Acabo de ler uma notícia que me entristeceu e, ao mesmo tempo, recordei um episódio do início da minha vida de médico.
No Wiscosin, E.U.A., uma criança de onze anos morreu de cetoacidose diabética depois dos pais terem optado curá-la recorrendo à oração. Amigos e familiares rogaram aos progenitores para levar a menina, Madalena, ao médico. No entanto, estes interpretaram a situação da filha como um teste à sua fé. A situação agravava-se de dia para dia ao ponto de pedirem, por e-mail, aos amigos para “ajudarem a filha que necessitava de orações urgentes”. A menina acabou por morrer no dia de Páscoa. Foram acusados de homicídio.
Assim que acabei o internato geral, em 1977, fui de imediato mobilizado para a Força Aérea. Enfiaram-me na Escola Prática das Tropas Pára-quedistas em Tancos.
Era jovem, consciente da falta da experiência prática, mas, mesmo assim, ia cumprindo com as minhas obrigações, tomando decisões que, hoje à distância, me deixam admirado.
Um dia, por sinal bastante invernoso, estava na base, quando alguém aflito perguntou se havia algum médico que pudesse ir ver uma menina que se encontrava muito mal numa quinta afastada. - Eu vou, mas preciso de autorização, porque tenho para ali soldadesca com fartura para ver. O capitão pára-quedista, responsável pelo posto clínico, homem de uma humanidade inexcedível, disse imediatamente: - Oh doutor vá à vontade. Se houver problemas eu falo com o comandante. Não se preocupe. O sargento perguntou-me como é que eu tencionava ir ao local. – No meu carro! – Nem pensar. Com este tempo o doutor nem andava meia dúzia de metros quando saísse da estrada. Além do mais a casa fica num ermo. Só pode ir de jeep. – E agora? Como vou arranjar um jeep? – É fácil. Dito isso saiu e passado uns minutos já estava à porta de armas com um condutor e a chamar-me. – Conseguiu autorização? – Autorização? Para quê! Depois logo se vê!
Nem disse mais nada. Quando chegámos ao local, bastante afastado e de difícil acesso, chovia que Deus a dava. Até o jeep teve dificuldade em subir pelas veredas. Deparámo-nos com uma casa térrea, mais do que humilde, sem luz e com divisões minúsculas. No quarto, logo à entrada, deparei-me com uma menina de cerca de oito a nove anos inconsciente e com uma respiração estranha. Fiquei aterrado, é o termo. Perguntei como tudo começou. Tinha tido sarampo há alguns dias, mas recuperou bem, e de repente começou a sentir-se mal, a urinar bastante e a ficar confusa. Não conseguia deixar de olhar para aquela respiração reveladora de uma situação muito grave. Quando me aproximei para a auscultar senti um odor característico que já tinha experimentado um dia nas urgências com um jovem em coma diabético. A menina estava mesmo em coma e desidratada. Como tinha umas fitas para análise ao açúcar, perguntei pela urina da menina. A menina já não urinava há algum tempo, responderam-me. Fiquei preocupado, mas consegui, mesmo assim, “espremer” com os dedos a roupita, obtendo uma cor verde intensa mais do que conclusiva. E agora? Tenho que a levar para uma instituição capaz, Coimbra ou Lisboa. Mas ficam tão longe. As estradas não eram como as de hoje. Olhei para o sargento que nunca me largou e expliquei-lhe o que tinha que ser feito. – Será que o comandante da base aérea vizinha disponibilizaria um helicóptero? – Claro que sim! Respondeu. Dei instruções para que me deixassem com a menina no hospital de Abrantes para iniciar a hidratação e prestar os primeiros cuidados. Entretanto, o sargento foi até à base preparar as coisas. Passado algum tempo, tinha um helicóptero a socorrer a petiza levando-a para Lisboa, violando as regras de segurança, porque as condições meteorológicas eram péssimas. Quando cheguei à Escola Prática, ao fim da tarde, não encontrei ninguém no posto clínico. Depois do jantar, desloquei-me ao bar dos oficiais e, logo que entrei, o comandante chamou-me: - Oh doutor chegue aqui! Já estou tramado, pensei eu, quando me recordei de todas as irregularidades cometidas. Perguntou-me: - A menina vai safar-se? Respondi: - Estou convencido que sim. – Óptimo! Oh rapaz - dirigindo-se para o soldado que estava de serviço ao bar – Serve aqui ao nosso doutor um conhaque da minha garrafa. Mas serve como deve ser, ouviste? – Subitamente, um conhaque delicioso e ultra generoso estava nas minhas mãos. – À saúde da menina! E com uma palmada nas costas dirigiu-se para a sua mesa onde o aguardavam os oficiais do bridge!
Graças ao calor daquela bebida dormi que nem um justo.
