Às vezes acontecem-nos coisas curiosíssimas.
Ontem à noite estive a reler de um fôlego a História de uma Gaivota e do Gato que a ensinou a Voar, de Luís Sepúlveda, uma excelente forma de assinalar o início de uns dias de férias de Verão. Para os que ainda não tiveram o prazer de a ler, a história conta as peripécias do gato Zorbas, que se comprometeu perante uma gaivota moribunda a chocar-lhe o ovo e a proteger o filhote até ele aprender a voar. De tudo o pobre gato se desembrulhou com toda a alma mas o maior problema foi mesmo, por razões óbvias, ensinar a gaivotinha Ditosa a aprender a voar. Uma parábola maravilhosa, emocionante e terna, que fica a bailar no espírito até desvendarmos as múltiplas facetas com que se cruza na nossa realidade.
Estava eu hoje a preguiçar no alpendre, a ver gaivotas no céu e a pensar na coragem do Zorbas, quando oiço um “poc!”, como se algo macio mas denso tivesse caído da trepadeira para o empedrado. Não fosse a memória fresca da história e continuaria sonolenta na minha cadeira, mas lembrei-me de repente que havia um ninho no meio da folhagem, dei com ele quando há dias a ventania ia partindo o tronco grande e tive que o prender de novo, foi por um triz que o ninho não caiu também. Levantei-me de um salto e fui procurar o que teria caído.
Da beira do alpendre vi um pardalito na pedra, ainda mal coberto de penas e a tentar esvoaçar, arrastando-se atarantado para a relva para logo aterrar sem forças. Fiquei a vê-lo pasmada, a pensar no que faria o gato Zorbas, palavra que pensei isso, ajudo-o ou deixo-o tentar?, a lembrar-me de quando ele miou “o principal é aprender que só voa quem se atreve a fazê-lo”. Mas o passarinho falhou várias tentativas e o sol estava forte, quando chegou à relva estava exausto e não se mexia, só o papo minúsculo se agitava violentamente e o bico aberto, numa aflição.
Como não tenho a coragem do gato preto e lustroso, nem compromissos de ensinar um passarito a voar, fui apanhá-lo de mansinho, ainda agitou as asitas curtas mas depois sossegou e deixou-se afagar, muito redondo na palma da minha mão. Pousei-o numa caixa macia mas o seu bico aberto parecia reclamar comida, ou água, o Zorbas teve a mesma dúvida, o que come um passarinho? "Insectos," responderam-me, "não vais apanhar melgas para lhe dar, pois não?" Água ainda lhe dei, deixando escorregar uma gota pelo meu dedo, mas ele não quis, ao menos fechou o bico, sinal de que estava de posse dos seus instintos vitais. Também virou a cara às migalhinhas de pão…
Até que tive a ideia de voltar a pô-lo no ninho, onde ele se encolheu muito consolado, e fiquei à espreita, a boa distância. Não passaram muitos minutos até se aproximar um pardal, depois outro, que entraram na folhagem e desataram numa chilreada que não era canto mas zanga, um ralhar intenso e aflito, os dois ao mesmo tempo numa algazarra. Depois um voou, muito rápido, o outro – a mãe, certamente, - ficou na beira do ninho muito quieta, a vigiar o atrevido. Depois também voou mas pousou na sebe, disfarçada.
Fui ver o ninho, sem tocar nas folhas que o encobrem, várias vezes antes de vir embora. Lá estava ele, sozinho e muito sossegado, a debicar qualquer coisa. Talvez amanhã se atreva de novo, se a mãe estiver por perto, não há-de ser menos esperto que a gaivota Ditosa.
Tenho pena de não estar lá, havia de o ver subir, primeiro desajeitado, depois confiante, pensando que o gato Zorba é como todas as mães, fazendo tudo para ensinar os filhotes a voar com segurança, mas sempre a hesitar se será a altura de os deixar, com as suas asitas curtas, ganhar altura e conquistar os céus em direcção à sua própria vida.
