sábado, 9 de janeiro de 2010

A Bela Helena

Cele qui fut la belle Heaulmière (escultura de Rodin)


Deu entrada num lar das Irmãs da Caridade, vinda do hospital onde ninguém a visitou ou a foi buscar.
Chegou hirta na sua cadeira de rodas, o olhar vago e a expressão vazia, como se nada daquilo lhe dissesse respeito, como se lhe fosse indiferente chegar àquela casa humilde e despojada ou estivesse a franquear as portas de um palácio que pudesse ter habitado em tempos perdidos.
Mas algo na sua pose, no modo como abandonava as mãos magras e finas no colo, ou no jeito elegante do seu cabelo branco a esgueirar-se da travessa de plástico que lhe organizava as madeixas, algo a fazia uma pessoa distinta e lhe dava a aura de um abandono trágico.
Contaram às Irmãzinhas que foi uma vizinha que deu pela quietude na casa de cima, onde vivia há muitos anos aquela mulher estranha, altiva mas cortês, já de muita idade, de quem não se conhecia amigo ou parente que alguma vez tivesse ido visitá-la. Raramente saía para as compras, com roupas cada vez mais gastas mas de bom corte, carteira elegante mas muito coçada, sapatos que já tinham perdido a memória ao uso e às vicissitudes. Era evidente que vivia numa pobreza extrema, que disfarçava com a maior discrição e um isolamento total.
A vizinha terá tido o pressentimento de ser aquele um silêncio diferente do costume. Chamou a polícia e deram com ela caída no chão, desmaiada, talvez de doença, talvez de fraqueza, a casa quase vazia de mobília mas com um ou outro sinal de um luxo esquecido, duas cadeiras com assento de veludo, a colcha bordada já em fiapos e a carpete persa a pedir restauro. Num canto, duas fotografias pálidas onde se percebia gente alegre e bonita, a andar num barco à vela num dia de Verão que teria sido luminoso.
O frigorífico parecia desligado há muito, e em tudo o mais sinais de abandono e miséria, como se ela se tivesse deixado sepultar em vida sem oferecer resistência.
Procuraram algum documento que a identificasse e desse pista para chamar a família e foi então que deram com aquela caixa cheia de folhas rasgadas de revistas antigas de décadas, um monte de imagens dela, muito nova e sorridente, em festas de sociedade, no Verão a mergulhar na piscina, ao volante de um automóvel a dizer adeus para a fotografia. Via-se que estava habituada a ser admirada, a sua beleza atraía e impunha-se, e as crianças, duas pelo menos, a agarrar-lhe a saia como se temessem que ela fugisse. No fundo da caixa, a cinzento, um recorte com a notícia do escândalo, a paixão e a fuga para paradeiro incerto, a família a renegá-la para sempre.
Pelo nome, o hospital tentou encontrar alguém que a viesse buscar. Mas do outro lado da linha uma voz seca ditou que há muito que ela tinha morrido para eles e que nem sequer lhes dissessem onde lhe iam abrir a sepultura quando chegasse ao fim.
No lar, nunca lhe ouviram uma palavra. Deixava que a lavassem, a vestissem, lhe dessem a sopa da caridade, sempre alheia às conversas e aos gestos, esquivando os olhos de quem a fixava ou lhe passava uma carícia leve na face branca e murcha, já sem vestígio da firmeza e do viço de outrora.
Chamaram-lhe A Bela Helena e nem notaram o breve sorriso amargo com que recebeu, uma última vez, o tributo à beleza que tanto marcara as suas alegrias e as suas penas.

11 comentários:

  1. O dom da escrita não é um dom adquirido! É um talento natural! Aliás, creio que o significado de “dom” é mesmo isso! E é o que a cara Suzana tem. Posto isto (o que é uma constante repetição da minha parte : ) ...diga-me, por favor: Quem é a Bela Helena? Quem é essa mulher que preferiu isolar-se do mundo intolerante... na verdade, de todo o mundo...quando parecia ter tudo para ser feliz?!

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  2. Olá Catarina, vejo que também gosta dos serões! Gosto de contar o que vejo e o que me contam, do mesmo modo que gosto de ouvir. Estou a ler um livro fantástico, The Storyteller, de Rabih Alameddine, o sonho de qualquer pessoa que gosta de contos bem contados e um verdadeiro desafio para quem ousa ensaiar um pequeno post.
    Não sei, lamento, quem é a Bela Helena, uma pessoa que é voluntária num centro que acolhe estes desvalidos falou-me deste caso, muito impressionada. Eu associei logo à escultura de Rodin, que vi numa exposição em Washington, há mais de vinte anos, e que me impressionou profundamente. O resto, foi mesmo o gosto de contar...

