Ao fim de poucos meses de escola lia como qualquer miúdo, soletrando e cantando as sílabas transformando-as em palavras maravilhosas. Entoava-as num crescendo de felicidade porque podia identificá-las na base de uma oralidade já adquirida. Mas, naquele dia, em que o professor apontou para aquela página, que eu já tinha lido, papagueei de imediato o curto texto como se fosse um perfeito leitor de português. Resultado? Dois valentes estalos acompanhados de berros porque eu estava a ler de cor! Fiquei emudecido e aparvalhado, porque tinha lido pela primeira vez, sem soletrar, e com uma eloquência que devia fazer inveja a qualquer adulto, algumas frases. De cor? Sim, de cor. Mas, afinal qual era o problema? Pensei. Será que não podemos aprender de cor? Que raio de mal virá ao mundo se souber algo de cor? Eu tinha olhado para as palavras e identifiquei-as de imediato sem ter que as soletrar.
Mais tarde, muito mais tarde, acabei por saber que falar de cor era falar com o coração, o qual, durante muito tempo, foi considerado como a sede da inteligência.
O homem falou sempre de cor. Ao longo da existência exercitou as suas capacidades para memorizar e foi através da memória que registou todos os acontecimentos e os transmitiu à descendência. Não havia livros, apenas tradição oral. Ao decorar, o homem apropria-se de algo e, ao mesmo tempo, acaba por ser possuído por aquilo que transmite. E, assim, de era para era, conseguiu transmitir os seus anseios, aspirações, dúvidas e interpretações, que ainda hoje se perpetuam na transmissão oral. O meu professor tentou matar, travar, adiar, impedir, limitar o recurso à mais velha e sublime técnica de transmissão de conhecimentos. E, por cima, levei no “focinho”. Fiquei de boca aberta. Tanto mais que, nesse mesmo dia, fomos obrigados a decorar o alfabeto. Raio de dualidade. Por que é que nos obrigavam a decorar, também, as orações? Liam em voz alta, e repetíamos frase a frase, como se estivéssemos numa qualquer madrassa. Em seguida, obrigavam-nos a entoá-las sem qualquer erro. Não percebia porque é que um dia tinha de ler as palavras, muitas das quais já as conhecia, juntando as sílabas, e noutro tinha que decorar as orações. Ao menos, nestas últimas, não nos batiam, graças a Deus que devia proteger os seus iniciados. É pena que não se lembrasse de nós quando ficávamos frente a frente com o estupor do professor.
Hoje sei ler e também escrever, mas admiro e respeito os que não sabem e que usam as suas memórias para reproduzir histórias, poemas, contos e acontecimentos, transmitindo-os como se não houvesse ainda livros, relembrando que antes de os haver era assim que se fazia.
O exercício da memória era uma manifestação das musas inspiradoras. Estimulava o conhecimento, despertava emoções, burilava as histórias, aperfeiçoando-as e humanizando-as. Ainda hoje fico embevecido com a oralidade literária e criativa de muitos analfabetos. Não conseguem ler um livro, mas conseguem transmitir emoções, valores, princípios e histórias, uma verdadeira literatura oral que faz inveja à palavra escrita tamanha é a beleza com que se exprimem.
Em pequeno levei na cara por ter a tendência de ler de cor as pequenas frases do meu livro de texto. À tarde era premiado por conseguir dizer o alfabeto sem uma falha. No dia seguinte, relevavam-me para os cornos da lua quando conseguia dizer sem um único erro o Padre-nosso ou a Ave-maria.
Aprender de cor é o mesmo que aprender com o coração e quando se aprende com este é porque aprendemos com a alma. “Dois vezes um, dois”; “Dois vezes dois, quatro”; “Dois vezes três, seis”... “Pai-nosso que estais no céu...”; “Ave-maria cheia de graça...”; “No tempo em que os animais falavam...”. E as histórias, enriquecidas com a entoação oral, a beleza dos gestos enquadrados em ambientes de sonho que nos rodeavam, adquiriam uma força e beleza únicas capazes de ultrapassar, e em muito, a força ficcionada dos mais apaixonantes escritos.
Mais tarde, muito mais tarde, acabei por saber que falar de cor era falar com o coração, o qual, durante muito tempo, foi considerado como a sede da inteligência.
