domingo, 6 de dezembro de 2009

Crónicas de tempos que não voltam: Um par de botas I

As botas da Suzana lembraram-me uma história de outras botas, era eu miúdo. Mas história de botas personalizadas, feitas a rigor e à medida. Não daquelas botas normalizadas que a Suzana encomendou para a filha. Podem elas ser esbeltas, quentes e capazes de dar ainda mais lustro a um conteúdo já de si bem torneado, mas não deixam de ser uma botas despersonalizadas, feitas na China, por grosso e por atacado. As minhas, não, eram botas feitas para atender às particularidades e design específico do conteúdo que iriam servir. As minhas, eu via-as o Sr. Manuel Sapateiro fazê-las!...
Já era inverno, chovia e fazia frio, não o frio “amaricado” de Lisboa, mas um frio autêntico, gélido e beirão, e a minha mãe decidiu que eu precisava de botas novas para ir para a escola sem correr grandes riscos de molhar os pés e aparecer constipado. E foi comigo ao Sr. Manuel, o melhor sapateiro da terra, que calçava toda a família. Mas o Sr. Manuel decidiu que eu não precisava de botas, precisava sim era de uns sapatos fortes para o inverno, porque as botas, depois de um jeito que lhes daria e as punha como novas, ainda chegariam à primavera ou até mais. Não podia era jogar à bola…
Com tal garantia, a minha mãe mandou então fazer uns sapatos. Descalçada a bota velha que iria ser como nova graças ao Sr. Manuel, colocado o pé direito numa folha de papel branco, e o Sr. Manuel lá o ia rodeando com um lápis de forma a obter a planta rigorosa do dito, incluindo as reinterâncias dos dedos. Depois, media meticulosamente a altura do peito do pé, em três sítios, junto ao início da tíbia, no meio e junto aos dedos. De posse do desenho e das medidas, procurava a forma que melhor se ajustava ao desenho. E lá escolhia a forma apropriada, porém tão esburacada que até metia dó, devido aos pequenos pregos que usava para ajustar as "gáspeas" ao molde quando as cozia à sola ou à borracha. Tirava depois os pregos, soltava o sapato da forma e procedia ao acabamento. Este meu profundo conhecimento da arte da sapataria adquiri-o porque todos os sábados era encarregado de levar os sapatos lá de casa para engraxar. Perante tão bom cliente, Sr. Manuel encarregava logo o irmão, o Sr. João Sapateiro, ou um dos empregadotes novos que por lá estagiavam, de logo proceder à engraxadoria, porque o Toninho, que era eu, não podia esperar. E, enquanto esperava, ia dominando os fundamentos e princípos da arte. De forma teórica e abstracta, claro. Era geralmente o Sr. João que se encarregava da graxa. Pegava no sapato e a primeira tarefa consistia, por regra, e antes de a escova actuar, numa cuspidela no cabedal.
Por que é que cospe nuns sapatos e noutros não, Sr. João? Oh, Toninho, então não vê? É para poder melhor tirar a lama… Quando não há lama, não cuspo. É que assim a tinta e a graxa pegam melhor…
Claro que fui logo aprendendo à minha custa a escolher o lugar estratégico do estabelecimento onde me deveria colocar e proteger, não fosse o Sr. João adivinhar alguma lama na camisola e nas calças e limpá-las a preceito.
Bom, mas perdi-me na confecção dos meus sapatos, e tenho que terminar por agora. Continuarei em próximos capítulos, não sem antes descrever as notáveis particularidades do Sr. Manuel também como jornalista. Autêntico, e não como muitos sapateiros de notícias que há por aí...

7 comentários:

  1. Caro Pinho Cardão

    Ao ler a sua crónica lembrei-me dos meus "sapateiros", O Zé do Canto, o Luís Sapateiro, o Senhor Joaquim Costa e o Valdemar. Dois em Santa Comba e os outros dois na Estação. Eram poiso habitual da miudagem. Sentávamos e ficávamos a olhar para a joalharia das solas e, ao mesmo, tempo, éramos educados com as suas histórias, relatos e brincadeiras, algumas das quais caíamos invariavelmente que nem uns patinhos. E digo uma coisa, aprendíamos tanto ou mais do que na escola... Sapateiros? Muito mais do que isso.
    A designação joalharia das solas resulta de que um outro sapateiro, do qual guardo uma imagem muito ténue, e que trabalhava em frente da casa do meu avô, foi um dia a tribunal, como testemunha. O Juiz perguntou-lhe o que é costume, nome, profissão, residência. Dizem que a sala estava cheia e quando respondeu à pergunta profissão, respondeu: - Ourives de sola! Nem mais. Parece que o juiz ficou um pouco embasbacado, mas não lhe disse nada.
    Pelo andar da carruagem da su narrativa, parece-me que estaremos perante um outro "ourives"!

