia sempre fácil nestas situações que envolvem emoções muito fortes e sentimentos colectivos muito fáceis de manipular. Limito-me a anotar que algumas das situações impressionantes que ali foram referidas resultam, com efeito, das alterações à lei; noutras a lei só veio consagrar práticas jurisprudenciais; outras nada têm que ver com as alterações legislativas mas com o sistema de (denegação de) justiça que temos, e ainda outras com a falta de capacidade, empenho e de competência de alguns dos agentes desse sistema.
    Mas há um ponto que foi abordado e que é da maior relevância. Ali se denunciou, mais uma vez, a falta de transparência do processo que conduziu a estas alterações, a que ninguém chama suas e que são mesmo rejeitadas pelo actual ministro da administração interna, então coordenador do grupo de missão para a reforma.
    O silêncio do ministro e a falta de explicação das soluções e de identificação de quem as propôs, deixam de facto no ar uma preocupante suspeita que já contaminou a lei e que vai constituir a marca negra, indelével, desta reforma.

    Porém, pouco disto tem que ver com a questão do post. Com esta lei penal ou com qualquer outra lei, do que se trata no assunto do post é de saber se sim ou se não o prejuizo inflingido a quem foi grosseira e deliberadamente vítima de acusação ou condenação indevidas, deve ser compensado. E por quem. Se por nós, contribuintes (como até agora); ou por quem foi o agente do dano, um juiz ou um procurador.
    Pela minha parte não tenho dúvidas. A responsabilidade é sempre estimulante. A irresponsabilidade e a impunidade convidam às maiores das injustiças.

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  7. Pergunto-lhe, porque não sei.

    A revisão de um Código e a sua alteração não envolve os vários agentes da Justiça ?

    Ou cabe apenas ao Gabinete do Ministro ?

    Qto. ao tema, sim de facto, a responsabilidade é estimulante, mas também é dividida entre o Magistrado e o Estado que representa e através do qual, o Magistrado exerce a Justiça.
    E nas outras profissões e intituições do Estado ?

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  8. Anónimo12:24

    Respondendo a Pézinhos, creio que sim, que a proposta do Grupo de Missão constituido para propor as alterações à legislação penal e processual penal (coordenado pelo actual MAI) foi discutida pelas entidades representativas dos vários actores do sistema.
    A questão da boa ou má opção do legislador coloca-se concerteza, e responsabiliza - apesar de tudo de forma desigual -, quem participou nas dicussões da proposta, quem tomou a iniciativa, quem a fez assentar num pacto entre os dois maiores partidos, e quem, finalmente, a aprovou.
    Mas mais relevante é essa questão da rejeição da paternidade do célebre artigo 30º e o mistério agravado pelo facto de o "pai" da reforma (o actual MAI) não reconhecer a criatura como sua. Se não é dele, de quem é? E porque de uma vez por todas não o explica o Ministro que a propôs, já que a maioria é cega e nem deve perceber o que afinal aprovou? Ou então, se a alteração à proposta do Grupo de Missão aconteceu em Comissão Parlamentar, porque não se tornam claras as motivações da mudança?
    Esta cortina é que é profundamente negativa.
    Quanto à questão de saber o que se passa com os funcionários públicos por comparação com os magistrados, pois o que a lei vem consagrar é um regime de responsabilidade aproximado ao que vigora para aqueles.
    E já agora, o que vigora para outras profissões judiciárias. Eu, advogado, suporto à minha custa, desde há muito tempo, o seguro de responsabilidade civil que me protege das consequências danosas do meu erro. E, note, nalgumas situações, do erro casual...

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  9. Muito grata, Caro Dr. JA Ferreira de Almeida, pelo esclarecimento que me prestou.

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