Há muitos anos, numa manhã que já tinha anunciado a sua morte, alguém bate à porta; timidamente ouvi dizer: - Posso entrar? Olhei e vi um senhor, que já vivia há algum tempo nos “quarenta”, a entrar na sala transportando um ar simpático que casava bem com uma vestimenta cuidada e não muito formal. Levantei-me e respondi à saudação ao mesmo tempo que lhe indicava com a mão o local onde devia sentar-se.
A conversa iniciou-se sobre donde era, qual o local onde trabalhava, e o que é que fazia, uma forma de criar empatia e de limar a ansiedade inicial de uma consulta. Depressa, o senhor começou a descrever com entusiasmo as suas atividades, revelando gosto e empenhamento total, e sempre bem temperado com breves sorrisos de satisfação. A par da descrição do que fazia, confidenciou-me alguns projetos que pretendia levar a cabo, através dos quais a empresa viria a ser beneficiada. Em suma, um bom e responsável profissional. O resto, a parte clínica, foi mais uma rotina. Estava tudo bem.
Periodicamente, aparecia com o seu ar simpático, sorridente, bem cuidado e, educadamente, relatava as atividades e projetos com o mesmo entusiasmo sem nunca se exceder quer no tempo, quer na forma. Um bom e responsável profissional. Os exames, meras rotinas, continuavam a revelar que tudo estava, felizmente, bem. E assim foi durante algum tempo, até que um dia, já tinha deixado a casa dos “quarenta”, entrou no consultório com um sorriso triste e ar menos cuidado mas sempre com educação. Apercebi-me das mudanças e como não quer as coisas, perguntei-lhe, de chofre, como andava o trabalho. Fez um curtíssimo compasso de espera, que foi mais do que suficiente para comprovar que algo tinha acontecido. E assim foi. Houve mudanças na empresa, novas diretivas, começaram a olhá-lo como um velho, tal como outros da sua idade, passaram a privilegiar os mais novos, mais inexperientes, e remeteram-no para funções não compatíveis com a sua formação e produtividade. – Não tarda e ainda vão pôr-me a tirar fotocópias! Disse num desabafo inquietante. Retorqui-lhe: - Qual quê! Com os seus conhecimentos, com a sua experiência, com as suas ideias? Nem pensar! – Não penso? Pois olhe, é o mais certo. O senhor doutor não sabe, ou não se apercebe, as coisas não se veem por esse prisma. Não. Hoje, querem a toda a força mostrar resultados imediatos, custe o que custar. Não lhes importa acabar com as pessoas como eu. Aqui reforcei: - Mas o senhor é um bom e responsável profissional. Intervalou com um sorriso meio descrente, mas visivelmente agradado, e continuou na sua análise aos tempos modernos da forma de laborar, a qual em muitas circunstâncias é tão obscena como velhas formas que hoje são condenadas e que um dia virão a ser também objeto de reprovação.
Saiu do gabinete. Desta feita o exame revelou anomalias, não orgânicas mas da alma. Uma tristeza profunda, uma depressão anunciada.
Deixei de o ver nas consultas, embora mais do que uma vez o tenha topado ao longe, com um ar entristecido, sem o simpático sorriso, cabisbaixo e vestimenta descuidada.
Um dia na minha caça matinal aos óbitos ocorridos no dia anterior -parece ser um estranho e macabro ritual, mas não é -, deparo-me com um nome que me chamou a atenção. Seria ele, não seria? Pela idade tudo apontava nesse sentido. Terá morrido de quê? Qual terá sido a doença que o vitimou? Eu nunca lhe tinha detetado nada de grave, mas como entretanto já se tinham passado alguns anos a hipótese de ter adoecido pareceu-me razoável. Foi então que, casualmente, encontrei alguém que também o conhecia e perguntei-lhe se tinha morrido de doença. Respondeu-me que não. – Acidente? – Também não. Ah, percebo. Antes de me despedir disse-lhe: - Era um bom e responsável profissional.
A conversa iniciou-se sobre donde era, qual o local onde trabalhava, e o que é que fazia, uma forma de criar empatia e de limar a ansiedade inicial de uma consulta. Depressa, o senhor começou a descrever com entusiasmo as suas atividades, revelando gosto e empenhamento total, e sempre bem temperado com breves sorrisos de satisfação. A par da descrição do que fazia, confidenciou-me alguns projetos que pretendia levar a cabo, através dos quais a empresa viria a ser beneficiada. Em suma, um bom e responsável profissional. O resto, a parte clínica, foi mais uma rotina. Estava tudo bem.