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  2. Que belas recordações, caro DR. Pinho Cardão, e que belíssimas eram aquelas saudosas botas.
    Tambem eu, sempre que ía nas férias grandes à aldeia de onde era a minha mãe, trazia na bagagem um par de botas feitas como as suas por medida, em belíssima carneira e sola grossa, que vinha "equipada" com uns enormes protectores metálicos. Lembro-me muito bem do sucesso que obtinha na escola quando as calçava, quase que conseguia patinar no chão do recreio, à custa dos tais protectores, os quais me garantiam um certo respeito por parte dos meus colegas, quando alguma briga surgia... é que, uma canelada dada com uma "arma" daquelas, não era para brincar.
    ;)

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  3. Fico a aguardar, com ansiedade, os próximos capítulos.
    Recordo que, por vezes, a palavra sapateiro tem um sentido duplo: alguém que não é eficiente na execução das suas tarefas. Mas esses de que fala, eram dos bons! Lembrei-me que os sapateiros passavam muito tempo a dar marteladas... só que agora não estou a ver se era nas solas para as suavizar ou no próprio cabedal com a mesma intenção! : )

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  4. Caro Dr. Pinho Cardão
    Que bela recordação! Velhos tempos! Não que tenha sido assim há tanto tempo como isso. Lembro-me que os sapatos em casa dos meus Pais duravam várias vidas. Começavam por levar meias solas e depois solas inteiras, mas ficavam sempre bonitos, como novos. Não ocorria à minha Mãe inutilizar uns sapatos porque estavam estragados. Havia sempre uma solução, porque o nosso sapateiro, o Senhor Francisco, tinha a arte de os restaurar.
    Ainda há pouco tempo levei ao Senhor Francisco uns sapatos para mudar as solas. Apesar da idade muito avançada, já nem deveria estar a trabalhar, o Senhor Francisco não quer parar. Também não pode porque os sapatos são o ganha-pão necessário à sua subsistência.

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  5. Lembro-me de um post seu sobre essa ida ao senhor francisco, Margarida, um verdadeiro ourives de solas, como já vão sendo tão raros. aqui no meu bairro abriu uma "boutique" de novos sapateiros, uma versão moderna dos antigos na maquinaria que usam e no arranjo da loja, além de umas montras muito bonitas com uma infinidade de coisas de que os sapatos precisam, nunca imaginaria! São todos brasileiros, um deles, rapaz novo, começou a aprender o ofício num cubículo que havia no centro comercial e que era uma espécie de "stop rápido" de sapatos, depois arranjou coragem e abriu a sua loja, já tem três ou quatro empregados e tornaram-se (pouco) sofisticados - espero que não usem o método de cuspir no sapato antes de engraxar, mas pelo menos não vejo -e (muito) careiros, mas como a oferta é pouca e aprocura muita o negócio parece próspero.
    Caro Pinho cardão, não posso competir com botas feitas à medida, com o pé desenhado numa folha de papel e tudo, mas vou-me consolando com o que se inventou entretanto, compras pela net e com catálogo...e cara alegre! Cá ficamos à espera do próximo capítulo, não demore!

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  6. É verdade, caro Professor. Este Sr. Manuel também era uma "figura" e muito aprendi com ele.

    Caro Bartolomeu:
    Não há como uma boa armadura para impor respeito...

    Cara Catarina:
    Este Sr. Manuel levava o seu trabalho muito a sério, não era um remendeiro, o trabalho era profissional, como verá nos próximos posts...

    Cara Margarida:
    Bons sapatos eram os desse tempo, que aguentavam todos os arranjos. Os de agora mal uns saltos novos aguentam...

    Cara Suzana:
    Depois tem é que dizer se o artigo foi devidamente apreciado e não leve daquelas críticazinhas de que um homem nunca se lembraria mas uma dama que se preze considera essenciais...

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  7. Hoje que é dia dos avós, deixo aqui o meu reconhecimento por tão belo relato, que me fez viajar no tempo.
    No sábado passado, ao entrar em casa da avó (apesar de já ter falecido há algum tempo, para mim será sempre a casa da avó <3 ) deparei-me com o livro "As histórias do Tótito", que logo peguei e levei para casa para ler.
    Que delicia, ler aquelas histórias, que me levaram a uma viagem muito agradável. Recordar a antiga sapataria do avô, cheia de moldes, sovelas, sapatos para arranjar....
    Recordei o avô "Manel", que nos deixou muito cedo (eu tinha 12 ou 13 anos....) que lia jornais diariamente, que também tinha o telefone Público, o posto de correios da aldeia.
    Muito obrigada Dr. Pinho Cardão por este livro, que escreveu para contar aos seus netos, e que nós vamos ler aos netos e bisnetos do avô Manuel e da avó Isaura.

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