sexta-feira, 2 de maio de 2008

Crise da fome ou o ovo da serpente?

Vi, há muitos anos, creio que em finais dos anos 70, o fabuloso filme de Ingmar Bergman com o título “O Ovo da Serpente”. Nesse filme mostram-se os sinais do mal que ia incubando no mundo fútil e distraído que antecedeu a 2ª Guerra Mundial. À saída, perguntávamos uns aos outros, incrédulos, “como foi possível que não se tivesse visto a tempo?”
Lembrei-me desse filme a propósito da já impressivamente baptizada como a Crise da Fome, que explodiu nos jornais como uma bomba.
De repente, sabemos que os alimentos básicos como o arroz, o milho e o trigo começam a faltar no mercado e os preços sobem em flecha, nalguns casos cerca de 40%. E como é que se acendeu o rastilho? Foi por análises atentas, acompanhamento dos mercados, estatísticas, mudanças de décimas e milésimas nas balanças comerciais ou nos mil e um relatórios sobre tudo e mais alguma coisa com que nos informam diariamente? Não. Foi porque começou a haver revoltas das populações com fome. Em vários países deste pequeno e global mundo, grupos de cidadãos ameaçam governos e, nos que já nem têm forças para tanto, as pessoas morrem por falta do pouco que tinham, os alimentos básicos. O Presidente da FAO terá falado do assunto há cerca de um ano, parece que não lhe ligaram muito, é facto que as eleições nos EUA ocupam milhões de noticias, comenta-se cada ruga da senhora Clinton ou a gravidez da nova ministra espanhola, os horrores de um louco austríaco indignam o mundo e pergunta-se “como foi possível?”
Ouvimos todas estas notícias e é inevitável pensar como tudo isto é transmitido de uma forma fútil, a maioria do que se mostra, analisa e evidencia é episódico, o tempo que perdemos a ouvir isto tudo é puro desperdício, mas o que é importante, o que envenena insidiosamente o mundo em que vivemos, é escondido até que a desgraça se abata sobre as nossas cabeças.
Pense-se na crise do subprime, que, ao menos na aparência, apanhou toda a gente de surpresa e continua a minar sem se saber ao certo o quê, e agora a falta de cereais, um drama mundial de consequência imprevisíveis, atinge-nos com a força de um explosivo escondido. Ouvi hoje que a especulação bolsista terá uma grande responsabilidade nisso. Li ontem que a procura de alternativas aos combustíveis fósseis levou ao cultivo desenfreado de agrocarburantes, que as urbanizações cresceram em terrenos de cultivo, que a produção de arroz e trigo deixou de ser rentável para os agricultores…
Por todas estas razões ou ainda por outras, o facto é que não consigo entender esta distracção global. Numa época em que o ambiente ocupa o top das agendas, em que as mudanças climáticas nos ameaçam com as consequências a séculos ou milénios de distância, fazem correr milhões e milhões, em que se investigam os solos, as nuvens e as partículas, nesta maravilhosa época em que tudo se sabe e quase tudo se prevê, ninguém reparou na crise da fome? Começou ontem, nos jornais, ou a quem é que interessou que não se falasse disso? Soube-se hoje que vão agora ser disponibilizados uns larguíssimos milhões de dólares para remediar os efeitos imediatos, enquanto se preparam pacotes de “medidas” para o futuro. Mas as serpentes,ainda estarão no ovo?

11 comentários:

  1. Anónimo02:23

    Cara Suzana Toscano, rogo-lhe que perdoe a minha resposta tão seca à questão com que termina o seu post mas sim, as serpentes ainda estão no ovo. Estas que sairam até agora são as pequeninas. As grandes irão sair também, a seu tempo. E nós iremos sofrer bastante com isso. Uma vez mais, os sinais estão aí.

    Há duas coisas que prevejo, desde 2002-2003 para um horizonte de, o mais tardar, 2012-2015: uma guerra em grande escala, provavelmente mundial e o colapso da União Europeia com todas as consequências que isso terá para todos os Europeus e para nós, Portugueses, em particular. Mais vozes tenho visto prevendo ambas as coisas mas normalmente remetidas para um canto de jornal.

    Quanto ao porquê de as tragédias não se preverem antecipadamente, as pessoas não verem as bombas a cair a não ser quando elas explodem no seu colo, bom, o ser humano tem uma capacidade imensa para não ver aquilo que não quer ver, nomeadamente aquilo que o afecta negativamente. Uma cegueira quase voluntária, diria.

