segunda-feira, 17 de maio de 2010

Crises de 1983 e de 2010: as grandes diferenças

1. A edição de ontem do Público conferiu grande destaque à comparação entre as crises financeiras de 1983/4 e de 2010, transmitindo de certo modo ao leitor a ideia de que nos encontramos hoje numa situação muito semelhante à daquele remoto ano em que era Primeiro-Ministro o Dr. Mário Soares.
2. As semelhanças entre as duas crises resultam de terem ambas uma origem financeira:
- Em 1983, na sequência de uma acumulação de elevados défices da balança de pagamentos em 1981 e 1982, estivemos perante a iminência de uma crise cambial séria, ou seja de um esgotamento das reservas em divisas (USD sobretudo) e de uma secagem do crédito externo que, a terem sucedido, nos teriam imposto uma cessação dos pagamentos ao exterior e uma recessão brutal, com taxas de desemprego que poderiam muito bem ter excedido os 20%;
- Em 2010 estamos igualmente perante uma escassez de crédito externo, que constrange duramente o crescimento da economia face a uma ausência de poupança interna (recordo que a poupança interna em termos globais não chega para financiar a renovação do stock de capital pelo que não há poupança para financiar qualquer investimento adicional) e a uma política orçamental totalmente incompreensível, embora não se coloque uma crise cambial uma vez que estamos no Euro...
3. A partir desta semelhança original, tudo o resto é diferente - sendo diferentes em especial os caminhos para sair das duas crises.
4. Em 1983 e muito em resumo, a saída da crise foi “acordada” com o FMI e traduziu-se em medidas monetárias e orçamentais em ambos os casos dirigidas à contenção da despesa interna (consumo, sobretudo) e ao estímulo às exportações de bens e de serviços, a saber:
- Forte desvalorização do Escudo face às principais divisas, da ordem de 15% num primeiro momento se bem me recordo a que se seguiu uma desvalorização gradual, acompanhada de uma subida acentuada das taxas de juro que em termos nominais se aproximavam dos 30%.
- Aumento de impostos directos e indirectos, com o caso notável de um adicional ao imposto sobre os rendimentos do trabalho, de 10% se não erro, aplicado retroactivamente.
5. Com estas medidas visava-se, simultaneamente, estimular as exportações de bens e de serviços, contrair a procura interna (consumo privado, sobretudo) e reduzir a inflação – mas o objectivo mais imediato era equilibrar as contas com o exterior no mais breve prazo, aumentando as exportações e diminuindo as importações.
6. A verdade é que depois de uma forte contestação social (houve vários mortos em confrontos com a polícia) em 2 anos apenas as medidas surtiram efeito, a economia foi capaz de se recompor - as contas externas voltaram ao equilíbrio e a economia voltou a crescer bem depois de uma quebra do PIB em 1983 e 1984!
7. Em 2010 já nada é possível fazer com a moeda e com as taxas de juro como sabemos, restando a política orçamental que também já não comandamos como agora se percebe.
8. Mas em 2010 temos um Estado sobredimensionado, se considerarmos todos os seus níveis – Central, Regional, Local com as suas vastíssimas ramificações empresariais – consumindo quase o dobro dos recursos, em % do PIB, que consumia em 1983…
9. Neste contexto é virtualmente impossível resolver o problema do desequilíbrio da economia, que nos obriga a manter um elevado ritmo de endividamento externo, ano após ano, sem uma drástica, mas muito drástica mesmo redução da despesa pública – que, como já se percebeu, não será feita por ora…
10. Por sua vez o sector dos bens transaccionáveis não recebe agora quaisquer estímulos, até verá a carga fiscal agravar-se, não sendo pois de esperar deste Pacote de Austeridade qualquer vantagem para os sectores que produzem bens e serviços transaccionáveis…
11. Em resumo e telegraficamente, esta crise de 2010 por este andar vai estar aí por muitos anos, não sendo de esperar grandes resultados do actual Pacote de Austeridade, em cuja longevidade de resto (até que surja novo Pacote), não se poderá apostar muito…
12. Nesta crise de 2010 estamos, como se usa dizer, “metidos numa boa alhada”…

7 comentários:

  1. Caro Dr. Tavares Moreira,

    Tema fascinante esse que levanta. E que poder de síntese o seu! De tão relevante, merecia a organização de um seminário ou, no mínimo, um almoço.

    Apesar de estar em óbvia desvantagem relativa para discutir a crise de 1983, gostaria de levantar uns quantos pontos.

