Fim de tarde. Radiosa, azul e transparente. Avançava para a parte final do livro, mais meia a três quartos de hora e acabava a leitura, quando ouvi o característico Pum! Bateram dois carros. Naquela ponte? Como é possível? Muita pequena e estreita, e agora sem possibilidade de a atravessar, um jovem, que conduzia uma carrinha branca, teve que fazer marcha atrás, ou então deixou descair o veículo no preciso momento em que um carro, conduzido por uma mocinha, tinha parado sem, aparentemente, haver motivos para isso. O rapaz sai da viatura, a rapariga também, e, ambos sorridentes, começam a analisar o sucedido. Da forma como falavam tudo apontava para que houvesse entendimento entre os dois. O rapaz distraiu-se! Continuei a ler. Entretanto, surgem pessoas, muitas pessoas, que interromperam os seus afazeres e não afazeres para saborear o acontecimento. Olho e reparo que os dois jovens já não estão a entender-se. A moça agita-se, o rapaz afasta-se e de telefone em punho deverá estar a chamar ou a contar a alguém. Não tarda que familiares dos dois estejam presentes. Um familiar da jovem, depois de a auscultar, trava conversa com o autor da façanha e demonstra, pela altura da voz, o seu desagrado com a contradição do mesmo.
Junta-se mais gente. O ex-militar, de t-shirt vermelha, óculos escuros, cabelo à escovinha e pochete, aproxima-se mas não em demasia, e, a meio da ponte começa a fazer uma análise tipo estratégia militar. Coça a cabeça, afaga o bandulho, passa de um lado para outro, aproxima-se um pouco mais, recua, enfim, parece que está a recolher todos os elementos. Já tem matéria para à noite conversar. Parece que não é preciso chegar à noite, porque com a chegada de mais pessoas, já começou a dar explicações sobre o sucedido e aparentemente – basta ver os gestos – com minudências exclusivas de quem não viu o que se passou!
Eis que chega a autoridade num jipe. Saem dois agentes, um mais novo, outro de mais idade, suficientemente barrigudo para ser obrigado militarmente a fazer dieta e exercício. Armados do bloco de notas, fita métrica, tomam as diligências necessárias para elaborar o inquérito.
Mais gente. O carniceiro, de bata branca e suja, e que deve bater o perímetro abdominal de qualquer um nas redondezas lá se foi inteirar do sucedido. Mais pessoas de todas as idades e de ambos os sexos. Uma pequena festividade. Nenhum deles assistiu ao quer que fosse, mas já tinham começado a tomar partido e a atribuir culpas a um dos dois. Um encanto. Mais gente. Começo a contar. Duas dezenas de pessoas naquela pequenina e estreita ponte! Nem no dia anterior, aquando da passagem da procissão do Corpo de Deus, conseguiu albergar tantas pessoas ao mesmo tempo. E a procissão foi mesmo comprida! Ainda vamos ter um pôr-do-sol mais festivo do que a festa prometida para daí a algumas horas. O ex-militar continua a dissertar. Nem mesmo as gotas dispersadas pelo vento do repuxo maior da ribeira conseguiram impedi-lo de dar as explicações a todos que entretanto continuavam a chegar. Há quem comente a disposição daqueles pinos que limitam a via naquele espaço. São críticas de quem deve ser oposicionista ao presidente da câmara. E ainda não começou a campanha eleitoral para as autárquicas!
Afinal, o GNR barrigudo também fuma. Penso: - O gajo ainda se lixa! E pelo convite de um dos mirones a perguntar-lhe se vai uma cervejita, a minha hipótese ficou reforçada: - Mais um fator de risco!
Na loja ao lado, primorosamente cognominada “Sonhos de Anjos” – nem sabia que os anjos sonhavam! -, quatro senhoras, três das quais sentadas num banco em frente da montra, e ladeada por representantes very kitsch de um leão de madeira e duas estátuas “vindas diretamente da Tailândia”, conversavam alheias ao acidente. A conversa devia focar outros acidentes mais apetitosos, decerto!