Ontem à noite estive a reler de um fôlego a História de uma Gaivota e do Gato que a ensinou a Voar, de Luís Sepúlveda, uma excelente forma de assinalar o início de uns dias de férias de Verão. Para os que ainda não tiveram o prazer de a ler, a história conta as peripécias do gato Zorbas, que se comprometeu perante uma gaivota moribunda a chocar-lhe o ovo e a proteger o filhote até ele aprender a voar. De tudo o pobre gato se desembrulhou com toda a alma mas o maior problema foi mesmo, por razões óbvias, ensinar a gaivotinha Ditosa a aprender a voar. Uma parábola maravilhosa, emocionante e terna, que fica a bailar no espírito até desvendarmos as múltiplas facetas com que se cruza na nossa realidade.
Estava eu hoje a preguiçar no alpendre, a ver gaivotas no céu e a pensar na coragem do Zorbas, quando oiço um “poc!”, como se algo macio mas denso tivesse caído da trepadeira para o empedrado. Não fosse a memória fresca da história e continuaria sonolenta na minha cadeira, mas lembrei-me de repente que havia um ninho no meio da folhagem, dei com ele quando há dias a ventania ia partindo o tronco grande e tive que o prender de novo, foi por um triz que o ninho não caiu também. Levantei-me de um salto e fui procurar o que teria caído.
Da beira do alpendre vi um pardalito na pedra, ainda mal coberto de penas e a tentar esvoaçar, arrastando-se atarantado para a relva para logo aterrar sem forças. Fiquei a vê-lo pasmada, a pensar no que faria o gato Zorbas, palavra que pensei isso, ajudo-o ou deixo-o tentar?, a lembrar-me de quando ele miou “o principal é aprender que só voa quem se atreve a fazê-lo”. Mas o passarinho falhou várias tentativas e o sol estava forte, quando chegou à relva estava exausto e não se mexia, só o papo minúsculo se agitava violentamente e o bico aberto, numa aflição.
Como não tenho a coragem do gato preto e lustroso, nem compromissos de ensinar um passarito a voar, fui apanhá-lo de mansinho, ainda agitou as asitas curtas mas depois sossegou e deixou-se afagar, muito redondo na palma da minha mão. Pousei-o numa caixa macia mas o seu bico aberto parecia reclamar comida, ou água, o Zorbas teve a mesma dúvida, o que come um passarinho? "Insectos," responderam-me, "não vais apanhar melgas para lhe dar, pois não?" Água ainda lhe dei, deixando escorregar uma gota pelo meu dedo, mas ele não quis, ao menos fechou o bico, sinal de que estava de posse dos seus instintos vitais. Também virou a cara às migalhinhas de pão…
Até que tive a ideia de voltar a pô-lo no ninho, onde ele se encolheu muito consolado, e fiquei à espreita, a boa distância. Não passaram muitos minutos até se aproximar um pardal, depois outro, que entraram na folhagem e desataram numa chilreada que não era canto mas zanga, um ralhar intenso e aflito, os dois ao mesmo tempo numa algazarra. Depois um voou, muito rápido, o outro – a mãe, certamente, - ficou na beira do ninho muito quieta, a vigiar o atrevido. Depois também voou mas pousou na sebe, disfarçada.
Fui ver o ninho, sem tocar nas folhas que o encobrem, várias vezes antes de vir embora. Lá estava ele, sozinho e muito sossegado, a debicar qualquer coisa. Talvez amanhã se atreva de novo, se a mãe estiver por perto, não há-de ser menos esperto que a gaivota Ditosa.
Tenho pena de não estar lá, havia de o ver subir, primeiro desajeitado, depois confiante, pensando que o gato Zorba é como todas as mães, fazendo tudo para ensinar os filhotes a voar com segurança, mas sempre a hesitar se será a altura de os deixar, com as suas asitas curtas, ganhar altura e conquistar os céus em direcção à sua própria vida.
Pois é, a Suzana nunca devia ter abandonado a cas e o ninho num momento destes. Pelo passarinho, claro, e por nós, que ficamos sem o relato do primeiro abrir de asas e do primeiro esvoaçar e sem saber como a história termina. Não se faz!...
ResponderEliminar...a casa, queria dizer, e não o cas.