    Todas as crises, todas as serpentes têm arautos, têm quem os anuncie antecipadamente, têm quem olhe para os factos e os analise como eles são, tal como os males do regime nazi os tiveram. Coitados, foram ridicularizados, enxovalhados, chamados de profetas da desgraça, enfim, desacreditados. Depois, claro, os profetas da desgraça tiveram que limpar e remediar o que os optimistas militantes, pacifistas empedernidos e afins fizeram. E com um custo humano infinitamente superior.

    Enfim, coisas!

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  2. As "previsões" que o caro Zuricher tem a "coragem" de expor, têm, tambem a meu ver, face ao panorama mundial que se observa, toda a coerência que se lhes possa atribuir.
    Este(s) factos, são porem motivo para que se não capitule em materia de empenhamento pessoal, individual, mas global. Possuirmos a visão clara e coerente dos grandes males que (inevitávelmente) se aproximam, deve ser o incentivo para que pensemos e pratiquemos formas de os contornar e de lhes resistirmos.
    A observação que a cara Drª. Suzana apresenta, relativamente ao papel da informação, parece-me ainda e enquadrada neste contexto, evitável e desvolorizável no que respeita ao préstimo dos conteúdos.
    E, não se trata de não querer ver, mas sim, de não alimentar essa "serpente" que tambem cresce no ovo da informação.
    Cara Drª Suzana, parece talvez que o meu discurso se assemelha de algum modo àquele outro do "orgulhosamente sós". No entanto, os poucos dividendos e contributos retirados e cedidos ao comunitarismo europeu, não me deixam, em termos de valorização social, enaltecer o espírito puramente mercantlista e economicista que norteou essa organização.
    Em minha opinião, é inevitável que profundas e radicais modificações sociais aconteçam. As sociedades necessitam do comunitarismo, essencialmente com a finalidade do bem-estar comum e não um comunitarismo que vise o benefício de elites, porque essas são sedentas de mais e mais bem-estar, até que aqueles que são a máquina geradora desse bem-estar, atinjam o ponto de exaustão.
    É bom que conheçamos o que está a acontecer pelo mundo, para que, conjuntamente nos preparemos, e saibamos preparar um modelo verdadeiramente democrático que nos organize globalmente de um modo igualitário e objectivamente social.

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  3. Se calhar, ambas, infelizmente...

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  4. Cara Suzana,

    Tenho mesmo de cumprimentá-la pelo por este excelente post. :)

    Pessoalmente, com mais flores ou menos flores, partilho da visão do Zuricher e não desfazendo a opinião do amigo Bartolomeu, tenho reservas gigantescas sobre a utilização de termos como "organização global" ou "modo igualitário" e relacionar isso com o conceito de democracia (desculpem lá, sou de Ciência Política e Relações Internacionais e a utilização dessa terminologia, para efeitos de modelos futuros, deixam-me à beira da histeria).

    Aqui há uns meses atrás, tive a oportunidade de ajudar a minha cara-metade a fazer um ensaio sobre os balcãs, para uma das suas cadeiras de mestrado. Digo-vos, fiquei totalmente assoberbado com as conclusões a que cheguei depois de ter andado a ler umas coisitas e a primeira coisa que me ocorreu foi: «Esta gente além de louca é burra!» porque simplesmente não conhecem a história e mais cedo ou mais tarde, vamos pagar esta factura. Nessa altura, também vai haver quem pergunte :«Mas como é que chegámos a isto?» no entanto, as variáveis estão lá todas. Aliás, nem nunca de lá saíram. Mas fecha-se os olhos e finge-se que não se vê.

    Com esta "crise da fome", passa-se o mesmo. Está tudo sentado num barril de pólvora à espera que este expluda e isso vai acontecer porque acenderam o rastilho.

    Conclusão: quando ouvirem um «BUM!» atirem-se para o chão e protejam a cabeça. Caso sejam religiosos, rezem para não apanharem com estilhaços.

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  5. Anónimo17:33

    Anthrax, brilhante algo que diz no seu post e é exactamente o motivo pelo qual a UE vai implodir entre outras coisas, aliás, os sinais estão aqui como sempre estiveram. Esta gente é totalmente burra porque não conhece a história e, acrescento, uns perfeitos desconhecedores da natureza humana e da real politik até por suporem que os países vão fazer tábua rasa de séculos de história, de agendas e interesses que acumularam ao longo de décadas, em prol da UE e de coisas que eventualmente os prejudicarão.