O homem falou sempre de cor. Ao longo da existência exercitou as suas capacidades para memorizar e foi através da memória que registou todos os acontecimentos e os transmitiu à descendência. Não havia livros, apenas tradição oral. Ao decorar, o homem apropria-se de algo e, ao mesmo tempo, acaba por ser possuído por aquilo que transmite. E, assim, de era para era, conseguiu transmitir os seus anseios, aspirações, dúvidas e interpretações, que ainda hoje se perpetuam na transmissão oral. O meu professor tentou matar, travar, adiar, impedir, limitar o recurso à mais velha e sublime técnica de transmissão de conhecimentos. E, por cima, levei no “focinho”. Fiquei de boca aberta. Tanto mais que, nesse mesmo dia, fomos obrigados a decorar o alfabeto. Raio de dualidade. Por que é que nos obrigavam a decorar, também, as orações? Liam em voz alta, e repetíamos frase a frase, como se estivéssemos numa qualquer madrassa. Em seguida, obrigavam-nos a entoá-las sem qualquer erro. Não percebia porque é que um dia tinha de ler as palavras, muitas das quais já as conhecia, juntando as sílabas, e noutro tinha que decorar as orações. Ao menos, nestas últimas, não nos batiam, graças a Deus que devia proteger os seus iniciados. É pena que não se lembrasse de nós quando ficávamos frente a frente com o estupor do professor.
Hoje sei ler e também escrever, mas admiro e respeito os que não sabem e que usam as suas memórias para reproduzir histórias, poemas, contos e acontecimentos, transmitindo-os como se não houvesse ainda livros, relembrando que antes de os haver era assim que se fazia.
O exercício da memória era uma manifestação das musas inspiradoras. Estimulava o conhecimento, despertava emoções, burilava as histórias, aperfeiçoando-as e humanizando-as. Ainda hoje fico embevecido com a oralidade literária e criativa de muitos analfabetos. Não conseguem ler um livro, mas conseguem transmitir emoções, valores, princípios e histórias, uma verdadeira literatura oral que faz inveja à palavra escrita tamanha é a beleza com que se exprimem.
Em pequeno levei na cara por ter a tendência de ler de cor as pequenas frases do meu livro de texto. À tarde era premiado por conseguir dizer o alfabeto sem uma falha. No dia seguinte, relevavam-me para os cornos da lua quando conseguia dizer sem um único erro o Padre-nosso ou a Ave-maria.
Aprender de cor é o mesmo que aprender com o coração e quando se aprende com este é porque aprendemos com a alma. “Dois vezes um, dois”; “Dois vezes dois, quatro”; “Dois vezes três, seis”... “Pai-nosso que estais no céu...”; “Ave-maria cheia de graça...”; “No tempo em que os animais falavam...”. E as histórias, enriquecidas com a entoação oral, a beleza dos gestos enquadrados em ambientes de sonho que nos rodeavam, adquiriam uma força e beleza únicas capazes de ultrapassar, e em muito, a força ficcionada dos mais apaixonantes escritos.
Quando diz que hoje sabe ler e escrever... eu acrescentaria (e sei que não o fez por modéstia) ... “muito bem”! : )
ResponderEliminarO senhor professor ou a senhora professora (de há alguns anos atrás) é que sabia o que estava a fazer! Era assim que muitos pais pensavam, não suspeitando o anseio que os seus filhos passavam, o medo que tinham se tivessem algum erro no ditado que seria motivo para castigos despropositados. Ainda hoje, em certos estabelecimentos de ensino, se verifica a aplicação de castigos mas de forma mais sofisticada. Alguns docentes esquecem-se que o ir para a escola deveria ser motivo de grande entusiasmo para as crianças/jovens e, infelizmente, na grande maioria, não é! Claro que há outros factores a considerar que não vem para o caso.
Lembro-me perfeitamente de ouvir estórias/contos e “passagens da vida” de muitas pessoas com um nível de literacia muitíssimo baixo ou quase inexistente. E, aos meus ouvidos de criança e adolescente, como esses relatos me soavam interessantes, por vezes, cheios de sentido de humor, ricos no seu conteúdo. Sempre gostei de ouvir estórias e talvez seja por isso que gosto de as contar... as que ouvi e as que li. Consigo captar a atenção de meia dúzia de “putos” com o entusiasmo que ponho nos meus contos...o que não consigo com os adultos!!! : )
Encontrei, não há muitos anos, uma senhora da Beira Alta, dos seus quarenta anos - desembaraçada no falar, “sem papas na língua”, de uma generosidade incrível (o que não é frequente encontrar-se hoje em dia) que, passado algum tempo, me pediu se lhe podia preencher um documento... porque não sabia ler nem escrever! Não tive coragem de lhe perguntar porquê.
E esta senhora, tudo o que tinha aprendido, era mesmo de cor! E não se expressava com muitas falhas gramaticais!
Este texto, caro Professor Massano Cardoso, é no meu entender um veículo supersónico, com a capacidade para nos transportar num instante ao fabuloso tempo da nossa adolescência.
ResponderEliminarEm relação ao Senhor, a sorte distinguiu-me porque nunca fui alvo da agressividade dos professores. Mas, talvez tenha tido a sorte como o caro Professor teve de aprender naturalmente com o coração e para além disso, ter "apanhado" professores com uma capacidade para ensinar, diferente do seu.
Ha uns bons vinte anos, conheci numa aldeia pequeníssima que pertence ao conselho de Nisa, de seu nome, Aldeia de Chão da Velha, um homem.