ResponderEliminarCara Dra. Suzana Toscano:
ResponderEliminarJá aqui o disse e volto a repetir, escreve muitíssimo bem, tem veia de romancista. Quando é que vamos ler um romance escrito debaixo desse alpendre?
PS: Se não tem tempo conte comigo, eu trato do jardim e dos pardais também! :)
ResponderEliminarEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderEliminarRelatora do projeto que fixa salário mínimo do médico em R$ 7 mil vai emitir parecer favorável à proposta
ResponderEliminarConfira no portal da FENAM
http://portal.fenam2.org.br/portal/showData/385963
Gostei imenso, Suzana. Se me permite, porque não escreve um conto infantil a partir deste episódio? Estou certo que as crianças adorariam, e os pais e avós, também. Até posso arranjar-lhe uma artista capaz de ilustrar a história de um pardalito atrevido... Sim, porque muitas crianças também são atrevidotas e os pais inquietam-se!
ResponderEliminarCaro Pinho Cardão, ainda passaram várias horas desde que o apanhei a té que vim embora e ainda fui deixar no ninho algumas migalhas de pão, não fosse dar-se o caso de a mãe o abandonar. COmo não falo a língua dos pássaros, ao contrário de Zorbas, que falava a língua humana, não sei se a mãe ficou decepcionada perante o fracasso ou se o admoestou pela ousadia...Mas na 4ª feira vou procurar vestígios dele (no chão do alpendre,o que me obrigava a passar a esfregona com frequência)e, se não houver notícias, são boas notícias, aqui darei conta aos "pais afectivos" :)
ResponderEliminarCaro jotac, o meu amigo arrisca-se muito, nem sabe o trabalhão que dá o jardim, mesmo sem pardais, isso de apostar em promessas adiadas não é prudente, mas podemos chegar a um acordo, começando por uma visita, que tal?
Caro Paulo, as histórias das gaivotas são sempre muito sofridas, lembra-se do Fernão Capelo Gaivota?, devo ter lido o livro umas dez vezes, vi o filme pelo menos duas, quando elas perdem as forças e se separam do grupo não sobrevivem, "é a lei", como ensina Sepúlveda. Talvez um dia o caro Paulo possa apagar o olhar desse passarito com um outro, de reconhecimento por ter deitado a mão a algum espertinho que caíu do ninho antes de tempo, quem sabe? Entretanto, umas boas férias, com belos passeios à beira mar!
Caro Massano Cardoso, mas que grande tentação, antes de inventar a história toda já estou a cobiçar as ilustrações, está mais de meio caminho andado, vou fazer por merecer essa ajuda! Vou treinar o desenrolar da história com os meus sobrinhos pequenos, logo vejo se tem pernas para andar ou não, são críticos infalíveis!
Como sempre, as suas crónicas soam a poesia. Cumprimento-a por isso.
ResponderEliminarNo entanto, embora tenha ficado curioso com a história do passarinho que não tardará a voar, o que me levou a escrever este comentário foi o intróito do seu post, a referência ao delicioso livro de Luís Sepúlveda, “História de uma Gaivota e do Gato que a ensinou a voar”.
Ofereceram-me o livro no meu último dia de trabalho. Deram-me (para ler) a fábula que é lindíssima e, também, a sugestão que, no novo ciclo de vida que então se abria, nunca me esquecesse que era sempre tempo de ensinar gaivotas a voar.
Tal como o Zorbas, o gato grande, preto e gordo, continuo a tentar cumprir esse desígnio…
Lamento dizer-lhe que é sempre funesta a sorte destes pardais muito ladinos que tentam voar antes dos músculos das asas estarem desenvolvidos.
ResponderEliminarRepor o pardal no ninho era a decisão correcta, desde que lhe tivesse pegado com luvas, para que o seu cheiro não contaminasse a avezita e obrigue os pais a repudiá-lo. Um pardal mal coberto de penas ainda não consegue comer sozinho. A única hipótese que ele tem de sobreviver é que a atracção das migalhas de pão (único alimento que não os mata quando são pequeninos) seja mais forte, para os pais, que a repugnância por cheiro estranho.
