A esperança é o alimento de nossa alma, ao qual sempre se mistura o veneno do medo. (Voltaire)
Lembro-me de ter ouvido várias histórias de conversão ocorridas no meio de tragédias, em casos de doenças graves e, sobretudo, à hora da morte. À hora da morte! Um momento que se vive apenas uma vez e do qual não há praticamente relatos do protagonista. À excepção de alguns felizardos que não têm que se “confrontar” com o final, a maioria, face à sensação de pequenez absoluta, provavelmente, sentirá o desejo de encontrar alguma tranquilidade, convertendo-se, porque o medo número um do homem é a morte, digam lá o que disserem. O medo de uma experiência real que contrasta com a estranha atracção de, em certos momentos, muitos pretenderem mergulhar na sua tranquilidade.
A divulgação dos casos de conversão revela um tendência sentimental para possibilitar que, à última hora, os inimigos da fé ainda se possam salvar.
A este propósito, foi divulgado que António Gramsci, o pensador marxista fundador do Partido Comunista Italiano, se converteu ao catolicismo pouco tempo antes de morrer, em 1937, no hospital. No entanto, o presidente da Fundação Gramsci afirmou que não há nenhuma prova da dita conversão, já que dispõe de cartas escritas nessa altura.
Em 1955, aquando da morte de Ortega y Gasset, ocorreu um fenómeno semelhante. Um religioso, seu conhecido, escreveu no diário ter sido testemunha da reviravolta do filósofo no seu leito de morte. Os filhos de Ortega negaram a afirmação do frade, porque a última pessoa que esteve junto dele nas últimas horas descreveu as conversas que continuavam a traduzir o seu pensamento.
Dentro das mais célebres conversões consta a de Voltaire, o imparável filósofo do século XVIII, cujo anticlericalismo e ataques à religião são por demais conhecidos.
Aos oitenta e quatro anos, após ter vomitado sangue, mandou chamar o sacerdote. Segundo reza o escrito, Voltaire terá confessado e pedido perdão a Deus, esperando que a divina misericórdia se dignasse a perdoar todas as suas faltas. Voltaire assinou a profissão de fé em 2 de Março de 1778, na presença do sobrinho e de um amigo, o marquês de Villevielle, o qual, conjuntamente com o abade, também a assinaram. Quem diria que Voltaire fizesse o que fez. O pior é que não morreu logo a seguir e, como melhorou um pouco, voltou à primeira forma com a sua acostumada violência. Mas à segunda, que foi de vez, morreu em 30 de Maio de 1778, os amigos impediram-no de fazer uma nova confissão!
O autor do “Poema sobre o Desastre de Lisboa” foi um genial pensador e, ao mesmo tempo, um homem como qualquer outro com receios e incertezas. Não era utópico. Para Voltaire um lugar perfeito é manifestamente intolerável, porque não é possível ansiar mais qualquer coisa. Também não era estóico, “porque o estóico busca extinguir a esperança”, o último recurso do homem.
Os últimos versos do “Poema sobre o Desastre de Lisboa”, revelam que a esperança, sendo um exclusivo humano, é o único privilégio negado a Deus.
Utopia e estoicismo à hora da morte?! Nunca o saberemos, quer se trate de Voltaire, de Ortega ou de Gramsci...
Un calife autrefois, à son heure dernière,
Au Dieu qu'il adorait dit pour toute prière:
"Je t'apporte, ô seul roi, seul être illimité,
Tout ce que tu n'as pas dans ton immensité,
Les défauts, les regrets, les maux et l'ignorance."
Mais il pouvait encore ajouter l'espérance.
(Voltaire)
Lembro-me de ter ouvido várias histórias de conversão ocorridas no meio de tragédias, em casos de doenças graves e, sobretudo, à hora da morte. À hora da morte! Um momento que se vive apenas uma vez e do qual não há praticamente relatos do protagonista. À excepção de alguns felizardos que não têm que se “confrontar” com o final, a maioria, face à sensação de pequenez absoluta, provavelmente, sentirá o desejo de encontrar alguma tranquilidade, convertendo-se, porque o medo número um do homem é a morte, digam lá o que disserem. O medo de uma experiência real que contrasta com a estranha atracção de, em certos momentos, muitos pretenderem mergulhar na sua tranquilidade.
A divulgação dos casos de conversão revela um tendência sentimental para possibilitar que, à última hora, os inimigos da fé ainda se possam salvar.
A este propósito, foi divulgado que António Gramsci, o pensador marxista fundador do Partido Comunista Italiano, se converteu ao catolicismo pouco tempo antes de morrer, em 1937, no hospital. No entanto, o presidente da Fundação Gramsci afirmou que não há nenhuma prova da dita conversão, já que dispõe de cartas escritas nessa altura.
Em 1955, aquando da morte de Ortega y Gasset, ocorreu um fenómeno semelhante. Um religioso, seu conhecido, escreveu no diário ter sido testemunha da reviravolta do filósofo no seu leito de morte. Os filhos de Ortega negaram a afirmação do frade, porque a última pessoa que esteve junto dele nas últimas horas descreveu as conversas que continuavam a traduzir o seu pensamento.