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  6. Cara Dra. Suzana Toscano:
    Permita-me que comente este excelente post socorrendo-me de uma ou duas frases, de registo já um pouco difuso na minha memória, de uma peça de teatro que vi, ou talvez de um livro que li, do dramaturgo Bertolt Brecht.
    'Quando os nazis irrompiam portas adentro das casas dos judeus, os vizinhos - também eles judeus mas de classe social mais elevada -, olhavam e ouviam em silêncio, e apenas sussurravam entre si: não é nada connosco, é com aquela família daquela casa além…'
    Vem isto a propósito, penso eu, do tema que deu origem a este interessante post.
    O mundo não é todo igual. Há países onde há excesso de alimentos e outros, por razões tão diversas como a geografia, ou como o clima, ou ainda como o modelo social e político existente, faz com que esses países tenham elevadas taxas de mortalidade infantil e curta esperança de vida, consequência da falta de alimentação.
    Portanto, esta realidade da fome sempre existiu, tal como sempre existiu a nossa posição, semelhante em tudo à posição daqueles judeus que viam partir os vizinhos e diziam: não é nada connosco, é com aquela família daquela casa além…
    O que mudou então no mundo para a fome ser o tema de tanta preocupação, neste momento?
    -O mundo tornou-se mais pequeno, mercê do mercado global e dos efeitos das novas tecnologias de informação e, por isso, as reivindicações básicas dos povos são mais “audíveis e visíveis”, ao contrário de há uns anos atrás, em que só delas tínhamos conhecimento através de reportagens esporádicas.
    Ao contrário da crise do subprime, que é uma crise criada pela ganância de “agiotas” travestidos de bancos sérios, as crises geradas pela fome são de difícil solução, senão, até impossíveis de resolver, porquanto não dependem, para já, do “querer” do homem (lá virá o tempo em que o alimento será um comprimido diário de um concentrado sintético ?), mas antes, do querer da Natureza, e em muitas países, a Natureza é no que concerne à agricultura, bastante madrasta…

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  7. Suzana
    O que é também extraordinário é que de repente todos os economistas "acordaram" para nos explicarem o fenómeno como sendo algo que não deveria constituir surpresa e que não há razões para nos admirarmos! E desdobram-se em explicações.
    Depois da constatação, agora sim vêm as previsões!
    Realmente se pensarmos um pouco não é difícil prever, mesmo aqueles que não são economistas, que o processo de desenvolvimento da China e da Índia conduz inevitavelmente a que os chineses e os indianos troquem as bicicletas por carros e que em vez do arroz passem a comer carne.
    Ora, serão cada vez mais os que passarão à fase seguinte, para as quatro rodas e para o bife!

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  8. Bom dia;

    Alojei o seu texto no Palácio do Marquês, com todas as referências e créditos. São deveras pertinentes as suas considerações.

    Obrigado

    O Marquês

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  9. Excelente post, novamente.
    Li recentemente um artigo na SciAm onde se indicava que o número de pessoas com excesso de peso é já superior ao número de pessoas com fome, a nível mundial. Ou seja, em abstracto, produzimos provavelmente comida suficiente para todos, o problema está no acesso a essa comida.

    Não posso deixar de partilhar a visão pessimista de outros, em relação ao futuro a médio/longo prazo, nomeadamente em relação a uma guerra de consequências globais. Os Americanos, pragmáticos como são, continuam a posicionar-se estrategicamente de modo a dominar os recursos existentes, com bases militares na maioria dos países do Mundo e um orçamento de Defesa avassalador. E os que eles hoje defendem podem ser os que amanhã estejam na sua mira.
    Tendo em conta que actualmente já consumimos mais recursos do que o planeta consegue repor, o futuro não é animador. Ou a bem ou a mal (o mais provável) muito terá de mudar, e quanto mais cedo, menores serão as consequências negativas. Esta crise da fome pode ser o canário na mina. Esperemos que quem de direito tome as medidas necessárias (e não me refiro necessariamente aos nossos queridos governantes...).