Na velhinha ponte, reconstruída em 1735 e restaurada em 1926, agora atulhada de gente, ouvia-se a voz irritada da jovem que protestava veemente. Ao fundo, a torre da igreja, prestes a dar as sete da tarde, linda, brilhante, soberana, dominava todo o enquadramento da praça do município. Atrás de mim, na esplanada, uma senhora empunhava a sua máquina digital, preparando-se para registar o mais relevante acontecimento da ponte, precisamente durante ponte entre o Corpo de Deus e o Santo António. Dois turistas, sim, porque para aquelas bandas também aparecem, alheios ao acidente e à multidão emborcavam cervejas atrás de cervejas fazendo jus às suas características e timbre. No meio disto tudo, pus-me a pensar quem é que iria ganhar a questão do acidente, se a jovem ou o rapaz de cabelo encaracolado.
Às oito fui para o arraial, jantar com os amigos e fazer conversa de aldeia, quando deparei com uma aglomeração de formigas em redor de algo esbranquiçado. Eram tantas que mais parecia uma pequena mancha negra no lajedo do granito claro. Pensei: - hum não me parece que tenha havido aqui algum acidente! Não, era apenas trabalho e oportunidade para levar para casa o açucarzito que alguém deverá ter lançado ao chão. Já o lusco-fusco se tinha instalado quando, em cima da ribeira, não muito afastado das mesas do repasto, deparei com um rodopiar curioso que me chamou a atenção. Milhares de mosquitos dançavam freneticamente. Uma nuvem que conseguia faiscar, ainda que muito discretamente, sob a ação dos últimos raios da luz. Devia ser a sua hora de recreio e de alimentação a que consegui furtar, não fossem mosquitos fêmeas!
Não há dúvida, a necessidade de alimentar leva a que os representantes de muitas espécies se juntem e se ajudem mutuamente, mas os seres humanos têm uma fome muito diferente. E compreende-se! Alimentar a curiosidade é muito mais forte do que qualquer outra coisa...
Junta-se mais gente. O ex-militar, de t-shirt vermelha, óculos escuros, cabelo à escovinha e pochete, aproxima-se mas não em demasia, e, a meio da ponte começa a fazer uma análise tipo estratégia militar. Coça a cabeça, afaga o bandulho, passa de um lado para outro, aproxima-se um pouco mais, recua, enfim, parece que está a recolher todos os elementos. Já tem matéria para à noite conversar. Parece que não é preciso chegar à noite, porque com a chegada de mais pessoas, já começou a dar explicações sobre o sucedido e aparentemente – basta ver os gestos – com minudências exclusivas de quem não viu o que se passou!
Eis que chega a autoridade num jipe. Saem dois agentes, um mais novo, outro de mais idade, suficientemente barrigudo para ser obrigado militarmente a fazer dieta e exercício. Armados do bloco de notas, fita métrica, tomam as diligências necessárias para elaborar o inquérito.
Mais gente. O carniceiro, de bata branca e suja, e que deve bater o perímetro abdominal de qualquer um nas redondezas lá se foi inteirar do sucedido. Mais pessoas de todas as idades e de ambos os sexos. Uma pequena festividade. Nenhum deles assistiu ao quer que fosse, mas já tinham começado a tomar partido e a atribuir culpas a um dos dois. Um encanto. Mais gente. Começo a contar. Duas dezenas de pessoas naquela pequenina e estreita ponte! Nem no dia anterior, aquando da passagem da procissão do Corpo de Deus, conseguiu albergar tantas pessoas ao mesmo tempo. E a procissão foi mesmo comprida! Ainda vamos ter um pôr-do-sol mais festivo do que a festa prometida para daí a algumas horas. O ex-militar continua a dissertar. Nem mesmo as gotas dispersadas pelo vento do repuxo maior da ribeira conseguiram impedi-lo de dar as explicações a todos que entretanto continuavam a chegar. Há quem comente a disposição daqueles pinos que limitam a via naquele espaço. São críticas de quem deve ser oposicionista ao presidente da câmara. E ainda não começou a campanha eleitoral para as autárquicas!
Afinal, o GNR barrigudo também fuma. Penso: - O gajo ainda se lixa! E pelo convite de um dos mirones a perguntar-lhe se vai uma cervejita, a minha hipótese ficou reforçada: - Mais um fator de risco!
