Li há imensos anos um conto de que esqueci o autor e que, a propósito da tecnológica febre Wikileaks que agora nos devora, ressuscitou na vaga memória que guardei dele.
Contava a história de um homem que não suportava a incerteza sobre a sinceridade das palavras que os outros lhe dirigiam. Suspeitava de tanto entendimento, de tanta cortesia, duvidava que não houvesse muito mais maus pensamentos e maus instintos do que aqueles que eram confessados e vivia a suspirar por um mundo de franqueza e de transparência. Ele não se contentava com as aparências, queria saber se cada um dizia exactamente o que pensava, sem nenhuma espécie de ocultação, era disso, acreditava ele, que dependia a felicidade sem sombras. E vivia tão amargurado com as suas dúvidas que um dia um mago lhe deu o dom de ler os pensamentos alheios, com a condição de nunca deixar que os outros conhecessem essa sua capacidade, teria que apanhar os outros desprevenidos para lhes captar os segredos. Ele saiu para a rua radiante, convencido de que iria finalmente ordenar o mundo à sua maneira, denunciando hipocrisias e falsidades inconfessadas. Logo ao virar da esquina cumprimentou o merceeiro, Bom dia!, o outro respondeu-lhe amavelmente, Bom dia, mas logo lhe ouviu o pensamento calado “espero que não pares por aqui muito tempo, tenho mais que fazer”, pouco depois um amigo que não encontrava há longa data, “estás óptimo, o tempo não passa por ti”, mas lá estava a escapar-se o espanto “este tipo está velho e cansado, estará doente?” e assim por diante, um encontro após outro e a conversa era sempre turva, o ruído do pensamento intervinha e nunca coincidia em pleno com o calor das palavras ou com a simpatia do sorriso acolhedor. Desvairado, tropeçou num cão que lhe ladrou furiosamente enquanto o dono lhe puxava a trela com um “desculpe, senhor, ele não morde”, mas os seus ouvidos quase estoiraram ao perceber “tonto, não vê por onde vai, tão cedo e já embriagado!” Era agora para ele evidente que todos viviam a mentir, a esconder os seus verdadeiros sentimentos, ninguém era absolutamente sincero, mesmo nos gestos mais simples. Começou a fugir das pessoas, mas ainda assim o pensamento delas perseguia-o, “olha aquele, agora nem cumprimenta, que grande malcriado, parecia tão educado, enganou-nos bem”, e outras maldades, sempre silenciosas, mas tão audíveis para ele que o agrediam como bofetadas. A vida tornou-se-lhe num inferno, passou a antecipar-se em agressividade, “eu sei o que estás a pensar, meu malandro, diz lá, diz lá se és capaz”, os outros deixaram de se esforçar por lhe serem agradáveis e respondiam-lhe desabridamente, mesmo assim sendo o pensamento ainda pior do que as palavras ditas com brusquidão. E ele, até então sempre tão respeitado no bairro, via agora que todos se afastavam mal lhe viam a sombra ao dobrar a esquina, deitando-lhe olhares hostis ou de desdém.
Contava a história de um homem que não suportava a incerteza sobre a sinceridade das palavras que os outros lhe dirigiam. Suspeitava de tanto entendimento, de tanta cortesia, duvidava que não houvesse muito mais maus pensamentos e maus instintos do que aqueles que eram confessados e vivia a suspirar por um mundo de franqueza e de transparência. Ele não se contentava com as aparências, queria saber se cada um dizia exactamente o que pensava, sem nenhuma espécie de ocultação, era disso, acreditava ele, que dependia a felicidade sem sombras. E vivia tão amargurado com as suas dúvidas que um dia um mago lhe deu o dom de ler os pensamentos alheios, com a condição de nunca deixar que os outros conhecessem essa sua capacidade, teria que apanhar os outros desprevenidos para lhes captar os segredos. Ele saiu para a rua radiante, convencido de que iria finalmente ordenar o mundo à sua maneira, denunciando hipocrisias e falsidades inconfessadas. Logo ao virar da esquina cumprimentou o merceeiro, Bom dia!, o outro respondeu-lhe amavelmente, Bom dia, mas logo lhe ouviu o pensamento calado “espero que não pares por aqui muito tempo, tenho mais que fazer”, pouco depois um amigo que não encontrava há longa data, “estás óptimo, o tempo não passa por ti”, mas lá estava a escapar-se o espanto “este tipo está velho e cansado, estará doente?” e assim por diante, um encontro após outro e a conversa era sempre turva, o ruído do pensamento intervinha e nunca coincidia em pleno com o calor das palavras ou com a simpatia do sorriso acolhedor. Desvairado, tropeçou num cão que lhe ladrou furiosamente enquanto o dono lhe puxava a trela com um “desculpe, senhor, ele não morde”, mas os seus ouvidos quase estoiraram ao perceber “tonto, não vê por onde vai, tão cedo e já embriagado!” Era agora para ele evidente que todos viviam a mentir, a esconder os seus verdadeiros sentimentos, ninguém era absolutamente sincero, mesmo nos gestos mais simples. Começou a fugir das pessoas, mas ainda assim o pensamento delas perseguia-o, “olha aquele, agora nem cumprimenta, que grande malcriado, parecia tão educado, enganou-nos bem”, e outras maldades, sempre silenciosas, mas tão audíveis para ele que o agrediam como bofetadas. A vida tornou-se-lhe num inferno, passou a antecipar-se em agressividade, “eu sei o que estás a pensar, meu malandro, diz lá, diz lá se és capaz”, os outros deixaram de se esforçar por lhe serem agradáveis e respondiam-lhe desabridamente, mesmo assim sendo o pensamento ainda pior do que as palavras ditas com brusquidão. E ele, até então sempre tão respeitado no bairro, via agora que todos se afastavam mal lhe viam a sombra ao dobrar a esquina, deitando-lhe olhares hostis ou de desdém.
