terça-feira, 23 de novembro de 2010

Inquietude

Não há dois dias iguais, mas alguns adquirem tonalidades e sonoridades próprias que nos obrigam a meditar e a compartilhar. Hoje foi um desses dias. Pela manhãzinha cumpri com as minhas obrigações académicas. Gosto de dar aulas, gosto ainda mais do debate e inebria-me a perspetiva de criar e desenvolver novos conceitos. Para que tal aconteça preciso do estímulo dos alunos, mas, ultimamente, tenho reparado um comportamento estranho. Alguns comparecem tarde à aula, tão tarde que a dez minutos do fim ainda estão a entrar e, cúmulo dos cúmulos, duas alunas tiveram o desplante de se sentarem na coxia a dois minutos das nove horas. Vieram ouvir o professor? Claro que não, entraram para poderem assinar uma folha de presença que lhes permite ter acesso à avaliação contínua, evitando o exame final. Comentei os casos? Claro! Um incómodo académico desta natureza não poderia deixar passar em falta. Qual vai ser o resultado? Vai dar em nada. Irão continuar na mesma. Frustrante.
Cumpri igualmente com os meus deveres profissionais ao examinar trabalhadores muitos dos quais são meus conhecidos desde há longos anos. No entanto, verifico que alguns continuam a não seguir os conselhos para corrigir os seus fatores de risco e mesmo patologias. Consequências? Inevitavelmente irão ocorrer mais cedo de que o previsto. Falta de capacidade em os mobilizar? Não sei, talvez. Frustrante.
Desloquei-me em seguida a Santa Comba onde acabei por almoçar. Um almoço que não me caiu bem. Ouvi queixas devido a atrasos nos pagamentos das refeições de muitos escolares por parte de entidades oficiais. A angústia, bem visível, orlava-se de um olhar marejado e muito contido, o que me incomodou. Frustração social.
A Assembleia Municipal decorreu naturalmente com elevação e sentido de responsabilidade cívica e política. Foram debatidos vários assuntos, entre os quais o orçamento. Não costumo intervir, não é o papel do presidente, mas de vez em quando não consigo resistir, sobretudo quando estão em causa a necessidade da intervenção dos cidadãos, a responsabilidade de todos no bem comum e, também, a lealdade. Embora não tenha pronunciado esta última palavra, dei a entender a sua importância, porque é um requisito básico para que todos se façam compreender, seja entre partidos ou dentro do mesmo partido. Prezo muito a lealdade e fico frustrado quando a afogam no gélido rio da amargura. Frustração política.
Debaixo da noite prematura, e após longa gestação de circunstâncias óbvias, idade, limitações físicas e cognitivas, necessidade de cuidados permanentes e sobretudo preservar a dignidade humana, transportei ao lar um familiar. Uma noite dentro da noite. Custa? Muito. Conheço aquele olhar há muitos anos, mas hoje tive alguma dificuldade em penetrar no seu íntimo. Fiz várias tentativas mas fiquei confuso. Indiferença, resignação, compreensão, revolta, mal-estar, alegria, esperança, surpresa? Não sei o que senti ou o que vi. Pela primeira vez fiquei na dúvida do que estaria aquele cérebro amuralhado a pensar. Frustrante? Sim.
Cheguei a casa e fui atacado por três pequeninos, cada um à sua maneira. Uma expressão coletiva de alegria infantil que conseguiu neutralizar alguns dos acontecimentos do dia. Bela recompensa para continuar a viver mais um dia.
Após o jantar fui até à livraria. Não sabia que estava prestes a começar uma conferência, “Tolerância e Pobreza”, da responsabilidade de um colega da Faculdade de Economia. Fiquei e gostei. Muitas coisas foram ditas com profundidade e sabedoria. Não apresentou soluções milagrosas, mas compete aos que estão em “baixo” associarem-se, terem voz e debaterem soluções e não esperar pelas que venham de cima. Mas para que tal aconteça é preciso uma forte e exemplar intervenção cívica. Olhando em redor quase que diria que é também uma pobreza.
Um dia de inquietude; inquietude académica, inquietude profissional, inquietude social, inquietude familiar, inquietude política, inquietude cívica. Tanta inquietude! Valeu-me o conforto dos pequenitos...