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  10. Caro Zuricher, não sei se já teve ocasião de ler "Uma Breve História do Futuro" de Jacques Attali, que tem a mesma tese da guerra inevitável e a nível global, só que a prevê lá para 2030. A tese não é muito diferente da sua, ele diz que o mundo será dominado por umas tantas empresas globais que lutarão pelo domínio total do mercado com os seus prórpios exércitos e que os Estados estarão tão debilitados que serão puras marionetas nas suas mãos. Enfim, ele não considera isso totalmente inevitável, se, se, e se, com tantos ses que nós não estamos a ver neste momento, pelo contrário, como o demonstra esta crise da falta de alimentos.
    Caro Bartolomeu, já se assistem a vários processos de impaciência, chamemos-lhe assim, das populações que sofrem à medida que os seus interesses são cada vez menos atendidos. Darão também lugar a populismos que os conduzirão à pobreza, serem todos iguais não lhes dará grande melhora se os iguais forem também miseráveis, mas concordo consigo quando diz que as preocupações sociais devem voltar às agendas, sem serem mera capa, como preocupação central. Será uma utopia?
    Cara Anthrax, não sei se será só burrice, ou ignorância, há também a ilusão de que "desta vez" se vai conseguir controlar os danos, conter as fúrias e gerir tudo muito bem a contento de alguns. A verdade é que nunca houve na Europa um período de paz tão longo, nem tanta abundância, nem tanta esqerança de vida e qualidade de vida. O futuro parecia mais risonho e a sensação de segurança-para-sempre amolece e distrai. além disso confiamos, vá lá saber-se porquê, que "alguém" está a tento e que as notícias não deixariam de nos alertar a tempo de corrigirmos políticas e atitudes. Deve ser por isso que ficamos tão surpreendidos e perplexos.
    Caro Jotac, é bem verdade o que diz, só nos importamos verdadeiramente quando o mal nosbate à porta, esse é um ensinamento muito explorado em política e também nas relações pessoais, deixamos que alguém actue na esperança de que gaste a maldade toda nos outros... Mas neste caso não serão só as catástrofes naturais,que quase diariamente seguimos, as secas, as inundações, as pragas, as poluições, etc. e para as quais se abrem logo grandes oportunidades de auxílio solidário.Por isso mesmo é que este caso é diferente, porque ficou muito calado até às populações entrarem em fúria. Não foi a natureza, foram as políticas, as cobiças, a especulação, os lobbies da energia, enfim, sei lá o quê, por isso há este silêncio comprometido e cúmplice.
    Cara margarida, o que é incrível é que não deve haver tema mais estudado nos últimos 10 ou 20 anos do que o fulminante desenvolvimento da Índia e da China, para não falar de outros países menos "estrondosos" mas que não serão de efeito nulo neste cenário. Haverá tema mais badalado que o alargamento de mercados, as oportunidades de negócio, as deslocalizações, a liquidez financeira que circula como água? Não há. Então porqûe é que ninguém previu este aumento da procura de alimentos? Eu acho que não só se previu como se aproveitou, daí a especulação bolsista, como creio que se viu, porque estaria à vista, mas não dava jeito mesmo nenhum distrair do tema ambiental, do preço do petróleo a subir apesar das novas descobertas de reservas...enfim, uma teia de que não conseguimos ver a dimensão, mas apenas os resultados.Ouvi há pouco que se calcula que nos próximos 10 anos, pelo menos, os preços não deverão descer...
    Caro Marquês, é uma honra ser "transcrita" no seu palácio, muito obrigada!
    Caro Ruben, a Europa continua a ser excendentária nos cereais, gordos em excesso e mortos de fome sempre houve e haverá, pelas inúmeras razões que venmos todos os dias, incluindo guerras locais, déspotas dementes, aventureiros á frente dos destinos de um povo, calamidades...Mas devíamos progredir no equilíbrio global, é esse o mote da globalização, ao menos ao nível dos povos devia esbater-se as diferenças, aproveitar a todos, na medida em que possam e queiram, os progressos científicos e económicos da humanidade. Mas receio bem que não seja nesse sentido que caminhamos, pelos vistos, apesar de tantos avanços nos discursos políticos e nas exigências sociais. Quanto aos americanos, não sei se entendi bem a sua referência, mas já não é o único, ou mesmo se será algum, papão da actualidade...
    Obrigada a todos pelos comentários.

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  11. Anónimo02:20

    Cara Suzana Toscano, não conheço o livro. De qualquer forma os motivos elencados no livro não são, em absoluto, aqueles que vejo irem levar a uma guerra mundial em breve.

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