Quando entrei pela primeira vez no seu gabinete fiquei boquiaberto pela forma surpreendentemente organizada do mesmo. Cadeiras alinhadas, secretária arrumada de forma geométrica, livros dispostos nas estantes como soldados de um batalhão a apresentar armas. Tudo certinho. Nada fora do sítio. Sentia-se no ar algo que não era muito habitual. A própria figura seguia no mesmo sentido, materializada na forma de vestir e no próprio penteado, o qual, por artes mágicas, nunca se apresentou curto, comprido ou despenteado, como se cada cabelo soubesse qual o seu lugar e comprimento. As palavras eram pausadas, previamente pensadas, assim como a expressão dos sentimentos, não muito efusivos em caso de satisfação nem muito tristes no caso de incómodo, sempre dentro de uma certa escala decididamente estudada. Verdadeiro diplomata, era incapaz de exteriorizar qualquer expressão ou som menos apropriados. Quando escrevia, as letras saiam bem desenhadas e percetíveis, povoando o papel branco, que parecia ter linha invisíveis, de palavras e frases bem construídas, tamanho era o seu rigor pela língua. Praticamente não rasurava e, quando o fazia, a palavra ou frase eliminada tinha um encanto especial. Não sei como conseguia, mas quase que me apetecia afirmar que deveria ter uma pequena régua com a qual matava com dois riscos simétricos a frase a abater.
No laboratório, as experiências seguiam o mesmo princípio. Demorava tempos infinitos a pesar os reagentes com uma precisão incrível. Combinava todos os tempos num ritual sem comparação. Quando, por qualquer motivo, falhava, ficava a meditar e a analisar todos os procedimentos efetuados na expectativa de encontrar os motivos. Depois enunciava-os e voltava ao princípio esperando que dessa feita corresse tudo bem. Mas não era tão linear como isso, por vezes tínhamos que repetir várias vezes as experiências até acertarmos com todos os passos. Durante todo o tempo, horas, dias ou semanas, nunca mostrava sinais de contrariedade. Superorganizado, o seu perfeccionismo estendia-se a tudo o resto, fosse na correção dos pontos, na sua elaboração, na contagem da pontuação (mais do que uma vez), no lançamento das notas, na revisão das provas tipográficas, na preparação das aulas e dos projetos, nas comunicações, nos relatórios, nas reuniões e até nos atos sociais, em que, apesar de mais descontraído, não conseguia evitar de revelar o seu perfeccionismo.
Tentava imitá-lo, mas não conseguia. Era muito doloroso gastar tanto tempo a arrumar as coisas. Ficava cansado, com dores de cabeça e com uma sensação de tempo perdido. Decididamente não conseguia competir com a sua “entropia negativa”. Durante um dia ou dois as “coisas” ficavam mais ou menos arrumadas, mas, de repente, a reação de desorganização instalava-se com uma fúria silenciosa e quando dava conta estava tudo fora do sítio. Uma tragédia. Perdia os apontamentos, deixava tudo desalinhado, não conseguia escrever as palavras de forma percetível para os outros e, às vezes, até para mim, o que me provocava uma certa raiva. Muitas vezes tirava um livro de uma estante e, depois, já não conseguia colocá-lo no local original. Sabia que lhe provocava um certo incómodo, mas não dizia nada. Ao fim de algum tempo passei a ser, praticamente, o culpado de tudo o que acontecia de “anormal”, entre o restante pessoal sénior e auxiliares. Se faltava alguma coisa ou estava fora do lugar a explicação “científica” chegava com determinação: - Ah! Deve ter sido... E, na maior parte dos casos, não era o responsável, mas acabava de pagar as favas!