Chamava-se, chama-se... escrevo chamava-se porque já morreu, escrevo chama-se, porque prevalece na minha memória e acredito que na memória de muitos outros cuja existência se cruzou com a do João Louro.
Tinha noventa e um anos, uma apresentação que me fêz duvidar de início se seria louco, logo depois, manifestou-se a pessoa mais simpática, afável, cândida e culta que já conheci até hoje.
Era analfabeto, mas lia.
Os bolsos do casaco, colete, camisa, calças, tinha-os repletos de "papeladas" que lia, enquanto guardava as cabras, com cujo leite a mulher, já quase a unir a testa com o dedo grande dos pés, fabricava, utilizando os processos ancestrais, um queijo fresco que me fazia sentir todas as manhãs, Rey de Portugal, dos Algarves e da esfera sideral.
Não descancei enquanto não "saquei" do meu amigo João Louro, o segredo do seu prcesso de leitura, sendo ele analfabeto. Nada de mais explicou-me, quando vê uma palavra que ainda não está registada na base de dados do seu computador menta, pergunta a alguem alfabetizado, que palavra é aquela. Assim que essa informação lhe é transmitida, regista-a e prontus, tá feito, não mexe mais, a partir daquele momento, sempre que a "bichinha" lhe aparece à frente... tungas, o amigo João Louro, junta-as às outras que já conhece e forma uma frase.
Aprendi com este homem, entre outras, uma forma simples e... corente, de identificar a fruta melhor.
A fruta melhor é a que tem bicho, declara-me doutamente, o amigo João louro num momento de cavaqueira, enquanto as cabrinhas que ele não sabia contar quantas eram ao todo, retoiçavam na erva à nossa volta.
É, Senhor João? Inquiri, com um sorriso desconfiado. Explique-me lá isso se faz favor.
Então, é simples. Sabe porque é que a fruta não tem bicho?
Hmmm... porque é tratada com pesticidas?!
Pronto, tem aí a resposta!
Desculpe mas não estou a compreender...
Então, está bom de ver. Se lhe metem veneno para matar o bicho, também matam o homem. Se a fruta tiver bicho, é porque não levou veneno. Essa é a melhor!
Esta máxima também poderá ser aplicada aos seres humanos, caro professor?
Ou seja: aqueles que não levaram veneno, podem ser os melhores?
;)))
Estive agora a ler o comentário da cara Catarina, e... como não podia deixar de ser fiquei surpreendido com a semelhança de pontos de vista e de experiências de vida.
ResponderEliminar;)
Concluí-se que o mundo é pequeno e somos mesmo muito semelhantes.
;)
Senhor professor, como o compreendo. Também eu, no início do aprendizado (aprendi a ler, escrever e fazer contas com a minha mãe, que só tinha a 4ª.classe) passei por experiência semelhante. Numa noite, para mostrar ao meu avô o meu grau de comnhecimentos, minha mãe mandou-me ir buascar o livro de leitura e escolher uma lição (um texto) para ler ao meu avô. Claro, sendo à minha vontade, saiu logo o que sabia de cor ("O Quim tem muito jeito para o desenho...")e em consequência, um grande puxão de orelhas, que era assim naquele tempo.
ResponderEliminarPosta a história, senhor Professor e concordando com todo o teor do seu texto que, como disse no início, entendo perfeitamente, permita-me opinar: também entendo o professor, embora não corroborando os métodos coercivos utilizados.Naquela ocasião, o objectivo não era obter do estudante uma "oração" mas uma "leitura" são coisas diferentes e, o senhor professor, como eu, não colaborámos mínimamente para esse objectivo.
Nesse tempo ninguèm nos perdoava e às vezes, assistindo ao que se assiste, fico preocupado comigo ao duvidar de quem terá razão.
Muito bom dia.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderEliminarO ideal seria que a aprendizagem estimulasse a memória sem embotar a decifração e treinasse esta sem desprezar a capacidade de memorizar. Tenho agora acompanhado um aluno que precisa de apoio para progredir,está muito atrasado porque veio de outro país e obteve equivalência a um nível para o qual não está preparado, sobretudo no português. O que notei logo foi que ele tenta "enganar-me" com a memória, decora tudo, datas, nomes e textos, reconheci logo que estuda bastante mas com pouco progresso na autonomia que adquire, porque se escuda na memória. Ora, de cada vez que aparece um texto que não decorou, simplesmente não compreende nada porque anulou o raciocínio por insegurança, decora o que presta e o que não presta e não distingue os argumentos. Não tenho o impulso de "lhe ir ao focinho" como o professor do Massano mas já lhe expliquei que nem sempre a memória é um bom recurso porque primeiro tem que saber decifrar, para depois seleccionar o que lhe interessa "gravar". A experiência é chocante quando o texto é uma notícia de jornal, dessas habituais que são pouca informação e muita opinião, o rapaz decora e debita como se fosse uma oração, para usar o exemplo do post, e o resultado é dramático...zero de sentido crítico, 100% de hipóteses de ser manipulado.
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