Dizem que o tempo não existe. Existe porque mata. Existe porque muitas vezes queremos matá-lo e ele vinga-se, claro. Quem é que gosta de ser ameaçado de morte? Ninguém. Nem o tempo. O melhor é viajar no seu dorso e fugir do mar da eternidade. Os convites, imensos, estão espalhados por tudo o que é sítio.
Calor. Muito calor. Ninguém de juízo perfeito se arriscaria andar debaixo do sol àquela hora. Hora em que o tempo descansa. Hora perfeita para as pessoas de juízo imperfeito procurarem o silêncio humano e escaparem-se para outras épocas. Tempos que deixam saudades, mesmo que não tenham sido vividos. Eras que não ofereciam as prerrogativas, as doçuras e as vantagens dos tempos atuais mas que seduzem e muito.
Esbarro nas paredes de uma igreja muito antiga, bela e cheia de história. Recuei a um tempo em que ainda se contava pela era de César. O frontispício indicava o ano de 950, trinta e oito anos a mais do que a era cristã. Entrei. Sensações únicas emergiram com facilidade. Pedras, inscrições, imagens e esculturas à espera de almas frescas a quem possam contar o que viram, ouviram e sentiram. Noutra localidade, não muito distante, um anfiteatro romano, recentemente recuperado, permitiu-me saborear o mesmo sol, e os seus efeitos, que os espetadores de uma época mais longínqua. Ambições, desejos, alegrias e tristezas vaguearam por aquelas bandas à espera de vindouros desejosos de viajarem no tempo. Um pouco mais longe, pedras quentes, de um período ainda mais antigo, com milhares de anos, dispostas humanamente em locais naturais, que mais parecem altares da natureza, contam segredos e esperanças. Conheço todos estes locais desde há muito tempo, mas sempre que os visito, contam-me novas histórias, diferentes, belas ou tristes, mas sedutoras ao ponto de ansiar viver entre as suas pedras.
As pedras falam e os livros muito mais facilmente. Entre casario medievo, vi uma banca à entrada de uma loja, cheia de montes de livros velhos. Montes a um, a dois e a três euros. Interroguei-me sobre a razão desta divisão e deduzi que deveria ser com base na espessura das obras. Procurei e encontrei três obras que me chamaram a atenção. Um volume de Arnaldo Gama, “Honra ou loucura”, romance que retrata a vida de meados dos século XIX e a cidade de Coimbra. Custou um euro. Li-o em dois dias. Brilhante, quer o enredo, típico da época, mas sobretudo a descrição da vida de Coimbra, boémia, funcionamento da universidade e o comportamento dos estudantes. O outro volume, que custou dois euros, intitulado “Morte Lenta”, de Émile Henry, descreve a vida do autor, um barman francês, nascido em Lourenço Marques e que viveu em Portugal. Acabou por ser preso a escassas centenas de metros da fronteira espanhola ao tentar fugir para o nosso país, onde viviam os seus pais. Foi levado para o campo de concentração de Buchenwald onde passou os dois últimos anos da guerra. Escrito logo após o final do grande conflito, setembro de 1945, constitui uma das primeiras obras sobre tão triste período. Uma verdadeira preciosidade que - presumo ser desconhecida do público -, me arrastou para aquela estranha e negra época. O terceiro, “Verdes anos”, de Bernard Shaw, grosso, e por isso a valer três euros, está, agora, debaixo dos meus olhos. Mas voltando a Arnaldo Gama, consegui viajar até Coimbra do século XIX. Reconheci muitos locais, e fiquei a saber que Henrique de Avelar, a personagem central, viveu na Couraça de Lisboa, onde também vivi. Calcorreámos as mesmas travessas, ruas e escadas e, naturalmente, ouvimos o mesmo tinido do sino da torre, a “cabra”, assim chamada pelos estudantes para mostrarem o seu “ódio académico” a quem perturbava muitas vezes o primeiro sono, ao chamá-los para as aulas. Quanto à “Morte Lenta”, a viajem não foi tão agradável, mas permitiu ver, através da vivência de um cidadão comum, o pior e o melhor da espécie humana. Curioso o facto de o autor referir que, conjuntamente com outras vítimas, ficarem admirados que “a raiva acumulada e que todas aquelas ideias de vingança, que para muitos tinham servido de estimulante se tivessem extinguido tão depressa. Se conhecemos o ódio, ele foi desaparecendo aos poucos...”. Estou convicto de que as suas aspirações, após ter regressado a Portugal, onde viviam os seus pais, divertir-se no São João e ouvir novamente o “tiroliro”, que um seu amigo e compatriota, antigo professor de francês em Braga, inopinadamente cantou em Buchenwald, foram concretizados. Ambos assim o desejaram, porque naquele ambiente viviam exclusivamente à custa de viagens ao passado...
