quinta-feira, 30 de setembro de 2010

“Um passeio, uma conversa e um livro”

No dia 22 de dezembro de 2008 escrevi uma pequena crónica que nunca publiquei. Há dias, em conversa com uma colega, veio-me à lembrança o motivo da mesma. Procurei e consegui encontrá-la. A minha colega pediu-me uma cópia e eu fiz-lhe a vontade. Hoje recebi uma mensagem muito simpática a incentivar-me a publicá-la. Vou respeitar o seu pedido.

“Hoje dediquei o dia à minha neta que vai fazer cinco anitos na próxima semana. Um dia em cheio. De manhã, Parque Verde, um gelado de iogurte com amoras à beira do Mondego, bem agasalhados para nos protegermos da fria brisa que soprava alegremente, seguidos de intensos quinze minutos de exercício nos baloiços e no escorrega como que a preparar o almoço. À tarde rumámos até Penela para ver o maravilhoso presépio animado. Uma fartura para a miúda, uma maçã para mim. Passeámos nas muralhas do castelo desfrutando o calor e a alegria do momento devidamente registado no cartão de memória da máquina. A seguir, nada melhor do que despender o resto das energias da menina nos insufláveis instalados na Praça da República de tão simpática vila. Ao dirigirmos para o carro, onde acabou por adormecer ao fim de duzentos metros de andamento, disse-me que tinha sido um dia muito divertido.
Estas foram algumas das impressões que registei neste dia. Senti-me bem. Mesmo muito bem. Ruminava na cumplicidade avô-neta, quando li uma notícia sobre Bento XVI e a defesa de uma nova “ecologia do ser humano que o proteja da autodestruição”! Comecei a ficar um pouco tenso e, de seguida, apercebi-me de mais uma posição típica do Vaticano. Desta feita tinha a ver com as operações de mudança de sexo, as condutas homossexuais e transexuais.
Reparo que, cada dia que passa, são mais do que evidentes os incómodos provocados pelas descobertas científicas no pensamento do Vaticano. É rara a semana que o papa ou alguém da cúria não venha a terreiro para por em causa os novos conhecimentos. Tudo o que diga respeito à vida, à sua génese, aos embriões e às células estaminais, à contraceção e à morte assistida provocam intensa urticária doutrinária. Para evitar terem de andar, permanentemente a coçar-se, denunciam que certas atitudes são contra as leis de Deus e que o homem pretende “auto emancipar-se da criação e do Criador”. Ainda segundo o papa “o homem quer fazer-se a si mesmo e dispor sempre e exclusivamente apenas daquilo que lhe interessa. Mas desse modo vive contra a verdade, contra o espírito criador”.
Bento XVI defende que temos de “escutar a linguagem da criação”. Deus criou o ser humano como “homem e mulher”. Logo os que se afastam daquela “definição” estão condenados. Não compreendo a falta de sensibilidade e de conhecimentos para aquelas bandas. Muito haveria a dizer sob os pontos de vista biológico, comportamental e sociológico. Muito mesmo. Mas o que ressalta de imediato é a intolerância.
Jantei. E como é habitual fui dar a minha volta. Revivi os acontecimentos do dia. De repente, a propósito da notícia “papal” e da minha neta, tropecei numa conversa havida há poucos dias em Lisboa, no decurso de um almoço. Razões? Muito simples. O meu colega conversava com o que estava ao seu lado direito. Apercebi-me de que falavam de um escritor que também conhecia e que tinha lido com muito agrado e prazer. Sim, porque quando consigo ler um livro até ao fim é porque é bom e se o ler em dois dias de forma compulsiva atinge o grau de excelente. Foi o que aconteceu com esse autor. Esperei o momento oportuno para meter o bedelho na conversa e perguntei-lhe: - Olha lá ele trabalha contigo? – Comigo?! É meu companheiro há trinta anos! Trinta anos, uma vida! Aí, numa fração de segundo, apercebi-me do que se tratava. Não sabia que o escritor era o seu companheiro. Claro que fiz alguns comentários literários sobre a sua obra. Foi então que, na sequência do envio de um pequeno livro de crónicas minhas, que já tinha agradecido logo de manhã, antes do início da reunião, me disse: - Olha, eu não sabia que eras escritor! – Escritor?! Eu?! Respondi meio surpreso, porque, como estávamos a falar de um verdadeiro escritor, que é o seu companheiro, eu não me sentia com capacidades de me colocar ao seu nível. Então respondi-lhe: - Sou antes um “escrevidor”. – “Escrevidor”? Que palavra tão interessante. Disse-lhe que a tinha adotado da minha neta quando lhe perguntaram - tinha ela acabado de fazer quatro anos -, o que é que ela queria ser quando fosse grande. Não fui eu que fiz a pergunta, mas ouvi a resposta: - Pintora e “escrevidora”! Quando ouvi a resposta pensei: bom, pintora é capaz de ser, porque tem uma imaginação criativa e um jeitinho fora do comum. Tem a quem sair, à tia e a uma bisavó. Mas “escrevidora”? Ela nem uma letra sabe desenhar! Mas tive a perceção de que olhava com uma certa ternura e respeito para os livros, para as figuras e para os hieróglifos. Será que já sabe que há qualquer coisa de muito importante naquelas folhas? Foi então que o meu amigo me contou que a mãe, alemã, apesar de falar português, tinha alguma dificuldade numa ou noutra palavra, do género “vou ao cabeleiro”, sempre que queria dizer “vou ao cabeleireiro”. E rimo-nos destes jogos linguísticos. Continuámos com a conversa, focando os livros, as peripécias, as histórias, as dificuldades nas edições e as limitações impostas devido a preconceitos religiosos, já que o companheiro é judeu.
Poderão pensar, o que é que tudo isto tem a ver com Bento XVI? Muito! Duas pessoas fabulosas, responsáveis, cultores de ética, culturalmente superiores, respeitadores dos valores e direitos humanos, precisam de ser protegidos da “autodestruição”? Necessitam de ser adotados pelos princípios da “nova ecologia do ser humano” proposto por Ratzinger? Valha-lhe Deus!
Ia mentalmente a escrevinhar este texto quando entrei na livraria. O passeio tem como pretexto fazer o meu exercício físico diário, mas também contribuir para o exercício mental, pelo que tropeço, amiúde, numa das duas livrarias que se põem descaradamente à minha frente. Entrei, dei três passos, olhei para o lado direito e vi o livro de contos, “Confundir a Cidade com o Mar”, da autoria do companheiro do meu amigo. Agarrei-o, dei mais dois passos em direção à caixa e saí. Presumo que foi a compra mais rápida de um livro que fiz até hoje. Ultrarrápida.
Vou acabar de escrevinhar este pequeno texto e deliciar-me com os contos do escritor. Um dia vou dar a ler à minha neta esta pequena nota embrulhada num livro de contos.”

