Era habitual, ao fim de semana, passar por aquele tractor velho parado na berma da estrada, com o atrelado cheio de fruta e legumes e o par de velhotes sentados à sombra do chapéu de sol montado no passeio, à espera de fregueses. O quadro era irresistível, a mercadoria muito arrumada por espécies e tamanho, as laranjas a pintar de cor gritante aquele troço cinzento do asfalto e a ardósia preta, talvez rescaldo de uma escola longínqua, agora transformada em tabuleta com os preços escritos a giz, numa letra penosa. E eles, o casal de camponeses, mudos e quedos na sua cadeiras a adivinhar sem sobressalto qual o carro que iria parar para se abeirar deles e da sua mercadoria. Parei lá muitas vezes, naquele exemplo vivo da transacção directa, do produtor ao consumidor, a fruta era raquítica e deformada mas cheirosa e gostosa como já não nos lembramos, os legumes ainda vinham com terra ou mordidos dos insectos e era frequente a senhora dizer, “leve os espinafres, ainda os apanhei esta madrugada” ou então “os limões são rugosos mas ainda hoje estavam na árvore”. É claro que os preços também eram conformes à humildade dos frutos, gostava especialmente de comprar as maçãs reineta, todas deformadas e cada uma de seu tamanho mas excelentes para fazer doce ou tartes ou mesmo para perfumar a cozinha nos dias de maior calor, leve, leve, são só 50 cêntimos o quilo! E lá vinha eu com um carrego por poucos euros, várias vezes me perguntei se lhes compensava aquele trabalho todo, plantar, tratar, colher, arrumar e meterem-se à estrada. Uma vez lá falaram um pouco, que tinham um terrenozito, que tinham que ocupar o tempo, aquilo era mais o gosto de andar entretido que o lucro, quando deixassem ficava a terra ao abandono, os filhos e os netos nem ligavam.
Até que um dia, há poucos meses, parei mais uma vez, cumprimentei os dois que nem se mexeram nas cadeiras, e nem reparei nos preços, toca de escolher e pedir para pesar. Quando perguntei quanto era, o velhote, meio hesitante, ditou um preço absurdo. Fiquei espantada e ainda comecei a calcular de cabeça, olhando os sacos, com receio de ofender o homem a dizer-lhe assim de repente que ele se teria enganado. Mas ele percebeu logo a minha hesitação e avançou: “Agora as maçãs são dois euros e meio, a senhora leva 3 quilos, mais as cenouras, que são tanto, e os espinafres…” e cada preço era uma exorbitância, mesmo sem comparar com o que era habitual. “Mas o que é que aconteceu?, perguntei, estas coisas já não são do seu terreno, teve que as comprar?” – Não senhora, é que são produtos biológicos, agora é o que toda a gente quer e valem muito, se for ali ao supermercado veja lá os preços na prateleira dos biológicos! Se tiverem bicho ainda valem mais, é a prova que não foram tratados!” E lá fui eu carregada de marketing biológico servido num tractor à beira da estrada e vendido a peso de ouro, nem consegui protestar com medo de largar a rir com aquele inesperado exemplo de capacidade de adaptação à modernidade.
Até que um dia, há poucos meses, parei mais uma vez, cumprimentei os dois que nem se mexeram nas cadeiras, e nem reparei nos preços, toca de escolher e pedir para pesar. Quando perguntei quanto era, o velhote, meio hesitante, ditou um preço absurdo. Fiquei espantada e ainda comecei a calcular de cabeça, olhando os sacos, com receio de ofender o homem a dizer-lhe assim de repente que ele se teria enganado. Mas ele percebeu logo a minha hesitação e avançou: “Agora as maçãs são dois euros e meio, a senhora leva 3 quilos, mais as cenouras, que são tanto, e os espinafres…” e cada preço era uma exorbitância, mesmo sem comparar com o que era habitual. “Mas o que é que aconteceu?, perguntei, estas coisas já não são do seu terreno, teve que as comprar?” – Não senhora, é que são produtos biológicos, agora é o que toda a gente quer e valem muito, se for ali ao supermercado veja lá os preços na prateleira dos biológicos! Se tiverem bicho ainda valem mais, é a prova que não foram tratados!” E lá fui eu carregada de marketing biológico servido num tractor à beira da estrada e vendido a peso de ouro, nem consegui protestar com medo de largar a rir com aquele inesperado exemplo de capacidade de adaptação à modernidade.
Mas a verdade é que não me surpreendeu ter deixado de ver o tractor parado à beira da estrada, pelos vistos o nicho de mercado biológico não está ao alcance de todos.
* imagem tirada do blogue do artista plástico Adelino Gonçalves
Este post, Drª. Suzana Toscano, para além do quadro típico que representa, qual Rafael Bordalo Pinheiro, chama a noss atenção para este novo "problema" que são os produtos biológicos.
ResponderEliminarAlgumas ilações e reflexões, nos suscitam esta matéria.
Poderemos pensar se em termos económicos o não-biológico era mais rentável ao produtor, é que, o mesmo recebe subsídios pela cultura biológica, para além de os preços de venda, serem mais elevados. Outra reflexão a que esta moda do biológico nos leva, e essa mais redundante, é saber até que ponto, estes produtos que agora são vendidos com etiqueta de biológico, o são mais que os anteriormente produzidos.