Se for abandonado pelos pais, dificilmente estará vivo na 4ª feira. Se por milagre ainda estiver, tem obrigação de o criar. Dissolva miolo da pão em água, coloque numa colher de chá e verta o conteúdo dentro do bico. De 6 em 6 horas. Passado um ou dois dias o bicho mal vir a colherzinha abana as asas e abre espontaneamente o bico. Nunca mais lhe toque.
Terá de pôr a avezita num parque de crianças, com tecido à volta para não atravessar a grade, e bem longe de gatos (histórias são apenas histórias). Os pardais são seres sequiosos de liberdade e morrem se forem colocados em gaiolas. Quando as asas ganharem forças deixe-o partir.
Claro que tudo isto dá muito mais trabalho que digitar no teclado do portátil uma história com um final feliz. Mas será mais gratificante.
Cara Suzana:
ResponderEliminarVi que teve algum cuidado com o infante ao deixar a casa, e isso terá que lhe ser creditado.
Mas terá que continuar o apoio até o pardal se erguer e voar. Situação em que o DeProfundis se revelou um autêntico mestre. Deve mesmo ser-lhe atribuído o doutoramento em pardais!...
Caro demascarenhas, o livro ensina realmente isso, que conseguimos ultrapassar as nossas limitações, o nosso modo de "ver" as coisas, para chegar aos outros. Fala de vencer tabus (falar a língua proibida dos humanos), fala de não menosprezar os inimigos, bem como de procurar aliados. E fala, sobretudo, de saber ouvir quem sabe mais que nós, por muito estranho que pareça o aspecto de quem pode ajudar. Boa sorte na sua nova vida!
ResponderEliminarCaro Deprofundis, já me falaram nisso do cheiro, não me lembrei mas agora parece evidente, oxalá os pedacinhos de miolo de pão baralhem o olfacto dos pais, não posso ir lá amanhã senão ia já a correr, mesmo que o "compromisso" fosse como diz. Nunca me passaria pela cabeça prendê-lo numa gaiola e, se o tal milagre se concretizar, vou tratá-lo como diz. Quem sabe...ainda lhe darei um final feliz. Se não, para a próxima faço tudo certinho.Muito obrigada.
Não é nada fácil transformar o "poc" do pardalito num conto encantador de gestos de vida, mas a Suzana tem esse dom!
ResponderEliminarAjudar um ser tão frágil a sobreviver é um gesto muito humano. O que é verdadeiramente importante é a vontade de ajudar, mesmo que às vezes o resultado seja diferente do esperado.
Depois conte-nos se a sorte protegeu o pardalito...
Cara Suzana. Independentemente do final, que espero que venha a ser feliz, a intervenção do deprofundis veio acelerar a necessidade de escrever a história do pardalito sobre a forma de conto. Imagine as crianças que irão ler a história, ou ouvi-la da boca dos pais e dos avós, e quantos pardalitos não irão beneficiar no futuro de medidas tão gentis e tão humanas. De facto parece que não há avezinha mais sequiosa de liberdade do que o pardal. A este propósito recordo Luís Sttau Monteiro que um dia disse ou escreveu – e faço uso apenas da memória – que “os portugueses são como os pardalitos, quando querem começar a levantar voo há sempre alguém preparado para o abater”. Ora neste caso vamos modificar o conceito de Sttau Monteiro, mas só na segunda parte da proposição, porque somos amantes da liberdade e queremos voar cada vez mais alto, mas para isso devemos ajudar os mais novos a alcançar a liberdade de novos espaços e de novas conquistas...
ResponderEliminarNão há nada como uma interessante e bela história de um vulgar pardalito ou de um vulgar portuguesito!
Margarida, há "pocs" que nos fazem um eco enorme!
ResponderEliminarCaro Massano, já tenho um plano de trabalho...! Pode pedir à ilustradora que comece a pensar no assunto...
Estava a ver que não!
ResponderEliminar:)
Já está!!! É só enviar o texto.
ResponderEliminarAgora é que me meteu em brios, sim senhor...!
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