sábado, 27 de fevereiro de 2010

Libertar o futuro

O problema dos défices gémeos de Portugal – externo e público – tem sido abordado amiúde neste e noutros espaços de reflexão. Pessoalmente, considero que o nível excessivo de endividamento que temos vindo a acumular constitui uma restrição que impende sobre a nação como a espada de Dâmocles. A manter-se tão aberrante distorção, a qualquer momento, por erro próprio, capricho externo ou outra qualquer vicissitude, podemo-nos ver colocados numa situação de grande “aperto” financeiro que obrigará a acções correctivas draconianas e sem outro critério que não aquele que for imposto por quem se decida a nos “apoiar”. Até aqui, porém, nada de novo.

O que é novo é o facto da discussão do endividamento excessivo ter deixado de ser exclusivo de alguns economistas “profetas da desgraça” e ter começado a permear o discurso político. Em particular, foi com grande regozijo que ouvi Paulo Rangel, no discurso de lançamento da sua campanha em Lisboa, enunciar como principal desígnio para o nosso país, o combate aos défices gémeos. Cunhando esse desígnio de “Libertar o Futuro”, Rangel declarou que o excesso de dívida é um elemento castrador e cerceador da liberdade individual. Ao fazê-lo, Rangel resgatou o tema do universo exíguo da economia financeira para lhe conferir uma dimensão política – diria mesmo, civilizacional. É que, convém não esquecer, o excesso de dívida é sintoma de um determinado projecto de sociedade; um projecto que assenta numa lógica de gratificação imediata, sobre a forma de um consumismo – público e privado – insustentável, que atira para as gerações vindouras o ónus, mas não o proveito.

Se, como parece estar a acontecer, o imperativo financeiro de drástica redução dos níveis de endividamento nacional se instalar de forma definitiva no discurso político, pode ser que o tormento contemporâneo se transmute num catalisador de mudança de concepção na forma como nos organizamos em sociedade.

14 comentários:

  1. Caro Dr. Brandão de Brito
    Sem dúvida, agora parece ser fácil dizê-lo depois de o ler, que o sistemático excesso de endividamento reflecte um "projecto de sociedade".
    Mas reflecte, em particular, a meu ver, uma desorientação grande pela falta, diria eu, de um verdadeiro projecto. Esta desorientação tem fundamentalmente dimensão política e esta não pode deixar de assumir as suas responsabilidades, que são muitas, do estado a que chegámos.
    A questão que se coloca é, na minha opinião, sabermos como vamos inverter a mentalidade instalada de que podemos viver acima das possibilidades? O combate dos défices é necessário mas não será suficiente, porque em termos de projecto de sociedade não será suficiente fazer contas de somar ou subtrair.

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  2. Caro Brandão de Brito:
    Infelizmente acontece que a grande maioria dos ditos grandes economistas, comentadores, analistas, até autoridades monetárias, gente com acesso permanente aos media, têm difundido o culto pela despesa pública, que leva ao défice orçamental e ao défice externo e têm sido um suporte das más decisões orçamentais.
    Para eles, a Despesa Pública era virtuosa, quando significava 40% do PIB, pelo que devia aumentar, para propiciar crescimento, quando significava 45% do PIB e devia aumentar para propiciar crescimento e quando já significa 50% do PIB e tem que aumentar para propiciar crescimento. Há uns anos, o próprio Gov. do Banco de Potugal veio a dizer que, na UE, o endividamento externo de Portugal era assim como o endividamento do Arizona, em termos de EUA. Isto é, sem problemas. Os resultados estão aí à vista.
    Aqui, no 4R, temos vindo a contrariar a cultura instalada e bem que já vão aparecendo algumas tímidas vozes a dizer publicamente que o rei vai nu. Acontece que o Governo ainda não se deu conta da situação, a avaliar pelo OE para 2010, em que a Despesa Corrente aumenta em termos nominais, em termos reais e em termos de PIB e vai implicar um aumento mínimo de 14 mil milhões de euros de dívida pública.
    Os governos e políticos que têm vindo a insistir nestas políticas e os economistas e analistas que as vêm apoiando constituem, também eles, um dos maiores passivos deste país.
    Enquanto eles persistirem, maiores défices e maior dívida irão aparecer e o país continuará a divergir e empobrecer. Até que um FMI ou uma UE nos imponham pela força o que não conseguimos pela razão ou pelo bom senso mínimo.
    O seu post é um valor acrescentado nesta luta pela racionalidade.

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  3. Caro JMBB

    Não percebi completamente o ponto que quer focar ao citar Paulo Rangel. O assunto do endividamento é prioritário para qualquer pessoa de bom senso e, em particular, para qualquer um dos 3 candidatos ao PSD. A verdadeira questão é o caminho para resolver o problema. De Passos Coelho já temos uma proposta clara, sistematizada e escrita. Dos outros aguardamos melhores notícias.

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  4. Dívida não é uma questão do que fazer, mas como deixar de fazer. Nunca mais chega o político cujo programa é "eu quero receber dinheiro para não fazer nenhum", será esse o verdadeiro salvador.

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  5. Apoiado, Tonibler!

