Há muito tempo que deixei de a ver, a arrastar-se pela rua fora agarrada a uma canadiana desengonçada, gorro enterrado na cabeça a encobrir-lhe as melenas brancas e o invariável saco de plástico pendurado no braço, com o lixo que ia encontrando e a que sempre atribuía uma utilidade misteriosa. Pensei que já não morava no casebre da esquina, o vidro da janela está partido, o muro desabou e as portas saíram dos gonzos, deixando crescer a erva como num amparo desesperado. Mas o que me convenceu mesmo de que ela teria morrido ou que os filhos tinham finalmente vencido a batalha de a levar para casa de um deles foi que já não há cães nem gatos vadios a dormir no quintaleco, debaixo do tanque manco ou à sombra da figueira torta, nem roupa velha a secar nos arbustos.
D. Jesus tem mais de 80 anos e falava pelos cotovelos, era impossível passar-lhe à porta sem ela ver e ficar ali a ouvi-la, umas palavras pegadas nas outras num monólogo atabalhoado e difícil de decifrar, o tempo misturava-se todo e ora ela era nova e mal casada, quatro filhos “à carga”, como dizia, ora era velha e dona de si, “em mim mando eu, eles bem querem ditar-me a vida mas eu não deixo, já vai o tempo”.
D. Jesus tem mais de 80 anos e falava pelos cotovelos, era impossível passar-lhe à porta sem ela ver e ficar ali a ouvi-la, umas palavras pegadas nas outras num monólogo atabalhoado e difícil de decifrar, o tempo misturava-se todo e ora ela era nova e mal casada, quatro filhos “à carga”, como dizia, ora era velha e dona de si, “em mim mando eu, eles bem querem ditar-me a vida mas eu não deixo, já vai o tempo”.
O marido era um homem mau, “moía-me de pancada, diziam que era do vinho mas era ruindade, a Dona quer saber que um dia deu um murro num burro que o deixou morto no chão, era bruto e todos fugiam dele, eu que o aguentasse”. Tinha medo de o ver chegar, escondia os filhos no quartinho do fundo, para eles não verem, depois era o diabo à solta, os demónios do vinho ou da alma perdida, “nem ao padre tinha respeito, desvorciei-me, pois então, tive ajuda para isso e por causa dos filhos, aqui na aldeia puseram-me de lado mas eu fiquei, da minha vida sei eu”. Mas logo se comovia e a voz se suavizava para dizer que ele era lindo, andava a estudar para doutor, o pai teve um desgosto que se curvou como um velho, falava agora do neto morto num acidente de mota, à saída de um casamento “quer ver Dona, um belo rapaz, deixou a noiva como viúva, a vida é madrasta”. Tirava do bolso uma fotografia amarrotada e as mãos nodosas a alisá-la, esquecida da conversa, como se o acariciasse na face até lhe sentir o sorriso de novo vivo, e falava-lhe, “Artur, é a tua avó, meu menino, deste-me um grande desgosto, porque não me levou Ele a mim, que não faço falta a ninguém?” e virava costas e seguia rua acima, a limpar as lágrimas com a foto pensando que era o lenço que estava no bolso, e eu ficava a chamá-la, Dona Jesus, Dona Jesus, olhe que lhe trago comida para os cães, mas ela não ouvia, lá seguia a falar sozinha, naquele vai-vem constante, “em casa é que não fico, à espera da morte”.
Perguntei por ela e a vizinha hesitou, talvez eu não compreendesse, ou pensasse mal daquele abandono, mas sim, ela ainda ali vive, já não se levanta da cama, não reconhece ninguém mas não quer ir com a filha, vira-se a ela com uma fúria e grita que se vá embora, que na vida dela manda ela e mais ninguém, até que Deus queira.
Esta história é uma facada direita ao peito.
ResponderEliminarPor um instante senti-me tomado por uma comoção como não tinha há muito.
É das imagens que invoca.
É impossível ficar-se-lhes indiferente.
NBJ, Japão
É. Com efeito, uma estória real de vida.
ResponderEliminarA vida que não se entende, a vida que se entende, a vida que não se deseja, mas acontece, porque existem leis muito estranhas e muito secretas que comandam a vida das pessoas, destes seres que se julgam autónomos, únicos e exclusivos donos de si mesmo, mas que afinal, estão suspensos por um fios invisíveis que os conduzem por caminhos que não são os escolhidos.