Calor. Muito calor. Ninguém de juízo perfeito se arriscaria andar debaixo do sol àquela hora. Hora em que o tempo descansa. Hora perfeita para as pessoas de juízo imperfeito procurarem o silêncio humano e escaparem-se para outras épocas. Tempos que deixam saudades, mesmo que não tenham sido vividos. Eras que não ofereciam as prerrogativas, as doçuras e as vantagens dos tempos atuais mas que seduzem e muito.
Esbarro nas paredes de uma igreja muito antiga, bela e cheia de história. Recuei a um tempo em que ainda se contava pela era de César. O frontispício indicava o ano de 950, trinta e oito anos a mais do que a era cristã. Entrei. Sensações únicas emergiram com facilidade. Pedras, inscrições, imagens e esculturas à espera de almas frescas a quem possam contar o que viram, ouviram e sentiram. Noutra localidade, não muito distante, um anfiteatro romano, recentemente recuperado, permitiu-me saborear o mesmo sol, e os seus efeitos, que os espetadores de uma época mais longínqua. Ambições, desejos, alegrias e tristezas vaguearam por aquelas bandas à espera de vindouros desejosos de viajarem no tempo. Um pouco mais longe, pedras quentes, de um período ainda mais antigo, com milhares de anos, dispostas humanamente em locais naturais, que mais parecem altares da natureza, contam segredos e esperanças. Conheço todos estes locais desde há muito tempo, mas sempre que os visito, contam-me novas histórias, diferentes, belas ou tristes, mas sedutoras ao ponto de ansiar viver entre as suas pedras.
As pedras falam e os livros muito mais facilmente. Entre casario medievo, vi uma banca à entrada de uma loja, cheia de montes de livros velhos. Montes a um, a dois e a três euros. Interroguei-me sobre a razão desta divisão e deduzi que deveria ser com base na espessura das obras. Procurei e encontrei três obras que me chamaram a atenção. Um volume de Arnaldo Gama, “Honra ou loucura”, romance que retrata a vida de meados dos século XIX e a cidade de Coimbra. Custou um euro. Li-o em dois dias. Brilhante, quer o enredo, típico da época, mas sobretudo a descrição da vida de Coimbra, boémia, funcionamento da universidade e o comportamento dos estudantes. O outro volume, que custou dois euros, intitulado “Morte Lenta”, de Émile Henry, descreve a vida do autor, um barman francês, nascido em Lourenço Marques e que viveu em Portugal. Acabou por ser preso a escassas centenas de metros da fronteira espanhola ao tentar fugir para o nosso país, onde viviam os seus pais. Foi levado para o campo de concentração de Buchenwald onde passou os dois últimos anos da guerra. Escrito logo após o final do grande conflito, setembro de 1945, constitui uma das primeiras obras sobre tão triste período. Uma verdadeira preciosidade que - presumo ser desconhecida do público -, me arrastou para aquela estranha e negra época. O terceiro, “Verdes anos”, de Bernard Shaw, grosso, e por isso a valer três euros, está, agora, debaixo dos meus olhos. Mas voltando a Arnaldo Gama, consegui viajar até Coimbra do século XIX. Reconheci muitos locais, e fiquei a saber que Henrique de Avelar, a personagem central, viveu na Couraça de Lisboa, onde também vivi. Calcorreámos as mesmas travessas, ruas e escadas e, naturalmente, ouvimos o mesmo tinido do sino da torre, a “cabra”, assim chamada pelos estudantes para mostrarem o seu “ódio académico” a quem perturbava muitas vezes o primeiro sono, ao chamá-los para as aulas. Quanto à “Morte Lenta”, a viajem não foi tão agradável, mas permitiu ver, através da vivência de um cidadão comum, o pior e o melhor da espécie humana. Curioso o facto de o autor referir que, conjuntamente com outras vítimas, ficarem admirados que “a raiva acumulada e que todas aquelas ideias de vingança, que para muitos tinham servido de estimulante se tivessem extinguido tão depressa. Se conhecemos o ódio, ele foi desaparecendo aos poucos...”. Estou convicto de que as suas aspirações, após ter regressado a Portugal, onde viviam os seus pais, divertir-se no São João e ouvir novamente o “tiroliro”, que um seu amigo e compatriota, antigo professor de francês em Braga, inopinadamente cantou em Buchenwald, foram concretizados. Ambos assim o desejaram, porque naquele ambiente viviam exclusivamente à custa de viagens ao passado...
Nos momentos que consideramos só nossos (se é que existem mesmo) é bom passear pelo passado agradável, sem nos determos lá demasiado tempo, pensar no futuro e envisionar o que terá para nos oferecer (mediante o nosso esforço e o nosso destino, porque nele acredito) e ansiar que os momentos aprazíveis, considerados presentes, se detenham mais um pouco. Não era Goethe que dizia: “”Detém-te! És tão belo...!” ?
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