Periodicamente, aparecia com o seu ar simpático, sorridente, bem cuidado e, educadamente, relatava as atividades e projetos com o mesmo entusiasmo sem nunca se exceder quer no tempo, quer na forma. Um bom e responsável profissional. Os exames, meras rotinas, continuavam a revelar que tudo estava, felizmente, bem. E assim foi durante algum tempo, até que um dia, já tinha deixado a casa dos “quarenta”, entrou no consultório com um sorriso triste e ar menos cuidado mas sempre com educação. Apercebi-me das mudanças e como não quer as coisas, perguntei-lhe, de chofre, como andava o trabalho. Fez um curtíssimo compasso de espera, que foi mais do que suficiente para comprovar que algo tinha acontecido. E assim foi. Houve mudanças na empresa, novas diretivas, começaram a olhá-lo como um velho, tal como outros da sua idade, passaram a privilegiar os mais novos, mais inexperientes, e remeteram-no para funções não compatíveis com a sua formação e produtividade. – Não tarda e ainda vão pôr-me a tirar fotocópias! Disse num desabafo inquietante. Retorqui-lhe: - Qual quê! Com os seus conhecimentos, com a sua experiência, com as suas ideias? Nem pensar! – Não penso? Pois olhe, é o mais certo. O senhor doutor não sabe, ou não se apercebe, as coisas não se veem por esse prisma. Não. Hoje, querem a toda a força mostrar resultados imediatos, custe o que custar. Não lhes importa acabar com as pessoas como eu. Aqui reforcei: - Mas o senhor é um bom e responsável profissional. Intervalou com um sorriso meio descrente, mas visivelmente agradado, e continuou na sua análise aos tempos modernos da forma de laborar, a qual em muitas circunstâncias é tão obscena como velhas formas que hoje são condenadas e que um dia virão a ser também objeto de reprovação.
Saiu do gabinete. Desta feita o exame revelou anomalias, não orgânicas mas da alma. Uma tristeza profunda, uma depressão anunciada.
Deixei de o ver nas consultas, embora mais do que uma vez o tenha topado ao longe, com um ar entristecido, sem o simpático sorriso, cabisbaixo e vestimenta descuidada.
Um dia na minha caça matinal aos óbitos ocorridos no dia anterior -parece ser um estranho e macabro ritual, mas não é -, deparo-me com um nome que me chamou a atenção. Seria ele, não seria? Pela idade tudo apontava nesse sentido. Terá morrido de quê? Qual terá sido a doença que o vitimou? Eu nunca lhe tinha detetado nada de grave, mas como entretanto já se tinham passado alguns anos a hipótese de ter adoecido pareceu-me razoável. Foi então que, casualmente, encontrei alguém que também o conhecia e perguntei-lhe se tinha morrido de doença. Respondeu-me que não. – Acidente? – Também não. Ah, percebo. Antes de me despedir disse-lhe: - Era um bom e responsável profissional.
Perturbador.
ResponderEliminarMas absolutamente realista.
Tambem fui vítima de idênticas mudanças, caro Professor.
ResponderEliminarColaborei em muitíssimos projectos, sugeri as ideias que foram o embrião de algumas e um dia... muda a "gerência" e espantosamente, recebo um cordial "deixa-te ficar aí quietinho" e não mexas em nada.
Na gerência anterior tinha recebido louvores pelo desempenho.
Assim fiz.
Mas como diz a voz do povo «ha males que chegam por bem», retirei desta nova "função" um proveito... disponho de mais tempo para comentar no 4R.
Talvez tenha sido esta "terapia" que me livrou de destino idêntico ao do seu paciente.
Mas não só... tenho a sorte de possuir outra vida para além daquela que que a métrica do horário de trabalho me impõe, uma família extraordinária e... uma filosofia de vida, que me conduz a um certo equilíbrio psicológico, fundamentado na ancestralidade.
;)
Ao fim de vários milénios de existência, a raça humana consegue saber com precisão a sua origem, o seu passado, mas... ignora por completo o seu futuro.
Esta crise financeira mostrou com eloquência as consequências de substituir pessoas experientes por inexperientes.
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