Mas olhe cara Drª. Suzana, adorei a cena do burro que com uma punhada na cachola, aterrou definitivamente. Gajos desses é que agora fazem falta, para colocar a dormir uma cambada de burros teimosos que por ai andam... a monte.
Lembrou-me uma história que a minha avó contava acerca do meu avô.
Os meus avó maternos eram pessoas da provincia, de uma aldeia nas faldas da Serra da Estrela, muito pertinho de Seia.
Ainda a minha mãe era pequerrucha quando o meu avô emigrou para a Argentina e com 2 irmãos, compráram uma concessão e montáram uma empresa de extracção de madeiras. Por aquilo que se sabe, era um bom negócio naquele tempo, o que possibilitava ao meu avô ir mandando dinheiro, com a indicação de a minha avó, mulher muito dinâmica, adquirir terras agrículas.
Uma das terras adquiridas, fazia extrema com uma que pertencia ao regedor da aldeia e dono do comércio local, uma taberna/mercearia/barbearia.
Quando o meu avô regressou, passados salvo erro 7 anos, a minha avó queixou-se-lhe que o regedor mudava os marcos da terra da "lameira".
O meu avô era um homem esguio, alto, muito calmo e pacato, mas detentor de uma força física descomunal.
Não te preocupes, respondeu à minha avó, que eu resolvo o problema.
No dia seguinte, foi a Seia, à câmara e requisitou um medidor. O funcionário foi à terra e mediu e marcou a propriedade. O meu avô, mudou o marco para o local que o funcionário indicou e ficou à espera, depois da ceia, metia um capote pelos ombros e lá ía para a "lameira". Passados 2 ou 3 dias, lá foi o bom do regedor, de enxada ao ombro, mudar o marco da terra.
Apareceu-lhe o demónio, como ele passados muitos anos, dizia. Segundo consta, o meu avôs só lhe perguntou: queres ficar já aqui estendido no chão ou queres passar por uma vergonha no povo?
Como o outro parece ter perdido a fala, o meu avô pegou-o pelo cachaço, levou-o até ao largo da aldeia, mandou-o despir, atou-o a um poste que servia para os festejos tradicionais, foi a casa buscar um papel e escreveu qualquer coisa como: Era eu que mudava os marcos na lameira. Depois com um cordel pendurou-o ao pescoço do regedor.
O engraçado da cena é que até ao meio-dia do dia seguinte, ninguem ousou desamarrar o pobre desgraçado, foi o meu avô a rôgo da minha avó que o desatou, porque o homem já estáva a ficar rôxo.
Suzana
ResponderEliminarQuando estava bem de saúde a Dona Joana lá se ia aguentando, apesar das amarguras da vida. As amarguras que lhe deram força para se defender das dificuldades. A vida é por vezes muito cruel.
Mas agora doente quem é que olha pela Dona Jesus?
O caro NanBanJin diz, de modo muito sentido, que este post o "tocou" no coração...acredito!
ResponderEliminarEstou convicto que a Dra. Suzana fez mais para minorar a solidão e sofrimento da Dª Jesus, do que aqui nos diz...
Caro NanBanJin, este "instantâneo" da vida real foi ao Japão tocar-lhe o coração e levar um arzinho dos recantos que ainda há aqui na Pátria? São saudades, em bom português, que as imagens evocaram, como diz. Seja bem vindo aqui ao 4r!
ResponderEliminarCaro Bartolomeu, mas que história tão engraçada, isso é que era um avô, sim senhor, olhe que às vezes apetece tratar os problemas dessa maneira, atar os responsáveis ao pelourinho com um cartaz ao pescoço...
Margarida, tratam dela, claro,há muito tempo que ela tem que ter assistência, alimentação no mínimo e tudo o mais que o dia a dia exige, daí a teima de a quererem levar e a teima de ela não querer sair dali, acredito que não será nada fácil tratar dela, casmurra e arisca como nunca vi, treinada em ser autónoma e a fazer o quelhe dava na cabeça, deve ser mesmo muito difícil.
Caro jotac, além de lhe dar dois dedos de conversa aliás, de audição,ela mesma dizia que não precisava de nada, embora ficasse agradecida com a comida para os cães e gatos que recolhia no seu quintal. Era muito impressionante o zelo com que defendia a sua autonomia e indiferença pelo que os outros pudessem pensar, sabia os falatórios todos que corriam sobre ela, incluindo o de que era doida, mas nos seus monólogos não deixava ninguém sem resposta.Uma mulher bravia, danada de forte, uma pessoa invulgar.