Passados uns dias chamaram-me para atender duas pessoas. Era a menina, toda feliz, acompanhada da mãe. A senhora, humilde, vinha agradecer o facto ter salvo a vida da filha, ao mesmo tempo que lhe dizia para me entregar uma pequena recordação. Um pequeno vaso de estanho que guardo com muito carinho, por motivos óbvios, além de ser a primeira que eu recebi como médico. Logo de seguida, a mãe disse: - Sabe senhor doutor, vou com a minha filha a Fátima agradecer a Nossa Senhora por a ter salvo. Respondi, preocupado: - A menina vai a pé a Fátima?! – Não, senhor doutor eu é que vou, ela vai de carro. Calei-me. Por uns instantes, não muito tempo, ficámos a olhar um para o outro. Segundos intermináveis. Apercebi-me que a senhora queria ouvir mais alguma coisa, até que rompeu o silêncio: - O senhor doutor não se importa, pois não? – Não me importo de quê? – De eu ir a Fátima agradecer a Nossa Senhora por ter salvo a minha filha? – Sorri e disse-lhe: Claro que não! A senhora faz muito bem. É a sua fé e deve ir. Foi então que percebi que a senhora ficou muito feliz por aceitar a partilha com a Nossa Senhora. À saída, voltou-se e disse: - Também vou pedir pelo senhor doutor. – Obrigado. Respondi ao mesmo tempo que acenava à catraia.
À memória de Madalena...
No Wiscosin, E.U.A., uma criança de onze anos morreu de cetoacidose diabética depois dos pais terem optado curá-la recorrendo à oração. Amigos e familiares rogaram aos progenitores para levar a menina, Madalena, ao médico. No entanto, estes interpretaram a situação da filha como um teste à sua fé. A situação agravava-se de dia para dia ao ponto de pedirem, por e-mail, aos amigos para “ajudarem a filha que necessitava de orações urgentes”. A menina acabou por morrer no dia de Páscoa. Foram acusados de homicídio.
Assim que acabei o internato geral, em 1977, fui de imediato mobilizado para a Força Aérea. Enfiaram-me na Escola Prática das Tropas Pára-quedistas em Tancos.
Era jovem, consciente da falta da experiência prática, mas, mesmo assim, ia cumprindo com as minhas obrigações, tomando decisões que, hoje à distância, me deixam admirado.
Um dia, por sinal bastante invernoso, estava na base, quando alguém aflito perguntou se havia algum médico que pudesse ir ver uma menina que se encontrava muito mal numa quinta afastada. - Eu vou, mas preciso de autorização, porque tenho para ali soldadesca com fartura para ver. O capitão pára-quedista, responsável pelo posto clínico, homem de uma humanidade inexcedível, disse imediatamente: - Oh doutor vá à vontade. Se houver problemas eu falo com o comandante. Não se preocupe. O sargento perguntou-me como é que eu tencionava ir ao local. – No meu carro! – Nem pensar. Com este tempo o doutor nem andava meia dúzia de metros quando saísse da estrada. Além do mais a casa fica num ermo. Só pode ir de jeep. – E agora? Como vou arranjar um jeep? – É fácil. Dito isso saiu e passado uns minutos já estava à porta de armas com um condutor e a chamar-me. – Conseguiu autorização? – Autorização? Para quê! Depois logo se vê!
Nem disse mais nada. Quando chegámos ao local, bastante afastado e de difícil acesso, chovia que Deus a dava. Até o jeep teve dificuldade em subir pelas veredas. Deparámo-nos com uma casa térrea, mais do que humilde, sem luz e com divisões minúsculas. No quarto, logo à entrada, deparei-me com uma menina de cerca de oito a nove anos inconsciente e com uma respiração estranha. Fiquei aterrado, é o termo. Perguntei como tudo começou. Tinha tido sarampo há alguns dias, mas recuperou bem, e de repente começou a sentir-se mal, a urinar bastante e a ficar confusa. Não conseguia deixar de olhar para aquela respiração reveladora de uma situação muito grave. Quando me aproximei para a auscultar senti um odor característico que já tinha experimentado um dia nas urgências com um jovem em coma diabético. A menina estava mesmo em coma e desidratada. Como tinha umas fitas para análise ao açúcar, perguntei pela urina da menina. A menina já não urinava há algum tempo, responderam-me. Fiquei preocupado, mas consegui, mesmo assim, “espremer” com os dedos a roupita, obtendo uma cor verde intensa mais do que conclusiva. E agora? Tenho que a levar para uma instituição capaz, Coimbra ou Lisboa. Mas ficam tão longe. As estradas não eram como as de hoje. Olhei para o sargento que nunca me largou e expliquei-lhe o que tinha que ser feito. – Será que o comandante da base aérea vizinha disponibilizaria um helicóptero? – Claro que sim! Respondeu. Dei instruções para que me deixassem com a menina no hospital de Abrantes para iniciar a hidratação e prestar os primeiros cuidados. Entretanto, o sargento foi até à base preparar as coisas. Passado algum tempo, tinha um helicóptero a socorrer a petiza levando-a para Lisboa, violando as regras de segurança, porque as condições meteorológicas eram péssimas. Quando cheguei à Escola Prática, ao fim da tarde, não encontrei ninguém no posto clínico. Depois do jantar, desloquei-me ao bar dos oficiais e, logo que entrei, o comandante chamou-me: - Oh doutor chegue aqui! Já estou tramado, pensei eu, quando me recordei de todas as irregularidades cometidas. Perguntou-me: - A menina vai safar-se? Respondi: - Estou convencido que sim. – Óptimo! Oh rapaz - dirigindo-se para o soldado que estava de serviço ao bar – Serve aqui ao nosso doutor um conhaque da minha garrafa. Mas serve como deve ser, ouviste? – Subitamente, um conhaque delicioso e ultra generoso estava nas minhas mãos. – À saúde da menina! E com uma palmada nas costas dirigiu-se para a sua mesa onde o aguardavam os oficiais do bridge!