9 comentários:

  1. Caro Professor Massano Cardoso
    Este seu post fez-me lembrar uma igreja antiga, muito bonita, aqui perto de casa, onde volta e meia vou, que se chama Nossa Senhora da Quietação. Uma igreja em que a quietude se sente.
    Teve um dia muito preenchido, recheado de variedade de ambientes, responsabilidades, sensações, preocupações, emoções. Este dias assim são os mais ricos, cansativos por certo porque é necessário fazer vários cliques, mas com a vantagem de as várias "vidas" do dia se poderem compensar se nem todas correrem tão bem. Compreendo a inquietude, mas sendo saudável quase que poderia ser quietude!

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  2. A mim, este post do caro Professor, fez-me lembrar um outro, se não estou em erro, o nono que o autor publicou, intitulado,"Couvade".
    Rezava assim:

    No século XIX os antropologistas descreveram pela primeira vez a Couvade, palavra derivada do francês "couver", que significa incubar ou criar. Trata-se de um comportamento muito antigo descrito em todas as sociedades desde a América do Norte aos bascos, chineses ou papuas da Nova-Guiné. No fundo não é mais do que um conjunto de sintomas muito semelhantes aos verificados na gravidez. Os maridos e companheiros das mulheres grávidas, numa proporção variável entre 10 a 65%, segundo os diferentes estudos, apresentam aumento do peso, nervosismo, vómitos, enjoos, alterações comportamentais, apetites por certos alimentos, enfim a panóplia que muitas vezes ocorre durante qualquer gravidez. Os sintomas de "gravidez por simpatia" nos homens podem ocorrer em qualquer momento, mas é sobretudo no terceiro mês ou na parte final que são mais evidentes e só desaparecem quando a mulher dá à luz! Discute-se muito sobre as eventuais causas: expressão de ansiedade, simpatia ou empatia com a mãe, culpa por ter provocado a gravidez, receio da paternidade, ciúmes pela capacidade da mulher engravidar e parir, enfim uma lista que nunca mais acaba…
    Na luta pela igualdade dos sexos, haverá uma expressão mais interessante do que esta, em que o homem acaba por sofrer os sintomas de uma gravidez?
    Ah! Este comentário não contempla certos “percevejos prenhos” que andam por aí…

    Não será que andamos todos a sofrer por simpatia, as inquietudes alheias?!

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  3. Anónimo22:43

    Como eu entendo esses sentimentos, meu caro Professor!

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  4. Umas férias, caro Professor, é isso que lhe aconselho. Algumas fontes de inquietudes permanecerão na sua ausência... mas quando regressar, virá com mais energia, talvez veja as inquietudes por outro prisma ... menos inquietante! Férias à beira mar, claro, num local de veraneio! Remédio santo!! .... : )

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  5. Eram nove da manhã e eu já nadava… Não havia ninguém na "pista", mas pelas minha braçadas (25m + 25m + 25m + 25m + 25m + 25m…) pensava: "Raios", porque é que gosto tanto deste silêncio?! E, como bem sabe, a resposta passa por uma analogia parecida com essa frustração. Como quem quer falar, mas apenas ouve o silêncio da apatia (foi essa premunição que me fez pensar, prematuramente, que não nascera para ensinar)…
    Com os pequeninitos sempre se pode cantar: "Quando eu era pequenino/Quando eu era pequenino/Acabado de nascer/Acabado de nascer/ Ainda mal abria os olhos /Ainda mal abria os olhos/ Já eram para te ver/Já eram para te ver".

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  6. Jeune Dame de Jazz, v. fez-me recuar algumas décadas! Aprendi este fado (?) com o meu pai! E como ele já faleceu há muitos anos, v. fez-me recordá-lo neste preciso momento! Que saudades!
    E por esta confidência (a minha) é que eu não esperava! : )

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  7. Este comentário foi removido pelo autor.

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  8. Há uma coisa que sobretudo marca o pensamento dos homens: a inquietação. Um espírito que não seja ansioso irrita-me ou aborrece-me. É Frustrante. Profº, não perda essa inquietação

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  9. Concordo com o caro luis rosario, só se inquietam os espíritos que não perderam a capacidade de esperar melhor. Só se impacientam os que não se acomodaram à injustiça e à infelicidade, á deslealdade e à preguiça. Caro Prof, que belo retrato nos deu de um homem que se mantém jovem e sonhador, a frustração é um preço a pagar, sem dúvida, mas vai desistir? Acredito que não.

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