Por vezes, ao ler certas passagens de um livro, vêm-nos à memória imagens e vivências há muito adormecidas. Foi o que me aconteceu quando lia a bela e singular prosa de Teixeira de Pascoaes, “A Beira (num relâmpago)”. Nesta obra, publicada nos princípios do século passado, o autor relata uma experiência notável para a época: uma viagem de automóvel entre Amarante e Arganil. “Cinquenta léguas percorridas em vinte horas”.
No dia 15 de Agosto de 1915, pelas duas horas da madrugada, o autor e os seus amigos iniciaram a viagem alvo de atenção literária. Até aqui nada de novo, a não ser as vivências e as análises profundas de quem é portador de uma alma poética.
Eis que, de repente, já depois de terem saído de Viseu, o amarantino tece curtas considerações sobre Tondela, abrindo-me a esperança de que falasse, também, de Santa Comba Dão, porque teria, forçosamente, de passar na minha terra. Sobressaltei-me quando o autor começa o seguinte parágrafo: “Súbito, abre-se um vale encantador: escaleiras de vinhedos descendo para o cristal extático do rio. Além, a arte humana quebra-lhe o sonho verde que se revolta, branqueja, pára, num sono escuro e profundo. É um pego torvo, contradizendo o alegre humor esmeraldino daquelas águas. Não há céu sem nuvens...”. Esta frase ilustra o que o autor deverá ter sentido quando se aproximou da ponte sobre o Dão.
Quando havia rio, agora afogado na albufeira, causava-me impressão como é que o Dão tinha personalidades tão distintas. Ao atravessar a ponte, saltava, invariavelmente, de um lado para o outro tentando compreender o mistério. A montante da ponte, e um pouco afastado desta, o rio era ternurento, social, amoroso, convidativo a mergulharmos no seu seio. Inspirava confiança, destilava alegria, prometia traquinices, oferecia prazer e sorria através da superfície azulada. Ao afunilar, já perto dos arcos da ponte, começava a dar sinais de mau humor, revelando um azedume e agressividade preocupantes. Então, quando passava para o outro lado as águas acalmavam-se e mudavam de cor ficando verdes escuras, denunciando um abismo que deveria esconder terríveis segredos. Ficava assustado, não obstante reconhecer uma certa beleza lúgubre. Presumo que esta parte do rio deveria ser o tal “pego torvo” descrito por Pascoaes. A tal faceta de um Dão muito misterioso. Em oposição às águas verdes escuras do pego torvo, as águas de tonalidade verde esmeralda, e por vezes azulada, quase que diziam: aqui podes vir, aqui podes desfrutar o prazer de te banhares e deliciares com as minha belas ninfas. Do outro lado, a mensagem era oposta. Imaginava uma prisão de velhos espíritos celtas agrilhoados às longas escarpas que penetravam na profundidade do rio para que não invadissem o pequeno paraíso situado a montante.
“Não há céu sem nuvens...”, dizia o poeta saudosista. Pois não! As nuvens ficavam a jusante da ponte e o céu a montante.
Curioso! Ao fim de muitos anos, alguém nascido antes de mim acabou por me ajudar a interpretar o que sentia e o que via em pequeno.
Mas, o autor da “Arte de ser português” não fica por aqui. Logo a seguir podemos ler: “Santa Comba, apinhada num outeiro marginal, é como um templo de Dionísio no meio dum arraial de vides: romeiras vestidas de folhas e cachos de uvas, negras e doiradas. E o delicioso vinho, que o rio baptiza em nome de espírito, claro, faz-me sede de o conhecer. Mas, ai, só a nossa imaginação mergulha os lábios quiméricos nesse rubi translúcido”.
Pois bem, Pascoaes. Nem sabes o que perdeste! Tiveste que utilizar a imaginação para mergulhares os “lábios quiméricos” na maciez da bebida que seduziu os sentidos de Dionísio. Eu não! Neste momento, em que acabo de escrever esta despretensiosa crónica, mergulho os meus lábios num suave rubi translúcido em tua honra, pelo bem que me fizeste sentir. Que outros possam sentir o mesmo prazer.
À tua memória!
No dia 15 de Agosto de 1915, pelas duas horas da madrugada, o autor e os seus amigos iniciaram a viagem alvo de atenção literária. Até aqui nada de novo, a não ser as vivências e as análises profundas de quem é portador de uma alma poética.