Muitas vezes pus-me a pensar se as células do seu corpo estariam, também, sujeitas a tanto rigor, e se não correria riscos de saúde. Diabo, o rigor é necessário mas também é preciso uma certa versatilidade e abertura. Aquele esforço, se é que era esforço, devia ser muito perigoso. Tentava, assim, justificar a minha eterna tendência para a desorganização, qual forma de entropia acelerada, que ainda hoje se manifesta, como sendo a mais saudável e natural. Penso eu! E parece que sim, porque o risco de morrer aumenta de forma significativa nos que apresentam um comportamento do tipo perfeccionista. Num estudo canadiano, a que tive acesso, os indivíduos que são mais otimistas, extrovertidos e “inconscientes” (está entre aspas, para que não haja confusão!) apresentam risco de morrer significativamente mais baixo. Os mecanismos começam a ser esclarecidos, envolvendo vários intervenientes fisiológicos.
Atendendo ao que se passou, morte prematura, a minha opinião de que aquele comportamento era perigoso para a saúde, afinal, poderia estar correta...
No laboratório, as experiências seguiam o mesmo princípio. Demorava tempos infinitos a pesar os reagentes com uma precisão incrível. Combinava todos os tempos num ritual sem comparação. Quando, por qualquer motivo, falhava, ficava a meditar e a analisar todos os procedimentos efetuados na expectativa de encontrar os motivos. Depois enunciava-os e voltava ao princípio esperando que dessa feita corresse tudo bem. Mas não era tão linear como isso, por vezes tínhamos que repetir várias vezes as experiências até acertarmos com todos os passos. Durante todo o tempo, horas, dias ou semanas, nunca mostrava sinais de contrariedade. Superorganizado, o seu perfeccionismo estendia-se a tudo o resto, fosse na correção dos pontos, na sua elaboração, na contagem da pontuação (mais do que uma vez), no lançamento das notas, na revisão das provas tipográficas, na preparação das aulas e dos projetos, nas comunicações, nos relatórios, nas reuniões e até nos atos sociais, em que, apesar de mais descontraído, não conseguia evitar de revelar o seu perfeccionismo.
Tentava imitá-lo, mas não conseguia. Era muito doloroso gastar tanto tempo a arrumar as coisas. Ficava cansado, com dores de cabeça e com uma sensação de tempo perdido. Decididamente não conseguia competir com a sua “entropia negativa”. Durante um dia ou dois as “coisas” ficavam mais ou menos arrumadas, mas, de repente, a reação de desorganização instalava-se com uma fúria silenciosa e quando dava conta estava tudo fora do sítio. Uma tragédia. Perdia os apontamentos, deixava tudo desalinhado, não conseguia escrever as palavras de forma percetível para os outros e, às vezes, até para mim, o que me provocava uma certa raiva. Muitas vezes tirava um livro de uma estante e, depois, já não conseguia colocá-lo no local original. Sabia que lhe provocava um certo incómodo, mas não dizia nada. Ao fim de algum tempo passei a ser, praticamente, o culpado de tudo o que acontecia de “anormal”, entre o restante pessoal sénior e auxiliares. Se faltava alguma coisa ou estava fora do lugar a explicação “científica” chegava com determinação: - Ah! Deve ter sido... E, na maior parte dos casos, não era o responsável, mas acabava de pagar as favas!
Muitas vezes pus-me a pensar se as células do seu corpo estariam, também, sujeitas a tanto rigor, e se não correria riscos de saúde. Diabo, o rigor é necessário mas também é preciso uma certa versatilidade e abertura. Aquele esforço, se é que era esforço, devia ser muito perigoso. Tentava, assim, justificar a minha eterna tendência para a desorganização, qual forma de entropia acelerada, que ainda hoje se manifesta, como sendo a mais saudável e natural. Penso eu! E parece que sim, porque o risco de morrer aumenta de forma significativa nos que apresentam um comportamento do tipo perfeccionista. Num estudo canadiano, a que tive acesso, os indivíduos que são mais otimistas, extrovertidos e “inconscientes” (está entre aspas, para que não haja confusão!) apresentam risco de morrer significativamente mais baixo. Os mecanismos começam a ser esclarecidos, envolvendo vários intervenientes fisiológicos.
Atendendo ao que se passou, morte prematura, a minha opinião de que aquele comportamento era perigoso para a saúde, afinal, poderia estar correta...