Tanto quanto sei, os produtos actualmente classificados de biológicos, não estão isentos do uso de pesticidas. Alguns produtores usam químicos menos agressivos, outros usam-nos em menor precentagem, adicionados a outros, e outros produtores ainda utlizam-nos segundo uma calendarização diferente.
Não sei estimada Drª. Suzana, nesta matéria do biológico, até que ponto não nos estão a querer vender gato por lebre, ou como dizem os camponezes lá do meu sítio, a atirar serradura para os olhos.
Como consumidora também moderna, eu exigiria uma entrega em casa de tractor...no mínimo!!! ;)
ResponderEliminarFantástico episódio, Suzana. Ora aí está a prova de que a idade não impede que as pessoas se adaptem aos novos tempos.
ResponderEliminarCara Dra. Suzana Toscano:
ResponderEliminarEste texto simples e colorido, é mesmo o que estamos a necessitar para refrescar um pouco as nossas cabeças, cansadas dos pec.s, dos tangos, dos casamentos gay.s, dessas trapalhadas todas que nos absorvem a mente mas não nos alimentam o estômago...
Nós precisamos é mesmo de fruta, e da boa! Mas com bicho não!...:)
Li algures que os produtos com certificação biológica são comercializados bastante mais caros, porque, a uma produção menos intensiva, acrescem custos elevados com desinfestantes não agressivos para o ambiente; além disso, as quintas onde se cultivam produtos biológicos deverão ser, elas próprias, “naturais”, isto é, conterem ecossistemas que facilitem e preservem a existência de toda a bicheza (atenção, esta bicheza é mesmo bicheza!), que interage na cadeia alimentar. Como se depreende, ser biológico nesta terra, não é nada fácil!. Olhe…é tão difícil como ser honesto!...
Assim sendo, sou um bocado céptico quanto à verdade, verdadinha, dos produtos biológicos vendidos nas bermas das estradas, até porque, a tradição já não é o que era, e a palavra também…
Agora, armado em menina do soalheiro, pergunto:
-Se a gente de que fala, já não transporta a fruta no tractor (presumo porque evoluírem), transportam-na como? Numa mercedes station ?. Hum…é de desconfiar!
Ilustre Dra. Suzana Toscano, queira aceitar este modesto conselho:
-Da próxima vez que vá à fruta repare se, preso a uma árvore, está um jumento!; Se estiver, compre a fruta à vontade…é sem dúvida biológica!
Coitado do casal de idosos que na sua necessidade de se modernizarem ficaram vulneráveis – também eles – à competição vizinha... à dos “hermanos” (talvez). Ou então a clientela pensou que orgânico por orgânico mais valia comprar em lugares que se tornaram mais elitistas. Sim, porque, até na compra de fruta há que manter uma certa aparência, para aqueles menos seguros do seu estatuto social, evidentemente. : )
ResponderEliminarNão sendo especilista na matéria (ajo pelos meus próprios sentidos estéticos), é imperdoável não ter mencionado a o quão bonito é este quadro a óleo sobre tela...
ResponderEliminarÉ verdade. Imperdoável. Não comentei acerca da tela mas apreciei-a.. apenas me distraí com o conceito de quantos mais bichinhos forem encontrados a deambular pela fruta - pelos deliciosos e sumarentos pêssegos, por exemplo - mais características orgânicas estes terão...
ResponderEliminarLindo quadro.
Independentemente do valor ou não dos produtos ditos biológicos tenho que confessar que representa uma certa forma de “religiosidade” tão ao gosto da “new age”, e patenteadas noutras áreas. Basta ver as demonstrações de fé que muitos revelam quando se põem a falar do problema.
ResponderEliminarAgora o que me irrita um pouco é comer ao almoço ou jantar a minha maçã que vem do local mais distante do mundo: Nova Zelândia. Nova Zelândia? É verdade. Mais pequeninas, muito saborosas e muito mais baratas do que as nacionais. Aqui está um belo exemplo da incapacidade nacional que nem consegue produzir maçãs a preço competitivo com as da Nova Zelândia. E quem diz maçãs...
Tem o Sr. Professor Massano Cardoso, toda a razão.
ResponderEliminarMas sabe? Cá na minha ideia, aqueles senhores que foram à UE, negociar os acordos e as quotas para as nossas produções/exportações e importações, não sabiam ao certo aquilo que negociavam. Sou levado a pensar que nunca devem ter conhecido o percurso de uma maçã até que a dita-cuja lhes aterrasse no pratinho de sobremesa.
Suzana
ResponderEliminarTerão tido mais olhos que barriga! Quer-me parecer que os velhotes já estariam cansados e com vontade de fazer rapidamente uns dinheiritos extra.
Os produtos da horta continuam a ser procurados, são naturais, frescos e com preços bem mais acessíveis. Os produtos biológicos não são melhores, são bem mais caros. E em tempos de crise...
Caros amigos, talvez não tenha sabido explicar bem, os produtos eram exactamente os mesmos só que passaram a vestir uma roupagem mais moderna, a de "biológicos" e daí a alcandorarem os preços ao nível do produto "chique" foi um ápice. Pode ser que já tenham aprendido que não basta copiar as roupagens, com sorte ainda volta a encontrar o tractor com simples "produtos da horta"..
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