Eis que, de repente, já depois de terem saído de Viseu, o amarantino tece curtas considerações sobre Tondela, abrindo-me a esperança de que falasse, também, de Santa Comba Dão, porque teria, forçosamente, de passar na minha terra. Sobressaltei-me quando o autor começa o seguinte parágrafo: “Súbito, abre-se um vale encantador: escaleiras de vinhedos descendo para o cristal extático do rio. Além, a arte humana quebra-lhe o sonho verde que se revolta, branqueja, pára, num sono escuro e profundo. É um pego torvo, contradizendo o alegre humor esmeraldino daquelas águas. Não há céu sem nuvens...”. Esta frase ilustra o que o autor deverá ter sentido quando se aproximou da ponte sobre o Dão.
Quando havia rio, agora afogado na albufeira, causava-me impressão como é que o Dão tinha personalidades tão distintas. Ao atravessar a ponte, saltava, invariavelmente, de um lado para o outro tentando compreender o mistério. A montante da ponte, e um pouco afastado desta, o rio era ternurento, social, amoroso, convidativo a mergulharmos no seu seio. Inspirava confiança, destilava alegria, prometia traquinices, oferecia prazer e sorria através da superfície azulada. Ao afunilar, já perto dos arcos da ponte, começava a dar sinais de mau humor, revelando um azedume e agressividade preocupantes. Então, quando passava para o outro lado as águas acalmavam-se e mudavam de cor ficando verdes escuras, denunciando um abismo que deveria esconder terríveis segredos. Ficava assustado, não obstante reconhecer uma certa beleza lúgubre. Presumo que esta parte do rio deveria ser o tal “pego torvo” descrito por Pascoaes. A tal faceta de um Dão muito misterioso. Em oposição às águas verdes escuras do pego torvo, as águas de tonalidade verde esmeralda, e por vezes azulada, quase que diziam: aqui podes vir, aqui podes desfrutar o prazer de te banhares e deliciares com as minha belas ninfas. Do outro lado, a mensagem era oposta. Imaginava uma prisão de velhos espíritos celtas agrilhoados às longas escarpas que penetravam na profundidade do rio para que não invadissem o pequeno paraíso situado a montante.
“Não há céu sem nuvens...”, dizia o poeta saudosista. Pois não! As nuvens ficavam a jusante da ponte e o céu a montante.
Curioso! Ao fim de muitos anos, alguém nascido antes de mim acabou por me ajudar a interpretar o que sentia e o que via em pequeno.
Mas, o autor da “Arte de ser português” não fica por aqui. Logo a seguir podemos ler: “Santa Comba, apinhada num outeiro marginal, é como um templo de Dionísio no meio dum arraial de vides: romeiras vestidas de folhas e cachos de uvas, negras e doiradas. E o delicioso vinho, que o rio baptiza em nome de espírito, claro, faz-me sede de o conhecer. Mas, ai, só a nossa imaginação mergulha os lábios quiméricos nesse rubi translúcido”.
Pois bem, Pascoaes. Nem sabes o que perdeste! Tiveste que utilizar a imaginação para mergulhares os “lábios quiméricos” na maciez da bebida que seduziu os sentidos de Dionísio. Eu não! Neste momento, em que acabo de escrever esta despretensiosa crónica, mergulho os meus lábios num suave rubi translúcido em tua honra, pelo bem que me fizeste sentir. Que outros possam sentir o mesmo prazer.
À tua memória!
Brilhante, caro Professor!...
ResponderEliminarSempre surpreendente, Sr. Doutor-escritor-poeta!
ResponderEliminarTambem eu estava aqui com os sermões do Padre António Veira nas mãos, deitando o rabo-do-olho ao Sr. Marcelo que me ia dizendo desde o televisor que achava estranho a Drª M.F.L. não ter aproveitado a ocasião para manifestar públicamente a sua opinião acerca da crise financeira, assim como a vontade de o PSD colaborar com o governo nas tomadas das medidas necessárias para debelar a crise, quando se me posa o olhar na seguinte quadra:
Vos quibus rector maris, atque terrae
Jus dedit magnum necis, atque vitae;
Ponite inflatos, tumidosque vultus;
Quidquid a vobis minor extimescit,
Maior hoc vobisdominus minatur.
Caro Bartolomeu.
ResponderEliminarTenho curiosidade emm saber o que esconde a quadra do Padre António Vieira. Como não tenho conhecimentos de latim, peço-lhe que faça a tradução.
Obrigado.
Pois os meus conhecimentos em latim, não me permitem tambem, fazer uma traducção pormenorizada.