«os indivíduos que são mais otimistas, extrovertidos e “inconscientes” apresentam risco de morrer significativamente mais baixo»
ResponderEliminarOra... abóbora!!! Quer dizer que corro o risco de vir a ser imortal!?
Qando iniciei funções no actual "emprego" (está entre parentes para que não haja confusão com, "trabalho" ;)) já lá vão vinte e qualquer-coisa anos, comecei por trabalhar directamente com um alto dirigente daquela casa. Se lhe disser, caro professor, que a semelhança entre a desrição que faz das características do seu personagem e as do meu, é rigorosa, acredite que não lhe minto.
O senhor era e felizmente é ainda, apesar de muito idoso, um aristocrata de berço, bservador de um infinito rigor em tudo o que lhe dizia respeito, assim como daquilo que o rodeava. Chegava diáriamente à mesma hora, saía para almoço e regressava, rigorosamente ao mesmo minuto e regressava a casa ao segundo preciso. O gabinete, a secretária, os documentos sobre ela, parecia que tinham sido definitivamente pregados ao seu lugar. Falava sempre num tom calmo, curto e preciso, mesmo quando despachava com os chefes dos serviços. Inexplicávelmente quando entrava no gabinete onde eu estava, nunca sem antes bater na porta levemente, e que era contíguo ao seu, detinha-se um pouco mais, conversando soubre assuntos de circunstância, e parecia-me que nessa altura a sua postura rígida e alinhada se descontraía um pouco mais, regressando quando voltava ao seu posto. Um dia, numa tarde de verão, sentado à secretária, socumbi a um "cochilo" (como dizem os brasileiros) acordei porque senti um leve ruído à minha frente. Sobressaltei-me, levantei-me de imediato, envergonhado e completamente "sem jeito" (até parece que já aderi ao acordo ortográfico). - Peço-lhe imensa desculpa pela minha falta Sr. Doutor, não voltará a suceder, disse-lhe, completamente embaraçado.
Sem saír da sua postura aristocrata, olhou-me de frente e disse: Por amor de Deus, não esteja preocupado, fez muito bem em descansar por uns momentos, tomara eu poder fazer o mesmo, por vezes.
A partir desse dia, fiquei a compreender que as barras da prisão em que aquele Senhor se forçava a viver encarcerado, eram talvez mais asfixiantes e limitadoras que aquelas que prendem os verdadeiros reclusos.
O perfeccionismo é uma atitude estranha, por um lado revela uma grande insegurança, por outra uma exigência pessoal que supera a dos outros, é uma espécie de arrogância. Uma pessoa que não se permite falhar em nenhum detalhe, que tanto se esmera na investigação científica como na arrumação de papéis, deve ter um "espartilho" interior feito de ferro.Ou não quer sujeitar-se a qualquer crítica, ou por qualquer razão acha que tem que ser irrepreensível. O problema é que depois também se tornam intolerantes com os outros, como se quisessem chamar a atenção para o "seu" padrão de comparação. Como chefes, sendo difícies de suportar, também devem criar hábitos de disciplina que depois ficam para a vida inteira...a menos que se deixem contagiar pelos deslizes saudáveis de um "cochilo" depois de almoço, como diz o caro Bartolommeu :)
ResponderEliminarCaro Professor Massano Cardoso
ResponderEliminarLi há pouco um artigo, a propósito do optimismo, que dava nota de que um estudo recente garante que quem vê o copo sempre cheio tem menos 23% de hipóteses de morrer de doenças do coração.
Seria importante que este tipo de estudos fossem mais divulgados e deles retiradas consequências úteis para melhorar a nossa "qualidade de vida".
Há aspectos da nossa maneira de ser que talvez pudessem ser corrigidos de modo a permitir um "estilo de vida" mais saudável, poupando-nos a graves problemas de saúde.
Se um perfeccionista se sente feliz não terá, a bem dizer, razão para se preocupar com a sua saúde!
Um perfeccionista feliz? Ele bem quer, mas o tal esforço que, muitas vezes, até,já não dá conta, tem efeitos metabólicos e imunológicos que, com o tempo, acabam por fazer das suas...
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