    Enquanto houver políticos que saceiam (para não utilizar outra expressão mais denotativa) a sua frustração de não terem sido grandes empresários, com dinheiro público, substituindo-se a milhões de agentes económicos que tentam ser racionais nas suas apostas,o caminho será sempre a descer.
    Afinal este sempre foi o país dos salvadores da pátria e dos paterfamílias, dos poupadinhos e sibilinos aos arrogantes e que vestem Armani.

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  6. Caro Dr. Brandão de Brito,

    Tem toda a razão na análise que apresenta.
    Quero todavia confessar-lhe meu cepticismo quanto ao défice externo, verdadeiro vício "imbeded in the system" - que na minha perspectiva não tem solução.
    É uma história longa, que já vem dos finais da década de 90, com a total complacência - quando não mesmo com a activa cumplicidade como bem lembra o Pinho Cardão (só não foi o Arizona mas sim o Mississipi como bem sabe o Tonibler) - dos principais responsáveis pela política económica.
    Como bem sabe, as previsões para os próximos anos apontam para o agravamento natural deste défice.
    O problema é que a "economia" que construimos ao longo dos últimos 15anos não sabe fazer outra coisa...
    E como vamos mudar de economia?

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  7. Entre causas, consequências, rsponsabilidades, soluções - dos défices gémeos - já muito foi dito mas muito mais há para dizer. Este tema não se esgota facilmente e estou certo de que voltará à liça neste espaço.

    Contudo, o ponto que queria fazer era a dimensão política dada por Paulo Rangel a uma questão por muitos (na esfera política) vista como conjuntural, em resultado de um acidente de percurso que foi a crise internacional.

    Entendo que o excesso de endividamento é o resultado de um projecto de sociedade em que estado aparece como agente eliminador de todas as formas de incerteza individual: nos negócios, no emprego, na saúde, na educação, etc. etc.. Ao fazer isto, o estado promove comportamentos laxistas por parte dos agentes privados, uma vez que os lucros são privatizados, mas as perdas (no todo ou em parte) são socializadas. Necessariamente, um dos resultados é o excesso de endividamento. Se este "projecto de sociedade" e houver um reforço da responsabilidade individual - obviamente sem perder de perspectiva a solidariedade necessária á coesão social - o problema do endividamento desaparece, o país ganha condições de mais rápido desenvolvimento, os cidadãos passam a deter maior controlo do seu destino e a sociedade civil floresce. Se bem entendi Paulo Rangel, é este o sentido do seu "Libertar o Futuro".

    Relativamente á aceleração do processo de endividamento externo nos últimos 15 anos, tenho uma "tese" que exporei brevemente num post, aqui no 4R.

    Muito obrigado pelos mui interessantes comentários.

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  8. Peço desculpa pelos "typos" do comentário anterior...é o que dá não passar pelo Word.

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  9. Caro Dr. Brandão de Brito,

    A meu ver, chama muito bem a atenção para o problema político - de toda a polis - que Rangel enuncia com grande clareza e que vai para além da mera esfera "pública". Rangel fala, e bem, da escravidão a que a dívida nos sujeita e de que temos de encontrar forma de nos libertar das grilhetas.

    Foi por isso com grande desilusão que leio, na edição on-line do Correio da Manhã, a entrevista de Rangel onde ele se opõe à privatização da RTP e da Lusa! A título de quê, por amor de Deus?

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  11. É muito interessante esta perspectiva, descrita de forma tão clara, de que a economia não é um assunto "técnico" que se reflecte em percentagens ou manobras orçamentais abolutamente opacas para o comum dos mortais. É realmente todo um projecto de sociedade que está em causa, presente e futuro, é essa a única forma de fazer com que as pessoas se mobilizem para um rumo, antes de se dar por assente que "tem que ser antes que outros nos venham impõr" ou seja, antes que se desista de fazer com que as pessoas aceitem livremente ser parte desse projecto. É esse, sem dúvida, um dos maiores problemas que temos, o de que as pessoas compreendam o que se passa sem pensarem que é apenas um linguarejar incompreensível entre adversários políticos.

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  12. Não deixa depois de ser curioso que quem afirma adoptar essa perspectiva "política" (no caso Rangel) venha depois defender a manutenção da RTP e da Lusa nas mãos do Estado, perpetuando assim o sorvedouro de recursos públicos. É por essas e por outras que a posição de Passos Coelho é muito mais coerente: para ajudar a reduzir o défice defende a privatização, por exemplo, da RTP e da Lusa.

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  13. É engraçado verificar que em Portugal ainda poucas pessoas perceberam as consequências da entrada da nossa economia na zona euro.

    Continua-se a falar em desvalorizar a moeda, não de forma directa porque não é possível, mas de forma indirecta, baixando os salários.

    Vamos imaginar o cenário de redução dos salários em 15%, porque é disto que se trata, que problema fica resolvido? O Estado emagrece? As empresas passam a ser mais produtivas? As escolas passam a ensinar melhor? Os trabalhadores e os empresários passam a estar mais qualificados? Os milhares de institutos, empresas públicas, empresas semi-públicas, municipais, etc. desaparecem? Os lobbys que tomaram conta do funcionamento da justiça, educação, saúde, desaparecem? Os eleitos passam a prestar contas aos eleitores?

    Enquanto não percebermos que os nossos problemas são MESMO muito sérios, não vamos lá e que não é com mais umas brincadeiras financeiras que os vamos resolver.

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  14. Este comentário foi removido pelo autor.

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