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  3. Quando terminar de ler os livros que tenho entre mãos, hei-de obter esse de Rabih Alameddine. Nunca li nada desse autor.
    Esse conto ajuda-nos a repensar no muito que poderemos fazer por alguém em circunstâncias semelhantes: isoladas, sós, que perderam o amor à vida devido a grandes sofrimentos, negligenciadas pelas famílias... Estamos tão preocupados com o nosso dia a dia que, por vezes, nos esquecemos...
    Sim... os serões são agradáveis... há silêncio :) Uma altura ideal para se ler contos!

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  4. Também não conhecia, trouxe-mo a minha filha de inglaterra, não sei se está editado cá mas nada que a net não resolva ;)
    Sim, é difícil repararmos com olhos de ver, às vezes está tão perto, mas a nossa vida também nos absorve tanto!
    Uma boa noite para si, catarina, e bom fim de semana, foi um belo serão a contar histórias e a conversar consigo.

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  5. Estrondasamente autêntico!
    Sem dúvida existe semelhança entre a personagem da estória e a princesa grega, celebre pela sua beleza, filha Leda, mulher de Menelau, raptada por Páris, que originou os gregos a "andar à trolha" com os troianos e determinou a flechada no calcanhar do Aquiles.
    E tal como da história, podemos retirar do post da cara Drª. Suzana, uma "moral":no fim, o guerreiro acaba sempre com uma flecha cravada no calcanhar.
    ;)

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  6. Extraordinária descrição, cara Suzana, daquela pobreza que mais nos deve afligir, a pobreza envergonhada e não compartilhada, a pobreza não gritada nem vista, a pobreza a sós, num contínuo caminhar para a morte, sem nada e sem ninguém.

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  7. Lembrança e palavras dedicadas a outra Bela Helena...

    A figura escultural
    curvada de estória,
    tanta beleza natural
    clássica e notória.

    Bela mulher florida
    por rosas encarnadas,
    a lembrança colorida
    de feições iluminadas.

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  8. Suzana
    Trágico retrato de uma sociedade egoísta e indiferente que esquece os seus velhos, que os abandona e os devota à solidão.
    A pior pobreza é a solidão. O sentimento de inutilidade e de injustiça que as pessoas mais idosas totalmente abandonadas à sua sorte sofrem é uma amputação trágica de vida, causadora de grande sofrimento, quando não conduzindo ao total alheamento da vida.
    Mesmo aquelas pessoas idosas que têm a sorte de ser acolhidas num lar, onde passarão os últimos anos ou dias da sua vida, sofrem a saudade da família que fizeram nascer e ajudaram a crescer. Talvez que o sofrimento seja tão difícil de suportar que a procura do esquecimento para não recordar seja uma espécie de defesa que o organismo desenvolve e que não raras vezes conduz à demência.

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  9. Este comentário foi removido pelo autor.

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  10. Cara Dra. Suzana Toscano:
    Em primeiro lugar quero reiterar mais uma vez, a forma singular como escreve. Sei que é fruto de esforço de aprendizagem ao longo da vida mas, é também, tal como a Catarina diz, um dom natural...
    Em segundo lugar quero dizer que esta história, sensibiliza e “incomoda”.
    Esta senhora, de origem ao que parece de um meio familiar conservador, foi “proscrita” como se não existissem laços de sangue; mais por isso sensibiliza e incomoda. Mas é, infelizmente, mais uma história do nosso tempo, uma história de desagregação da família e de solidão, como tantas outras que a cidade esconde em águas-furtadas e em lugares lúgubres e bafientos...

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  11. Caros amigos, eu diria que esta é uma estória extrema, quero acreditar que por muito que se erre - sem entrar no conceito do que possa ser errar - há sempre alguém que perdoa entre todos os que um dia puderam gostar de alguém. Mas também podemos pensar que é muitas vezes o nosso prórpio juízo que condena, a chamada "opinião pública" que dita o ostracismo e a solidão. Talvez o orgulho seja mesmo o mais difícil de vencer...

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