segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Do “De Profundis” ao Pinóquio...

Fim de uma tarde de verão. A luminosidade atenua-se no encanto da penumbra anunciada. O azul do céu despede-se ligeiramente corado de vergonha, penetrando-me através de uma atmosfera límpida acossada por uma brisa fresca. A lua, prenhe de satisfação, anuncia a chegada da plenitude, desferindo brilhos arrogantes, ao mesmo tempo que desliza com graciosidade ascendente. As flores dos canteiros suspensos absorvem as gotas da água da ribeira, enfeitando o espaço envolvente onde se respira liberdade. Entretenho-me a escrever estas linhas, enquanto o “De Profundis”, de Óscar Wilde, poisa, aberto, no meu regaço, oferecendo belos e profundos pensamentos eivados de dor, de sofrimento, de alegria, de múltiplos sentimentos, e de esperança, em suma, pura poesia. Leio nessas páginas uma pequena passagem que só um génio sensível é capaz de oferecer ao seu irmão: “Posso ser perfeitamente feliz sozinho. Com liberdade, flores, livros e a lua quem não poderia ser perfeitamente feliz?”. Wilde escreveu esta obra quando esteve preso. Não vislumbro que pudesse acariciar quaisquer flores e, às tantas, poucos seriam os livros que teria à sua disposição. Quanto à lua, decerto que lha entaiparam.
Se não tivesse sido preso nunca poderia apreciar esta preciosidade. A infelicidade do autor passou a ser fonte de felicidade de muitos. Livro, o guardião da alma humana. Adoro livros desde sempre, mesmo antes de saber o significado das palavras.
O meu primeiro livro surgiu num momento bem definido. Um dia levaram-me ao enfermeiro “Pedrinho”, de voz tonitruante, velho, o “faz-tudo”, que aplacava, tratava e ajudava os sofredores do local. As anginas atacavam-me e, na altura, o medo do garrotilho era uma constante. Assustei-me com o espaço, por cima da padaria. Tudo branco, até o cabelo do “Pedrinho”. A noite já tinha caído naquele inverno. Olhou para mim e viu que devia estar assustado como um coelho à vista de um furão. Apertava as mãos protetoras com as minhas. – Olha lá meu rapaz, eu vou pintar a tua garganta com esta tinta. E mostrou-me uma zaragatoa com algodão na ponta que era branco mas que de repente ficou castanho dourado com o líquido que lhe botou. Empunhou o instrumento de tortura com uma das mãos e com a outra mostrou-me um livro com figuras. – Conheces a história do Pinóquio? – Pinóquio?! Quem é? Respondi cheio de medo. – Ah! Não sabes! É a história de um boneco de madeira que... E à medida que me ia contando a história, pediu-me para abrir a boca na qual começou a escarafunchar à vontade e repetidamente. Causou-me vómitos e uma sensação de sabor terrível que demorou muito tempo a passar. Mas aguentei tudo, porque estava anestesiado pela história, a primeira vez que a ouvi. No fim do tormento já conhecia a história que me encantou sobremaneira. Entretanto fui atacado de um desejo louco de querer ficar com o livro com as belas imagens do Pinóquio, do seu pai e do grilo. Mas o livro era do senhor! Mesmo assim passou-me pela ideia que o livro deveria ser uma coisa cheia de magia, capaz de contar histórias. Na altura, não tinha a ideia do que era um livro e que pudesse ter sido feito por alguém. Não! Julgava que o livro é que tinha criado as palavras, as figuras coloridas e a história! Foi esta a primeira impressão consciente da existência de um livro. Ao sair ouvi o “Pedrinho”: - Se disseres a verdade e o teu nariz não crescer eu dou-te o livro! Doeu-te alguma coisa quando te pincelei a garganta? Foi então que, preventivamente, coloquei a mão no nariz e pressionei-o com força e disse: - Não senhor! – Hum! Então toma lá! Fiquei radiante de felicidade e quis sair imediatamente do consultório, sempre com a mão a tapar o nariz, até chegar a casa, que ficava a escassos cem metros. Assim que chegámos, perguntei: - O meu nariz está muito comprido? Olharam, olharam e disseram: - Um pouco, mas não se nota muito. Amanhã já deverá estar normal! Um alívio.
Senti pela primeira vez a sensação de ser a pessoa mais feliz do mundo, tinha um livro, mesmo sem conhecer as letras. Nem o amargo da mistela, que ainda pairava nas minhas goelas, foi suficiente para destruir aquele momento que se tem repetido incessantemente desde aquele dia até hoje.
E nunca mais precisei de pôr a mão no nariz...

5 comentários:

  1. Que sorte caro Professor.
    Presumo que o enfermeiro "Pedrinho" lhe tenha zaragatoado a garganta com Azul de Metileno.
    Tambem «apanhei» com esse tratamento, só que a mim ninguem me ofereceu um livro :(
    Pior ainda, quando soube que um colega de escola primária, passou uma semana a comer sorvete, por ter retirado as amígdalas. E eu insistia lá em casa, que tambem devia ser operado.
    Resumindo, nem livro nem gelado, a mim as inflamações de garganta só me trouxeram desaires.
    ;)))
    Bela epístula a Óscar Wilde, caro Professor.

    ResponderEliminar
  2. De novo aqui, só para acrescentar esta nota de António Sousa Homem, de que entretanto me lembrei.
    «A generalidade dos bons leitores, ou dos bons bibliotecários, gosta de mencionar as alegrias que eles – os livros – lhes proporcionaram, mas eu prefiro falar de felicidade, o que se compreende num velho de oitenta e seis anos que os folheia para confirmar que a curiosidade se sacia com pouco e que as certezas se esvaem com a primeira tempestade de Outono. Devolvo-me aos livros, como de costume. Eles não falam muito.»

    in Domingo - Correio da Manhã - 12 Julho 2009

    Sublime, é conciliar num texto, felicidade, curiosidade e alegria do prazer da leitura e passear de mão-dada com as recordações, pelos salões da vida.

    ResponderEliminar
  3. Gostei! Aliás, como sempre...e não me cresceu o nariz!:)

    ResponderEliminar
  4. Suponho, caro Professor Massano Cardoso, que o tratamento recebido do Enf. Pedrinho tivesse por base algum conhecimento científico!. Mas dá para imaginar a pequena tortura a que foi submetido e, não fora o livrinho mágico-o Pinóquio, teria sido bem pior! Também, na minha meninice, passei por alguns tratamentos violentos, dados pelo Srº Antoninho da farmácia, um faz tudo lá da terra. É curioso! Porque será que estas pessoas, na província, eram tratadas pelos seus diminutivos? Bom, mas adiante, alguns desses tratamentos mais pareciam castigos corporais, comparativamente com os tratamentos de hoje. Lembro-me bem da dor infligida pela agulha da seringa, quando estive com broncopneumonia…a dor era proporcional à agulha, era enorme! Era tanta, mas tanta a dor que ainda me lembro das palavras de conforto do Srº Antoninho: aguenta menino, não te cagues!
    Coitado do Srº Antoninho, não devia saber desse livrinho mágico, que também eu mais tarde li repetidamente…

    ResponderEliminar
  5. As histórias contadas
    em livros memoráveis,
    com letras encantadas
    e frases decoráveis.

    A leveza preciosa
    do prazer de ler,
    a escrita viciosa
    que dá gosto reler.

    ResponderEliminar