    1. O recurso a depreciações cambiais é uma forma rude de atender a situações de desiquilíbrios externos e elevada inflação. Significa um aumento brutal da inflação importada, o que para uma pequena economia aberta, pobre em recursos primários e com um sector de produção de bens de capital insipiente, é altamente penalisador do investimento, até porque obriga a um aumento significativo das taxas de juro. Daí que o processo se torne extremamente oneroso.
    2. Apesar de no pós-Bretton Woods, a depreciação cambial ter sido o cerne das políticas de ajustamento a problemas de balanças de pagamentos, existem formas mais eficazes para o resolver, em meu entender. É por essa razão que me permito um laivo - ainda que baço - de optimismo...talvez por cansaço, mais do que por qualquer motivo racional!
    3. Para Portugal permanecer no euro é fulcral: mantém a inflação baixa e mantém os custos de transacção com os parceiros da área do euro igualmente baixos.
    4. A resolução do nosso desiquilíbrio externo pode ser feito por via fiscal, penalizando o consumo (ex. subida mais agressiva do IVA) e reduzindo a componente não-salarial dos custos laborais (ex. descendo taxa social única).
    5. Por outro lado, com a transferência da política económica para Bruxelas - preço das garantias implícitas concedidas pela UE/FMI -, rapidamente será imposta uma liberalização do mercado de trabalho, bem como os dos bens e serviços. Já está a ser discutida em Espanha
    7. O aumento permanente dos prémios de risco, colocará um travão ao crédito e logo ao crescimento desmesurado do endividamento externo, o que afectará desproporcionadamente o sector não-transaccionável - o mais alavancado - com benefícios directos para a evolução das contas externas.
    6. As dificuldades orçamentais obrigarão a um recuo irreversível do peso do estado na economia - principal factor de atrofia da nossa economia, na minha opinião.

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  2. No meu ponto de vista, Sr. Dr. Tavares Moreira, a grande diferença entre a crise dos anos "80" e a actual, para nós Portugueses, é que hoje temos uma dívida externa, impossível de saldar, pelo simples motivo que, nos anos "80" tinhamos ainda pescas, agricultura e indústria. Hoje temos somente uns papagaios e uns malabaristas, exímios em números de engenharias financeiras, incapazes de colher o aplauso daqueles que foram até ha pouco tempo tempo o seu público de eleição.

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  3. Para um tema interessante, uns versistos:

    O psitacismo financeiro
    tão veemente aplaudido
    é de esteio trapaceiro
    que muito nos tem iludido.

    Meteram-nos numa alhada
    com tanta imbecilidade,
    é tamanha a salgalhada
    de abjecta salubridade.

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  4. Muito interessantes seus comentários, caro Dr. Brandão de Brito, enriquecendo sobremaneira a análise deste tema.
    Não excluo que uma boa cura orçamental possa fazer o papel das medidas monetárias na correcção do desequilíbrio externo - mas tem de ser uma forte cura, como referi no Post, uma meia-cura ou menos do que isso não resolve...
    Em qualquer caso, será necessário bastante mais tempo e mais do que isso será necessário vencer a resistência do imenso exército organizado que é hoje o sector público, nos seus diferentes níveis e formas...é uma tarefa gignatesca, cumpre reconhecer.
    A sua sugestão de colocarmos este tema numa agenda de almoço afigura-se-me muito sugestiva - que lhe parece solicitarmos ao comum amigo Pinho Cardão para organizar tal evento?

    Caro Bartolomeu,

    O que diz é em boa parte verdade...reparei há dias numa estatística que dizia ser o consumo de bens alimentares em Portugal satisfeito em 15% por produção interna...
    Em qualquer caso isso é um dado do problema que não é possível modificar no curto prazo, nem mesmo no médio - e o problema do défice externo tem de ser resolvido sob pena de entrarmos em fase de asfixia financeira.

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  5. Caros TM e BB:

    Acho que o tema é suculento. Merecedor de um almoço a preceito. Com ou sem tema à sobremesa.
    Mas, temendo que não se chegue ao tema no almoço, desde já quero salientar o que diz o Doutor Brandão de Brito no ponto 1. Depreciações, no geral, só servem para colocar a economia menos competitiva. Excepto no instante imediato à desvalorização. É uma medida política, por vezes no pior sentido da palavra. Não é medida económica.

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  6. Caros economistas,

    1983???? Ontem soube que o youtube tem 5 anos e pensei "Curioso, não me lembro do mundo sem youtube". Portanto, aquilo que os meus caros estão a falar é de uma crise na economia do mundo pré-internet? Daquele em que se usavam memorandos em papel e se faziam propostas por carta? Uhm, curioso... e o que existe de comum com a economia que temos hoje é...?....

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  7. Caro M. Brás,

    Muito salgada esta sua poesia, não recomendável a hipertensos!

    Caro Pinho Cardão,

    Sem prejuízo de verificar que temos uma salutar divergência em relação ao papel da desvalorização cambial em crises agudas - não como panaceia geral e permanente - constato que a ideia do almoço-debate está ganhando adeptos...o grande organizador P. C. está posto à prova!

    Caro Tonibler,

    De comum existe a crise financeira, caro Tonibler, que ao que parece está inscrita de forma irredutível no nosso ADN social...
    Não conseguimos viver sem ela e a tal Ré-pública dos 100 anos mostra especial vocação para a proclamar!

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