quinta-feira, 2 de abril de 2009

Amélie

A D. Amélia, com os seus 94 anos e muitas maleitas em cima, tem revelado ultimamente um quadro a que poderei chamar “cansaço de viver”. Atormentada com as dores e com significativas dificuldades na marcha, em ver, em ouvir e com um coração que há mais de vinte anos anda a ameaçar que a vai matar, lamenta-se, dizendo que já não vale a pena viver, que está cansada, que já viveu muito e que não tem nada a esperar do tempo que lhe resta ou que lhe sobra. Acresce a este discurso o muito que a vida já lhe proporcionou, tragédias e sofrimentos, os quais, ao recordar-se, agravam o seu estado de saúde. Ouço-a em silêncio e transmito o máximo de respeitabilidade pelas suas considerações. Quando deteto uma certa acalmia, interpelo-a, dizendo-lhe que está muito bem penteada. Da última vez trazia um novo penteado que lhe ficava a matar. Foi o que eu fiz: - A senhora está mesmo muito bonita! – Acha senhor doutor? – Claro! Sabe muito bem que gosto de ver uma senhora de idade, ou melhor, sejamos francos, uma velhinha toda composta e bem penteada. – Mas para quê, senhor doutor! Nem imagina o esforço que tenho que fazer para ir à cabeleireira. Só Deus é que sabe o meu sacrifício! – Está bem, mas fica muito mais bonita. A senhora quando era nova devia ser uma beleza difícil de igualar. – Não é para me gabar, mas de facto até era. E sabe que mais, pretendentes eram uns atrás de outros. – Bons tempos, não é verdade D. Amélia? – Ai se foram! Hum! O que o senhor doutor quer é tirar nabos da púcara! Pois olhe, vou-lhe contar algo que eu nunca disse a ninguém, sabe? Tinha uns dezanove anos e queria ir a um bailarico, mas, como compreende, naquele tempo, não era como hoje, não era nada fácil, e foi então que...
Sem dores, sem sofrimento, com um sorriso estampado na face, acompanhada do tal coração que há vinte anos anda a tentar matá-la, e que teve que gramar o reviver de certas emoções, D. Amélia contou uma peripécia que só nós os dois conhecemos. E que peripécia! No final, despedi-me com aquela ansiedade típica destes casos; “será que nunca mais a verei?”. Ao mesmo tempo acalentei a senhora, dizendo-lhe que para a próxima vez teria de contar mais coisas belas. Sorriu. Não tinha acabado de dar dois passos quando comentou: - Vou ver se consigo estar ainda viva!
Lembrei-me da D. Amélia por causa de Amélie, a belga de 93 anos que chegou a fazer greve de fome como forma de protesto por não lhe aplicarem a eutanásia.
Na Bélgica a eutanásia é permitida desde que o doente sofra de doença fatal. No caso de Amélie, a doença não era fatal, sofria de polipatologia que a obrigava a permanecer acamada. Estava cansada de viver e pedia que a “deixassem morrer”. Acredito que sim, que estivesse cansada de viver, porque esta situação começa a ser mais comum do que parece. A belga deixou de fazer greve da fome ao fim de dois dias, e conseguiu, após um pedido por escrito, que fosse objeto de eutanásia praticado por um clínico, no dia um de Abril.
Estou convicto que se a fizessem recordar as coisas belas da sua vida, e se fosse submetida a um adequado penteado, Amélie ainda teria tempo para reviver o passado, mesmo que o futuro fosse o mais cruel possível.
Um dia destes, inevitavelmente, a D. Amélia acabará por liquidar o seu próprio coração, o tal que há mais de vinte anos anda, paranoicamente, a tentar matá-la. Estou certo, e se não estiver desejo vivamente, que tal acontecerá durante o sono, ao sonhar com alguma das suas peripécias em que o seu coração foi protagonista, e se este não aguentar, paciência, “amor com amor se paga”...

2 comentários:

  1. Ha seres humanos cuja existência comparo em muito ao "Colosso de Rodes".
    Tal como a estátua, estas pessoas são feitas à imagem de Deus, são em bronze por fora, mas o seu interior é oco, oco de muitas coisas, inclusivé da vontade de viver, e tal como o colosso, um dos seus pés assenta numa margem e o outro na outra margem da vida.
    Tal como acontecia com a estátua, cada um que chega, é obrigado a admirar a dimensão destes monumentos humanos e... a venerá-los.
    Tal como na estátua... o material utilizado foi obtido da fundição dos muitos trabalhos passados ao longo de uma existência e, só um terramoto as derrubará, tal como... ao colosso.
    ;)))
    Um grande beijo para todas as nossas colossais Amelies, baluartes vivos da resistência humana.

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  2. Caro massano Cardoso, acho que um médico que fala assim com a D. Amélia acrescenta-lhe anos de vida!às vezes é tão simples dar um pouco de vontade de viver a quem já não espera nada de importante da vida, é pena que se perca tanto tempo a discutir como é que se há-de acabar com a vida em vez de gastarmos uns minutos a dar razões para viver...

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