Foi há 12 anos!
O telefone tocou à meia-noite menos um quarto...eu atendi, os números ainda não eram mostrados no visor dos telefones, estava longe de saber quem ligava àquela hora, tinha sido mais um dia como tantos outros habitualmente preenchidos, estava cansada, preparava-me para sair da sala e ir descansar.
Do outro lado da linha uma voz aflita: "menina, a Mãezinha está muito mal..."
"Como?"
"Não é possível, ainda há meia hora estivemos as duas a conversar ao telefone...até combinámos eu ir aí almoçar amanhã..."
"Menina, venha depressa..."
Não consegui que me dissesse mais nada.
Fui a correr, a guiar não sei como.
Cheguei.
A minha Mãe estava morta, sentada no sofá da sala...um enfarte fulminante.
Passei toda a noite na sala, a andar de um lado para o outro, a espreitar a rua pelas tabuinhas da janela, a aperceber-me, pela primeira vez, do "ritmo" daquela rua, da hora a que despejaram o lixo, do fim da carreira do autocarro, do vaguear dos noctívagos sós e dos bêbados no seu mundo, do silêncio que por fim e por completo adormeceu a rua, do meu silêncio...nasci naquela casa, vivi lá até aos 24 anos, nunca tinha dado por aquele silêncio, nunca tinha percebido como aquela rua adormecia e acordava, o retomar das carreiras de autocarros, o abrir da estação do Metro, a chegada dos jornais ao quiosque em frente (às 5h. da manhã!), a vendedeira das flores a montar a sua venda, o guarda-nocturno a dar por finda a sua tarefa, as esplanadas a montarem-se, os cafés a abrirem, a vida da rua, de novo aí, para um novo dia...um novo dia que eu não via, que eu não queria que acontecesse, só porque era o primeiro dia sem a minha grande Amiga.
Estava gelada, um gelo que não era de frio, um gelo que todos os anos sinto, neste dia...todos estes 12 consecutivos anos.
O segundo progenitor que parte deixa-nos a certeza de um irremediável corte umbelical com a geração anterior, põe-nos na linha da frente, deixa-nos num silêncio introspectivo, numa vontade frenética de agarrar o passado, numa irracionalidade que a consciência não vence, num registo confuso de sentimentos que a memória não apaga...
...embora saibamos que assim se cumpre a lei natural da Vida.
Querida Clara
ResponderEliminarNão tenho quase palavras para lhe dizer que a tristeza também pode ser bela, que a Mãe tem uma Filha com um grande coração!
A Clara no "seu andar de um lado para o outro" fez-me parar um pouco para pensar nas coisas mais bonitas da vida, para confirmar as coisas importantes da vida. Foi bom! Obrigada.
Adquire pleno sentido o lugar comum: e a vida continua.
ResponderEliminarContinua para que possamos celebrar o que de bom ela nos dá. A começar pelo insubstituível amor de mãe.
Assim entendo o seu post, Dr.a Clara. Obrigado pela partilha.
Há coisas sobre as quais os anos não passam, parece sempre que foi ontem, não é Maria Clara? Mas quem não tem desgostos desses é porque nunca teve a parte boa da vida... Um abraço amigo.
ResponderEliminarMinha cara amiga:
ResponderEliminar"...embora saibamos que assim se cumpre a lei natural da Vida."
Sem dúvida! Mas, da minha parte, e aguardando o nascimento do meu primeiro filho(a) do qual, aliás, VExa. foi das primeiras a saber, apenas desejo ter a bênção de uma filha como a Clara soube ser.
É o melhor elogio que alguém pode fazer a outrem.
Tenho estado a organizar "as primeiras" roupas para o bebé (nas quais consta o lindo babete que me ofereceu:-), tal qual ele(a), um dia, se Deus quiser daqui a muitos anos, organizará "as minhas últimas".
"Numa vida perfeita, os filhos enterram os pais e os pais enterram os avós." (ditado índio)
Tudo o resto é triste..."embora saibamos que assim se cumpre a lei natural da Vida."
"Ainda" só perdi meu Pai, e tenho já 50 anos. Não foi de enfarte fulminante, mas de enfarte que o matou em 2 dias. Neste processo, cada segundo a mais que um segundo é demais.
ResponderEliminarCompreendo bem o que refere acerca do corte do cordão umbilical. É também parte da morte da nossa infância.
Hoje, "nesse dia", recordo com muita alegria o Pai que tive, e que aposto que ainda tenho. E já raramente me emociono. Por acaso este momento em que lhe escrevo é um desses raros momentos. Afinal ...
Vai um respeitoso abraço.
Diz V. Exa:
ResponderEliminar"...O segundo progenitor que parte deixa-nos a certeza de um irremediável corte umbilical com a geração anterior, põe-nos na linha da frente, deixa-nos num silêncio introspectivo, numa vontade frenética de agarrar o passado, numa irracionalidade que a consciência não vence, num registo confuso de sentimentos que a memória não apaga...
...embora saibamos que assim se cumpre a lei natural da Vida."
Permita-me que lhe diga:
Exprimiu de forma magistral a dor e o vazio em que ficámos, quando perdemos o segundo progenitor.
Como eu a compreendo tão bem...
Um abraço, Clara!...
ResponderEliminarCara amiga
ResponderEliminarLi o seu texto. E como não consigo expressar o que senti, apenas lhe posso dizer que continuo a sentir...
Um beijinho.
Obrigada a todos...do coração!
ResponderEliminarConfesso que pensei se devia escrever este post, considero-me uma pessoa extrovertida e "bem disposta", mas sou muito reservada nos "meus" quase confidenciais e especiais sentimentos.
Sentir que queria escrever este texto, ontem, foi a prova (a mim própria) de que o estava a partilhar com um grupo de Amigos.
Não me enganei!
Obrigada Margarida, Ferreira de Almeida, Susana, Pinho Cardão, Massano Cardoso, como me confortaram...
Obrigada Rodrigo, sei que vai ser um Pai maravilhoso!
Obrigada Manuel, por se emocionar...
Obrigada Jotac, por me ter compreendido...