Dentro das mais célebres conversões consta a de Voltaire, o imparável filósofo do século XVIII, cujo anticlericalismo e ataques à religião são por demais conhecidos.
Aos oitenta e quatro anos, após ter vomitado sangue, mandou chamar o sacerdote. Segundo reza o escrito, Voltaire terá confessado e pedido perdão a Deus, esperando que a divina misericórdia se dignasse a perdoar todas as suas faltas. Voltaire assinou a profissão de fé em 2 de Março de 1778, na presença do sobrinho e de um amigo, o marquês de Villevielle, o qual, conjuntamente com o abade, também a assinaram. Quem diria que Voltaire fizesse o que fez. O pior é que não morreu logo a seguir e, como melhorou um pouco, voltou à primeira forma com a sua acostumada violência. Mas à segunda, que foi de vez, morreu em 30 de Maio de 1778, os amigos impediram-no de fazer uma nova confissão!
O autor do “Poema sobre o Desastre de Lisboa” foi um genial pensador e, ao mesmo tempo, um homem como qualquer outro com receios e incertezas. Não era utópico. Para Voltaire um lugar perfeito é manifestamente intolerável, porque não é possível ansiar mais qualquer coisa. Também não era estóico, “porque o estóico busca extinguir a esperança”, o último recurso do homem.
Os últimos versos do “Poema sobre o Desastre de Lisboa”, revelam que a esperança, sendo um exclusivo humano, é o único privilégio negado a Deus.
Utopia e estoicismo à hora da morte?! Nunca o saberemos, quer se trate de Voltaire, de Ortega ou de Gramsci...
Un calife autrefois, à son heure dernière,
Au Dieu qu'il adorait dit pour toute prière:
"Je t'apporte, ô seul roi, seul être illimité,
Tout ce que tu n'as pas dans ton immensité,
Les défauts, les regrets, les maux et l'ignorance."
Mais il pouvait encore ajouter l'espérance.
(Voltaire)
Não creio, caro Professor, que por muito estóico que se possa ser, se esqueça ou até se abomine a esperança, do mesmo modo que por muito anticlerical que se seja, não se possua a consciência suficiente para que se deseje a absolvição dos pecados, mesmo que tenham sido cometidos em nome ou, em defesa da liberdade.
ResponderEliminarA remissão que o moribundo busca obter ao confessar os seus pecados, parece-me que tenha mais a ver com o desejo de se "equilibrar" nas contas terrenas, do que naquelas respeitantes ao divino.
A "recaída" de Voltair, vem ao encontro deste pensamento. Aquilo que Voltair combatia eram o clericalísmo, e a forma reductora como a igreja exercia o poder, desencontrando-se desse modo da doutrina e da essência do Cristianismo.
Creio que Voltair possuía a consciência perfeita do espírito divino, ou do espírito do Homem, e que se insurgia contra o poder daqueles que em nome da sua defesa lhe deturpavam o sentido original, praticando as maiores barbaridades em seu nome.
Como sabemos e o caro Professor manifesta neste texto, quando vomitou sangue, aos 84 anos de idade, Voltair pediu perdão a Deus, se eventualmente O ofendeu, assim como à igreja. Ou seja, Voltair subjugou ao critério divino, à omnisciência de Deus o julgamento dos seus actos, tão veementemente repudiados pelos altos dignatários eclesiásticos até aquele momento.
A separação entre a essência do divino e a religião estavam patentes nos seus acesos ataques aos dogmas da igreja católica e à protecção aos regimes monarquicos absaolutistas, os quais não se enquadravam na sua visão de uma sociedade regida por leis suportadas pela ciência.
Afinal, um iluminista, tal como o nosso Marquês de Pombal, seu contemporâneo.
Ao ler este postal, veio-me à ideia o célebre soneto de Bocage "Já Bocage não sou...". Estas conversões à beira da morte sempre me impressionaram e não sei se são verdadeiras conversões ou se, como se depreende no caso de Voltaire do comentário anterior, uma separação entre a crença no divino e a denúncia do modo como o clero pratica a religião. Não sei se à hora da morte me virei a converter a uma qualquer religião, por isso abstenho-me de comentar sobre os que o fazem.
ResponderEliminarUm célebre pensamento: "Se acreditas em Deus, é porque temes a morte"
ResponderEliminarHmmm...
O mesmo raciocínio poderia fácilmente ser aceite para muitos e diferentes contextos da vida, por exemplo: " Se acreditas nas regras de trânsito, é porque temes os acidentes", "Se acreditas no poder do diálogo, é porque temes a discussão", " Se acreditas na superstição, é porque temes a certeza da ciência", ou... "Se acreditas na alegria, é porque temes a tristeza"
Acreditar é portanto a chave da porta que permite a passagem para a felicidade, ou para a tranquilidade, como refere o caro Professor massano Cardoso, no final do primeiro parágrafo.
;)