Vivemos tão massacrados com este ambiente de crise, de conflitos e ameaças por todos os lados que já ligamos a televisão a medo, não nos salte de lá mais um ataque bombista, mais mortes e calamidades, mais revoltas ou falências globais. Quando saímos à rua anúncios que convidam ao consumo já nos parecem desfasados da realidade e até as iluminações de Natal nesta nossa cidade de Lisboa foram substituidos por um sentido pragmático que nos deixa uma nostalgia dos tempos felizes.
Ontem ouvi uma travagem na rua, seguida de portas a bater e logo uma gritaria rouca. Os dois condutores tinham saido do carro e envolveram-se à pancada, cegos de uma raiva absurda, como se quisessem vingar-se das contrariedades da vida ali mesmo no meio da estrada, com o primeiro que lhes aparecesse. Comentei o assunto com amigos e logo se contaram outros episódios, discussões, pancada e agressões, a verdade é que há agora uma campanha contra a violência...no namoro!, imagine-se, explicar aos jovens apaixonados que o melhor é não andarem aos murros, há outras maneiras mais delicadas de exprimir os afectos! Foi por isso que me lembrei de um episódio que na altura me pareceu apenas curioso mas que realmente ganha outra dimensão no mundo bruto e agreste em que vivemos.
Quando estivémos em Buenos Aires, fomos uma noite a um bar muito engraçado onde, claro, se cantava e dançava tango, o Bar Sur, perdido numa ruela escura mas que tinha recebido na véspera o reconhecimento oficial de “interesse cultural”.
O bar era minúsculo, meia dúzia de mesas em baixo e mais três ou quatro num plano mais acima, mal iluminado, e onde os músicos e dois casais de bailarinos faziam verdadeiros milagres de ritmo e poesia, criando um ambiente mágico.
Numa das mesas distinguia-se uma mulher sozinha, uma senhora que já não era nova e que, via-se bem, era uma presença habitual na casa pela simpatia e familiaridade com que os artistas a saudavam. De vez em quando ela saía e voltava pouco depois, sempre com um pequeno ramo de rosas na mão, reparei que vestia com humildade e que tinha um casaco muito gasto e pouco quente para a noite fria de fim de Inverno.
Quando saímos ela não estava lá dentro mas fomos encontrá-la ao virar da esquina, onde passavam os táxis. Sorriu para nós como se já nos conhecesse e estendeu uma rosa.
- Não quer oferecer uma rosa à senhora?, - perguntou ela ao meu marido – não estou a vender, faço isto todas as noites, gosto de ouvir música no Bar Sur e se as pessoas quiserem dar-me alguma coisa, dão…
Fiquei com a rosa, é claro, e ela recebeu as moedas sem as olhar, como se não tivesse pressa em sair dali.
- Sabe, disse ela para mim, - eu não vendo nada, sou só uma intermediária entre a vontade de dar e a vontade de receber…
E lá seguiu rua fora, com o seu passo miudinho e friorento, levando o raminho de rosas e o sorriso doce que por instantes iluminou a noite.
O bar era minúsculo, meia dúzia de mesas em baixo e mais três ou quatro num plano mais acima, mal iluminado, e onde os músicos e dois casais de bailarinos faziam verdadeiros milagres de ritmo e poesia, criando um ambiente mágico.
Numa das mesas distinguia-se uma mulher sozinha, uma senhora que já não era nova e que, via-se bem, era uma presença habitual na casa pela simpatia e familiaridade com que os artistas a saudavam. De vez em quando ela saía e voltava pouco depois, sempre com um pequeno ramo de rosas na mão, reparei que vestia com humildade e que tinha um casaco muito gasto e pouco quente para a noite fria de fim de Inverno.
Quando saímos ela não estava lá dentro mas fomos encontrá-la ao virar da esquina, onde passavam os táxis. Sorriu para nós como se já nos conhecesse e estendeu uma rosa.
- Não quer oferecer uma rosa à senhora?, - perguntou ela ao meu marido – não estou a vender, faço isto todas as noites, gosto de ouvir música no Bar Sur e se as pessoas quiserem dar-me alguma coisa, dão…
Fiquei com a rosa, é claro, e ela recebeu as moedas sem as olhar, como se não tivesse pressa em sair dali.
- Sabe, disse ela para mim, - eu não vendo nada, sou só uma intermediária entre a vontade de dar e a vontade de receber…
E lá seguiu rua fora, com o seu passo miudinho e friorento, levando o raminho de rosas e o sorriso doce que por instantes iluminou a noite.
Muito bom, muito doce e perfumado texto, Senhora Dona Suzana Toscano.
ResponderEliminarEntre a vontade de dar... e a vontade de receber... conceito absolutamente antagónico ao do capitalismo, o qual se baseia no estímulo ao consumo, explorando o produtor e o consumidor, de forma a que todo o lucro fique em posse do intermediário.
Quando EU fôr Presidente da República, todos os empresários deste país vão ser obrigados a fazer um estágio no Bar Sur, colocados aos cuidados da "Dama das Rosas".
Talvez...
já tem o meu voto, caro bartolomeu!
ResponderEliminarCara Dra. Suzana Toscano:
ResponderEliminarJá me disseram que o tempo naquelas paragens corre mais lento, para dar mais tempo à dança do tango que se quer bem dançada e prolongada…
Tirando o tango e o naco de carne sobra um país com um rendimento per capita inferior ao nosso onde, talvez por isso, essa vendedeira de rosas tenha tempo para ser a intermediária entre a “vontade de dar e a vontade de receber… “
PS:
ResponderEliminartem*
:)
Suzana
ResponderEliminarQuem poderá resistir a tamanha "sedução"? Costuma-se dizer que pedir não custa. Não concordo, pois pedir pode custar o suficiente para não pedir. A "mulher sozinha" arranjou uma ternura tocante de não vender nem pedir, simplesmente dizendo o que é a pura da verdade: quando há vontade de dar e vontade de receber o melhor acontece...
Caro jotac, talvez o tempo lá corra mais lento, como diz, ou talvez a pobreza obrigue as pessoas a serem mais imaginativas para conseguirem umas moedas sem perderem a dignidade.
ResponderEliminarMargarida, é isso mesmo, é difícil resistir a essa "sedução" de pedir oferecendo, mas para isso também é preciso saber ler os outros, detectar esses sinais de vontade de ser seduzido...