Hoje de manhã fui às compras e encontrei uma preciosidade: míscaros! É altura deles, bem sei, mas nos últimos anos, não sei se por causa das chuvas se por não haver quem saiba ou queira ir apanhá-los aos pinhais para os vender, são raros e muito caros. Estes eram lindos, enormes e cheios de areia, a um preço decente, e comprei logo 2 kgs.
É claro que passei uma boa hora a lavá-los, escová-los um a um, raspá-los delicadamente com uma faca afiada para tirar a pele e lembrei-me entretanto, a olhar os meus dedos encarquilhados da água e o cano a entupir com a areia, porque é que a minha mãe resmungava quando o meu pai trazia sacos enormes cheios de míscaros, uma autêntica guloseima para a tribo com costela da Covilhã pelo lado paterno.
Depois deste trabalhão fiquei desolada a pensar que não tinha um “nativo” tão apreciador como era o meu pai para partilhar a iguaria, e então telefonei ao irmão dele, a convidá-lo para o almoço, o meu tio tem já 90 anos mas é uma força da natureza e grande apreciador de petiscos.
- Tens míscaros?, dizia ele do outro lado, e já os cozinhaste? Tem que ser com a receita da Covilhã, vê lá não os estragues com invenções, isso tem um preceito, a tua avó é que os fazia bem…
E fez questão de me ditar tudo com detalhe, incluindo o modo de picar a cebola, o lume baixinho para a água ir evaporando e, no fim, os ovos misturados mas já com o lume apagado. Eu ouvi tudo mas resolvi deitar no refogado umas lasquitas de bacon, como a minha mãe fazia, só para “abrir”, dizia ela, o sabor dos cogumelos, mas ela é lisboeta e nunca gostou muito dos bairrismos serranos.
Foi um dia muito bem passado com um conversador incansável, a lembrar-se da inimizade ancestral “dos” da Covilhã com “os” de Castelo Branco, duas comunidades que se distinguem logo pelos petiscos que uns sabem fazer e outros não (nos míscaros, claro, mas também nos pastéis de molho e na panela no forno) e que se mimoseavam com epítetos vários, os primeiros eram os “lãzudos”, que retribuíam chamando “rolheiros” aos outros, que fabricavam rolhas mas os humilhavam porque tinham que ir para lá viver se queriam ir para o liceu, na Covilhã só havia escola primária.
Os de Alcains também eram segregados e a certa altura ocorreu-me que o meu pai nunca queria parar no Fundão quando íamos à Serra. -Então e os do Fundão, tio, esses não eram inimigos? E ele fez-se muito sério e respondeu logo:
- Oh, do Fundão, nem homem, nem mulher, nem cão!
E começou logo a pôr defeitos nos míscaros, um bocado mal humorado, que lhe parecia que eu afinal não tinha seguido a receita à risca porque tinham um ligeiro gosto a gordura de toucinho…Palavra que, quando fizer a panela no forno, vou cumprir os preceitos da Covilhã e levar os regionalismos a sério!
É claro que passei uma boa hora a lavá-los, escová-los um a um, raspá-los delicadamente com uma faca afiada para tirar a pele e lembrei-me entretanto, a olhar os meus dedos encarquilhados da água e o cano a entupir com a areia, porque é que a minha mãe resmungava quando o meu pai trazia sacos enormes cheios de míscaros, uma autêntica guloseima para a tribo com costela da Covilhã pelo lado paterno.
Depois deste trabalhão fiquei desolada a pensar que não tinha um “nativo” tão apreciador como era o meu pai para partilhar a iguaria, e então telefonei ao irmão dele, a convidá-lo para o almoço, o meu tio tem já 90 anos mas é uma força da natureza e grande apreciador de petiscos.
- Tens míscaros?, dizia ele do outro lado, e já os cozinhaste? Tem que ser com a receita da Covilhã, vê lá não os estragues com invenções, isso tem um preceito, a tua avó é que os fazia bem…
E fez questão de me ditar tudo com detalhe, incluindo o modo de picar a cebola, o lume baixinho para a água ir evaporando e, no fim, os ovos misturados mas já com o lume apagado. Eu ouvi tudo mas resolvi deitar no refogado umas lasquitas de bacon, como a minha mãe fazia, só para “abrir”, dizia ela, o sabor dos cogumelos, mas ela é lisboeta e nunca gostou muito dos bairrismos serranos.