Na loja ao lado, primorosamente cognominada “Sonhos de Anjos” – nem sabia que os anjos sonhavam! -, quatro senhoras, três das quais sentadas num banco em frente da montra, e ladeada por representantes very kitsch de um leão de madeira e duas estátuas “vindas diretamente da Tailândia”, conversavam alheias ao acidente. A conversa devia focar outros acidentes mais apetitosos, decerto!
Na velhinha ponte, reconstruída em 1735 e restaurada em 1926, agora atulhada de gente, ouvia-se a voz irritada da jovem que protestava veemente. Ao fundo, a torre da igreja, prestes a dar as sete da tarde, linda, brilhante, soberana, dominava todo o enquadramento da praça do município. Atrás de mim, na esplanada, uma senhora empunhava a sua máquina digital, preparando-se para registar o mais relevante acontecimento da ponte, precisamente durante ponte entre o Corpo de Deus e o Santo António. Dois turistas, sim, porque para aquelas bandas também aparecem, alheios ao acidente e à multidão emborcavam cervejas atrás de cervejas fazendo jus às suas características e timbre. No meio disto tudo, pus-me a pensar quem é que iria ganhar a questão do acidente, se a jovem ou o rapaz de cabelo encaracolado.
Às oito fui para o arraial, jantar com os amigos e fazer conversa de aldeia, quando deparei com uma aglomeração de formigas em redor de algo esbranquiçado. Eram tantas que mais parecia uma pequena mancha negra no lajedo do granito claro. Pensei: - hum não me parece que tenha havido aqui algum acidente! Não, era apenas trabalho e oportunidade para levar para casa o açucarzito que alguém deverá ter lançado ao chão. Já o lusco-fusco se tinha instalado quando, em cima da ribeira, não muito afastado das mesas do repasto, deparei com um rodopiar curioso que me chamou a atenção. Milhares de mosquitos dançavam freneticamente. Uma nuvem que conseguia faiscar, ainda que muito discretamente, sob a ação dos últimos raios da luz. Devia ser a sua hora de recreio e de alimentação a que consegui furtar, não fossem mosquitos fêmeas!
Não há dúvida, a necessidade de alimentar leva a que os representantes de muitas espécies se juntem e se ajudem mutuamente, mas os seres humanos têm uma fome muito diferente. E compreende-se! Alimentar a curiosidade é muito mais forte do que qualquer outra coisa...
O que torna os homens imortais?
ResponderEliminarA rebldia em nome daquilo que se vê com absoluta claridade no interior da alma!?
Ou...
O ficcionismo da aparência desmesurada, ante-câmara modelar da completa irracionalidade?
E quem vê?
Os que olham?
Ou aqueles que de olhos fechados, escutam, perscrutam,sentem os sons inaudíeis do mundo?
Caro Professor Massano Cardoso
ResponderEliminarTipicamente português o "acontecimento" da ponte. Um belíssimo pretexto para juntar e entreter as pessoas, mobilizar atenções e emoções, criar movimento e quebrar a monotonia.
Fantasticamente descrito, com humor e realismo!
Já agora uma pequena curiosidade. Aqui para os lados de Lisboa o "acontecimento" da ponte faz parte da categoria dos filmes "Lisboa em Camisa"!
Realmente é assim, nunca tinha pensado nisso mas um pequeno acidente é um chamariz para juntar multidões. Uma vez vi um pequeno acidente na velha ponte sobre Lizandro (já há uma nova onde cabem dois carros à larga) só que o mais "picante" é que era o carro com noivos que encabeçava o cortejo de convidados. Deve ter dado uma guinada e foi embater no muro da ponte,e o que vinha logo a seguir bateu na parte traseira do carro.Sairam os noivos, ela muito irritada, já a mostrar que seria uma esposa pouco paciente, e depois os convidados já a alargar as gravatas nos colarinhos enquanto as convidadas não ousavam pisar a lama com os saltos altos prateados. Coeçaram a chegar pessoas nem sei de onde, porque aparentemente não havia casa à volta, o certo é que ficaram lá imenso tempo, mesmo com a boda à espera...Nem o pitéu foi mais atraente que um pequeno acidente de lata amachucada na ponte!
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