11 comentários:

  1. Caro Professor Massano Cardoso
    A sua Netinha sabe bem porque é que quer ser "escrevidora". São as histórias bonitas que o Avô lhe conta...

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  2. É verdade Dra. Margarida!
    A criatividade daquela criança, ultrapassa todos os limites da imaginação...
    Vai longe, muito longe...
    Espero que venha a ser uma excelente "escrevidora" tal como o avô, mas que nunca abandone o seu jeitinho único e tão particular para criar os seus desenhos encantados.
    Parabéns papá, mais uma vez nos encantaste!
    Continua a "escrevinhar" para nós! :)

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  3. Palavras enternecedoras sobretudo quando a protagonista do post é "um ser" que saiu de dentro de mim...Tu que estiveste sempre a meu lado e continuas a estar, sabes bem do que falo...A parte da "escrevidora" tem uma explicação: o facto de teres tido o prazer de a teres nos braços muito primeiro do que eu; a parte da "pintora" a benção da tia Inês e os genes da bisavó Maria Hilda...Obrigada, aos três: ao Avô, Tia e genética poderosa! :)

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  4. Ah! Para quem nunca viu o meu Pai vestido de verde, em contexto de Bloco Operatório (BO), garanto que fica irreconhecível...eu própria tive dificuldade em perceber qual dos médicos que me assistiram era o "escrevidor" talentoso habitual do 4R...Garanto-vos que apesar de não ser a sua especialidade médica preferida (cirurgia) fica muito bem nesse registo!É, como sempre, um aconchego nas nossas vidas...Eu, pela óbvias razões, sou muito suspeita, mas julgo que a opinião certamente poderia ser partilhada pelos demais...

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  5. Nesta entrevista, podem ser apreciados conceitos interessantes, do ponto de vista da ciência e da religião.
    http://www.astrobio.net/interview/966/interview-with-brother-guy-consolmagno

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  6. Deliciei-me com o seu post Dr. Massano Cardoso, de facto fui pai à 4 meses e meio e espero que a minha filha seja uma menina sonhadora como a sua neta.

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  7. É verdade cara irmã!
    O papá vestido de verde água e com todos aqueles adereços aparatosos, típicos de um Bloco Operatório, fica mesmo irreconhecível...
    Sabes como o reconheci? Pela posição característica como coloca as mãos quando está nervoso...entrelaçadas uma na outra!
    Mesmo por detrás dos seus sóbrios óculos, os seus olhos "escrevinhavam" palavras, textos e melodias. Transmitiam-me paz, segurança e ESPERANÇA... O seu olhar é deveras "escrevidor"!!!
    E quando chegou a hora disse: "Aqui a tens, a tua filha, a tua grande amiga para o resto da vida..."
    "Escrevinhou" ou não "escrevinhou"?
    Claro que sim...:)
    Espero que a minha sobrinha Mariana, que tanto adoro, ensine, abrace e proteja a sua prima Maria Leonor, como se de irmãs se tratassem! Não tenho dúvidas que o fará!

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  8. http://dererummundi.blogspot.com/2010/10/musica-cores.html#comments

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  9. Obrigada pelo elogio, caro Bartolomeu!
    Mas deixe-me fazer-lhe uma pequena correcção, chamo-me Inês, Leonor é a minha filha! :)
    Mas quem sabe, um dia, não seja ela a ilustrar belos contos...
    Abraço.

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  10. Como gosto muito de ler, estou sempre atenta a “novos” livros. Fui pesquisar o autor de “Confundir a Cidade com o Mar”. Quando o encontrei é que me recordei que tinha sido ele que escreveu o “O Último Cabalista de Lisboa”, livro que comecei a ler porque me foi bastante recomendado. Por uma razão que, de momento, me escapa, não o acabei mas “sei” que não foi por falta de interesse. Como não encontrei aqui neste “burgo”, nem um nem outro, optei por “Hunting Midnight” que, também, foi nomeado para um prémio de grande prestígio.
    Mais uma crónica que se lê do princípio ao fim, com muita atenção e que nos delicia! : )

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