ResponderEliminarContudo, resumidamente, digamos que o Padre António Vieira se referia a um governador do mar e da terra e a peixes maiores que, perseguindo cegamente peixes menores não reparam em outros ainda maiores que por trás deles aparecem para os comer.
;))))
Caro Bartolomeu, essa sua citação também dava um belo post, ó se dava! :)
ResponderEliminarCaro Porf. Massano, estes seus textos são uma lufada de ar fresco para estes nossos epíritos mergulhados na crise!
E já agora, caro Bartolomeu, o Pr. António Vieira não tem nenhuma citação para os que falam sem pensar no que dizem? É que o Prof. Marcelo, só deve ter ligado a televisão quando, ao sair de um encontro com autarcas em Tondela, onde falou longamente, a Dra. ferreira leite foi interpelada por uma jornalista com uma ou duas perguntas cujos temas, é claro, foi a dita jornalista que escolheu!Assim se faz um comentário...
ResponderEliminarNão faço ideia do que possa ter motivado a opinião do Sr. Marcelo, acerca da "estratégia" escolhida pela DRª. M.F.L.
ResponderEliminarNão conheço uma citação específica do Pr. António Vieira, dirigida específicamente àqueles advogados do dia... adiante. Conheço sim, uma citação de um outro grande pensador Luso, o Prof. Agostinho da Silva (sim, eu sei que o senhor era conectado com a esquerda, mas... pensava Portugal e a sociedade portuguesa numa optica de progresso) dizia ele que: "Quando numa cidade grega havia uma luta política, o partido vencido muitas vezes entrava em acordo com o vencedor ou não entrava, guiava-se por si próprio e emigrava. Ia-se embora, deixava aquela cidade enteregue ao partido vencedor e ele ia embora, para a Itália, por exemplo, para fazer ali uma nova cidade grega em que eles se governassem como queriam."
Bom, Drª. Suzana, por enquanto ainda temos as Berlengas e os Farilhões, que de momento ainda não possuem partido. Já foram um reino... em tempos, governado pelo autor Mário Viegas, mas depois que ele faleceu, perdeu-se a sucessão...
;))
E o partido vencedor governava em paz e sossego até que as suas próprias lutas internas o derrotassem? Há sempre formas mais ou menos engenhosas de contornar as dificuldades de uma convivência democrática, mas o facto é que, já que estamos em maré de citações, agora Churchil, esta é a pior solução, se descontarmos as outras todas. Por isso, há que defendê-la.
ResponderEliminarHa quem atribua à liderança dos partidos, a responsabilidade pela existência de lutas no seu seio.
ResponderEliminarPenso que a origem destas "lutas", que não chegam a ser demonstrativas da diferença, têm antes origem na falta de contenção e moderação das atitudes e ao exagero da agressividade dos discursos, mal disfarçada sob a capa da demonstração do dinamismo que se reclama para a efectiva liderança. Tudo isto, obviamente apoiado e aplaudido pelos "inferiores" que, à imagem daqueles peixinhos que andam sempre colados ao tubarão, aguardam pacientemente que os destroços de uma presa, lhes venha a sobrar.
Se andarmos um bocadinho para trás no tempo, até aos idos de oitenta e ao crash da bolsa, verificamos que associada á recuperação económica e aos anos aureos que a seguiram, surgiu a geração dos mega-gestores e dos mega-políticos. Gente animada de uma dinâmica super-aditivada, que revolucionou todos os conceitos, modificou normas e criou um novo conceito de política, "aldrabar para governar".
Quanto mais apurada se tornava a arte de iludir, maiores benefícios eram alcançados, mais adeptos eram conquistados. Esta "política" rápidamente se instalou e passou a estender-se aos diversos centros de gestão e decisão, transformando Portugal num país de faz-de-conta, onde hoje o governo anuncia algo, amanhã, emenda, depois desmente e no fim acaba por fazer da forma inversa àquela que anunciou. O grave é que as oposições não perceberam ainda que só se tornam alternativa se demonstrarem que são credíveis e, para que o sejam, necessitam da evidente estabilidade interna. Com discussão, pois claro, mas sem tricas e queixinhas, golpes e manobras obscuras.
Drª Suzana, não vejo forma de estar em desacordo com as palavras do Prof. Agostinho da Silva, a menos que os partidos aprovem unânimemente nos seus estatutos a proibição de um ex-dirigente poder ser candidato a novos cargos.
Mas se calhar considerar-se-ia essa medida anti-democrática, ou até fascista.
;)