Graças ao calor daquela bebida dormi que nem um justo.
Passados uns dias chamaram-me para atender duas pessoas. Era a menina, toda feliz, acompanhada da mãe. A senhora, humilde, vinha agradecer o facto ter salvo a vida da filha, ao mesmo tempo que lhe dizia para me entregar uma pequena recordação. Um pequeno vaso de estanho que guardo com muito carinho, por motivos óbvios, além de ser a primeira que eu recebi como médico. Logo de seguida, a mãe disse: - Sabe senhor doutor, vou com a minha filha a Fátima agradecer a Nossa Senhora por a ter salvo. Respondi, preocupado: - A menina vai a pé a Fátima?! – Não, senhor doutor eu é que vou, ela vai de carro. Calei-me. Por uns instantes, não muito tempo, ficámos a olhar um para o outro. Segundos intermináveis. Apercebi-me que a senhora queria ouvir mais alguma coisa, até que rompeu o silêncio: - O senhor doutor não se importa, pois não? – Não me importo de quê? – De eu ir a Fátima agradecer a Nossa Senhora por ter salvo a minha filha? – Sorri e disse-lhe: Claro que não! A senhora faz muito bem. É a sua fé e deve ir. Foi então que percebi que a senhora ficou muito feliz por aceitar a partilha com a Nossa Senhora. À saída, voltou-se e disse: - Também vou pedir pelo senhor doutor. – Obrigado. Respondi ao mesmo tempo que acenava à catraia.
À memória de Madalena...
Por muito menos, ou... até por nada, num tempo ainda recente, homens receberam medalhas da mão de presidentes, que premiavam o reconhecimento por mérito, honra, humanismo, etc.
ResponderEliminarAs qualidades residem na alma do ser humano, daquele que se emociona e se sensibiliza com o sofrimento do seu semelhante e que não olha a meios, muito menos a incómodos, para lhos minimizar.
Essas pessoas, a meu ver, mesmo considerando-se ateus, são tocados pelo espírito divino.
Esta simbiose entre aquilo que é divino e o que é material, nem sempre é entendido igualmente por todos. Não creio caro professor, que a atitude e o pensamento dos pais daquela menina, possa sr considerado um crime, à luz de um conceito religioso que garante a todos a salvação e protecção divina.
Aquilo que o ser humano que vive em sociedade, busca, é a infalibilidade, a certeza, a garantia que uma religião, uma prática, ou a junção de ambas, lhe confiram a solução de todos os problemas. sabemos que tanto, está sujeito e dependente de um quase sem-número de outros considerandos, directamente relacionados com um quase sem-número de factores dos quais dependemos. E... alguns desses factores nascem conosco, outros adquirem-se.
Desta história, caro professor, retiram-se três maravilhosas conclusões (inconclusivas): Afinal o pessoal da tropa, tambem tem coração, os humildes tambem têm fé, os médicos tambem são sensíveis e essa qualidade, reune neles as duas anteriores.
Caro Professor Massano Cardoso
ResponderEliminarBem diferentes os destinos da Madalena e da sua Menina. A Madalena foi impedida de receber a bondade e generosidade que o ser humano tem para dar. Mas a fé também presente no coração da família daquela Menina foi bem mais forte, iluminando o auxílio e mobilizando as vontades certas para o momento difícil que afinal foi ultrapassado. À tristeza seguiu-se a alegria e o reconhecimento de quem não esquece a disponibilidade generosa de um momento tão importante.
Lindo, este retrato da vida de um médico...
ResponderEliminarA fé remove montanhas, neste caso está bem à vista a quantidade de obstáculos que conseguiu remover, a mãe acreditou que alguém a havia de ajudar, o médico acreditou que havia de conseguir lá chegar, os militares acreditaram que valia apena quebrar umas quantas regras, vale a pena ter fé na humanidade e ir agradecer por tudo a Nossa Senhora de Fátima... Que vida tão cheia de bons momentos, caro Prof. massano, e nós a podermos reforçar a nossa fé através das suas belas histórias!
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