Foi um dia muito bem passado com um conversador incansável, a lembrar-se da inimizade ancestral “dos” da Covilhã com “os” de Castelo Branco, duas comunidades que se distinguem logo pelos petiscos que uns sabem fazer e outros não (nos míscaros, claro, mas também nos pastéis de molho e na panela no forno) e que se mimoseavam com epítetos vários, os primeiros eram os “lãzudos”, que retribuíam chamando “rolheiros” aos outros, que fabricavam rolhas mas os humilhavam porque tinham que ir para lá viver se queriam ir para o liceu, na Covilhã só havia escola primária.
Os de Alcains também eram segregados e a certa altura ocorreu-me que o meu pai nunca queria parar no Fundão quando íamos à Serra. -Então e os do Fundão, tio, esses não eram inimigos? E ele fez-se muito sério e respondeu logo:
- Oh, do Fundão, nem homem, nem mulher, nem cão!
E começou logo a pôr defeitos nos míscaros, um bocado mal humorado, que lhe parecia que eu afinal não tinha seguido a receita à risca porque tinham um ligeiro gosto a gordura de toucinho…Palavra que, quando fizer a panela no forno, vou cumprir os preceitos da Covilhã e levar os regionalismos a sério!
Independentemente do tópico que escolhe, suscita sempre uma leitura aprazível, acolhedora e esta, em particular, faz-nos “viver” momentos de serenidade familiar noutros lares, noutros ambientes.. no seu. Obrigada por compartilhar.
ResponderEliminarE a esta hora, no início de um novo dia... não diria não a um bom petisco!
Tenho más notícias para si: O seu post é particularmente sádico. É que, sabe, venho de um jantar onde, por delicadeza, tive que gabar um bacalhau ordinário com broa menos que canónica. E vou-me deitar com a imagem do seu pitéu na cabeça, e zangado com a minha própria inveja, e invejoso da sua casa, dos seus amigos e da sua cozinha. A ira e a inveja são pecados, um deles, pelo menos, mortal. Se me der uma macacoa neste estado, corro o risco de morrer em pecado; e a culpa é sua.
ResponderEliminarCatarina, compartilhar com estes leitores e tornar um gosto mil vezes maior! Obrigada.
ResponderEliminarcaro JMG,´se a net já permitisse mandar um pratinho a voar ainda ia ali ao micro ondas e aquecia uma dose de míscaros com umas fatias da carninha de porco assada com uns salpicos de tomilho e batatinhas assadas no molho, só para lhe lavar a alma! mas deixe lá que fez uma boa acção, quem o recebeu esforçou-se por agradar, nem todos têm um tio de 90 anos a ditar receitas pelo telefone! Desejo-lhe uma boa digestão e quando quiser e só pedir a receita...e seguir à risca!:)
Já não me lembro da última vez que comi míscaros e já nem sei se gosto...mas dantes gostava muito dos que a minha mãe fazia.
ResponderEliminar"Oh, do Fundão, nem homem, nem mulher, nem cão!"
ResponderEliminarO que ?? como se atrevem a dizer isso do meu FUndão???!
Eu que gostava tanto deste blogue
Como descendente de gente de Alcains e casado com gente da Covilhã, sempre achei que estes não deveriam comer fungos por ser canibalismo...
ResponderEliminar:o)
ResponderEliminarSuzana
ResponderEliminarBem sei que é fácil falar depois, mas quando li a inovação do bacon calculei que o seu Tio iria descobrir e torcer o nariz. Não me enganei!
O melhor é mesmo cumprir com todo o preceito os regionalismos...
Caro João Melo, o Fundão é bem vonito e tem umas cerejas quase tão boas como os míscaros :)além disso este blogue é um bom pretexto para derrubar os muros das inimizades antigas!
ResponderEliminarCaro jotac, já aqui deixei a receita, é meter mãos à obra (e pode começar só com meio quilo ;)
Caro Tonibler então a gente da Covilhã ainda não o converteu aos míscaros? Os de Alcains são um bocado difíceis de convencer, mas tirando isso são óptimas pessoas e nada como um petisco covilhanense para tirar teimas.
Está bem, Zé Mário, não é só em Lamego que há iguarias...
Margarida, ficou-me de emenda, aqueles serranos são muito tradicionais.