O homem caiu na maior infelicidade, afastou-se dos amigos e mal saía à rua, tinha saudades de receber os sorrisos dos outros, de ser acolhido com um ar cortês ou prazenteiro, queria que lhe estendessem a mão num aperto forte sem sentir a maldita corrente negativa a denunciar-lhe o que deve ficar calado. Chamou o mago e pediu que o libertasse daquele castigo, mas o mago disse-lhe que não podia fazer nada porque, ao apoderar-se do pensamento dos outros, só lhe restava agora aprender a viver sem tolerância nem piedade.
E ele percebeu que se condenara para sempre à mais absoluta solidão.
Cara Suzana, em certa medida o que nos conta é um retrato da humanidade. Não sei se conhece a série Dr. House. O protagonista tem uma frase muito engraçada sobre este tema: everybody lies.
ResponderEliminarCara Suzana,
ResponderEliminarExcelente texto.
Pergunto-me se será aí que muitos psicopatas -- que têm uma enorme facilidade em desmontar as hipocrisias alheias -- encontram justificação para atitudes prepotentes e destruidoras, potenciadas pela sua natural capacidade de manipular.
E têm existido muitos políticos com enorme poder que manifestavam essas características: Harry Truman, Margareth Thatcher, apenas para citar alguns, referenciados por Arno Gruen, no seu livro "Os Falsos Deuses", infelizmente pouco divulgado.
Esperemos que estudos destes não sejam efectuados aos políticos da nossa praça. Como no caso do protagonista da sua interessante história, a nossa já presente incomodidade daria, certamente, lugar ao mais desabrido desespero...
Quando assistimos a uma conferência e o conferencista está a ser filmado, se enquanto discursa a sua imágem é projectada num ecrã gigante, temos naturalmente a tendência a concentrar a nossa atenção na imágem virtual, apesar de termos a imagem real à nossa inteira disposição.
ResponderEliminarSe analisarmos esta tendência com algum cuidado, concluímos que o fazemos, devido a uma insensível falta de vista e uma excessiva necessidade de explorar pormenores da fisionomia do orador, sem que ele perceba que estajamos a fazê-lo.
Se pisca, se treme o lábio, se funga, se coça a orelha, se franse, são particularidades que nos dão imenso gozo conhecer e posteriormente comentar com quem tivermos oportunidade de o fazer e até, de especularmos acerca dos tiques, dos esgares, da gaguêz.
Conhecer pormenores íntimos, confere-nos vantagem, relativamente ao outro e, em muitos casos, antecipar as suas actuações e resoluções.
Por saberem disso, os jogadores, inventaram o bluff.
Temos uma estrutura cerebral chamada amígdala que consegue “ler o pensamento” dos outros. Algumas pessoas tem-na mais desenvolvida do que outras, é ela que nos diz para desconfiarmos, para recear algum ataque, se devemos ou não simpatizar, enfim para explicar muito do nosso comportamento, reações e emoções face aos outros. Ao fim ao cabo, o “magia” da natureza concedeu-nos esse dom, não para ler o pensamento propriamente dito mas o que outro quer ou não fazer e se isso implica ou não uma ameaça à nossa integridade.
ResponderEliminarSuzana
ResponderEliminarExtraordinário conto. É um bom retrato do que são os homens. A desconfiança, ainda que injustificável, é uma atitude defensiva necessária. É um jogo que tem de ser jogado com muita inteligência para que uns e outros continuem em desconfiar uns dos outros sem que uns e outros revelem as suas desconfianças e estratégias defensivas.
Muito interessante este conto a estabelecer de forma subtil uma certa analogia com o caso wikileaks, cuja moral da história pode muito bem vir a ser: -as consequências de se ultrapassarem os limites…
ResponderEliminarMas o caso Wikileaks acaba por dar gozo, deixa-me a sensação de que os personagens podem sempre fazer de Diógenes e fingir que andavam à procura de alguém honesto…
Caro Zuricher, no entanto é uma constatação que não deve ser levada à letra, por alguma razão fomos dotados de linguagem em vez de comunicarmos só por ondas cerebrais sem qualquer outro "filtro", creio que o Dr. House vê isso com essa naturalidade, digamos assim.
ResponderEliminarTem razão, caro depatasproar, seria uma calamidade!
Caro Bartolomeu, está muito bem visto, nessas ocasiões uma pessoa fica exposta à análise minuciosa de todos os sinais que denunciam o seu "verdadeiro" pensamento, daí que haja já uma verdadeiro mercado para treinar o disfarce dessas reacções. Tudo tem uma causa e uma consequência...
Caro Massano cardoso, o pior é quando a amigdala é reproduzida em tecnologia potente que tudo detecta e tudo divulga, uma máquina infernal sem magia nenhuma porque está desligada do cérebro, das emoções e do instinto defensivo, uma verdadeira ameaça.
Margarida, e se é difícil esse equilíbrio, tanto mais difícil quanto melhor se conhecem as pessoas e se aprende a ler-lhes os pensamentos. Mas também se aumenta a generosidade, na minha opinião, quanto mais se conhece e gosta mais se aprende a não querer suscitar essas reacções de ataque e de defesa, procura-se a harmonia.
Caro jotac, se fosse só brincadeira até que não fazia grande mal, o pior é se, como quase todos os escândalos actuais, nos habituamos à ideia de que nada nem ninguém estará a salvo do "detector de mentiras justiceiro".