Três de janeiro de 2011, segunda-feira. Tive de madrugar para ministrar a minha aula. Correu bem, sem problemas. Em seguida fui dar consultas. Logo por azar, o primeiro trabalhador despertou-me a atenção, porque com aquela cara era impossível não o reconhecer. A última vez que o vi foi em novembro de 2009. Não tenho por hábito fazer apreciações muito negativas ou jocosas quando estou investido nas minhas funções profissionais, mas, neste caso, tenho de abrir uma exceção; o senhor apresentou-se com umas trombas capaz de fazer inveja ao mais neurótico dos porcos, com licença das senhorias que estão a ler este texto. Consegui recordar a última vez, porque fiquei com a nítida sensação de que não tinha mudado de expressão. Só realço agora as “trombas”, por causa do que aconteceu a seguir.
O senhor sofre de diabetes, e, como me lembrei das recomendações e cuidados que lhe fiz, a propósito, em 2009, perguntei-lhe, com a maior naturalidade: - Então, o senhor tem controlado como deve ser a sua diabetes, e tem feito medições diárias do açúcar no sangue? Ao fazer estas perguntas, estava à espera de respostas positivas que fossem de encontro ao meu natural anseio. Mas o senhor não respondeu à primeira, pelo que tive de repetir mais do que uma vez. Comecei, então, a sentir algum desconforto, que me alertou para eventuais respostas negativas. Só depois de muita insistência, e quando as minhas palavras já revelavam evidente frustração, é que o senhor respondeu, “Tenho-me descuidado um pouco”. Ao dizer isto, as suas “trombas” ingurgitaram-se, revelando, sem ter necessidade de dizer mais nada, que não tem ido ao médico, nem feito dieta ou qualquer tratamento. Fiquei estarrecido com a resposta e com o silêncio. Na última consulta, o senhor já sofria de diabetes há mais de dezassete anos e, agora, com mais um ano cima, estava a atingir a segunda década da doença. Perguntei-lhe se sabia quais os riscos que corria. Respondeu-me com um silêncio angustiante. Só após alguma insistência, é que disse: - Sim, já ouvi dizer alguma coisa. Foi então que lhe expliquei, detalhadamente, os riscos que estava a correr, sempre de trombas, sem dúvida o maior trombudo que já vi em toda a minha vida, e não se pense que o senhor sofre de algum défice cognitivo, nada disso, pelo menos a testemunhar pelas funções que exerce. Por esta razão, até lhe disse que pessoas com debilidade intelectual não só compreendem a situação como tentam corrigi-la, seguindo os conselhos do médico. - Será que o senhor é um suicida lento? Perguntei-lhe. Ainda tentei saber se era uma questão pessoal, porque qualquer pessoa tem o direito a se tratar ou não, ou se era uma forma de negação da doença. Não tive sucesso. Fiz-lhe ver os problemas que iria acarretar para a família - aqui ainda fui capaz de o obrigar a dizer que era casado e que tinha filhos, mas, depois, nada. Deixou-se examinar sem qualquer obstáculo e, no fim, fiz uma derradeira tentativa, dizendo-lhe que não lhe ia desejar um bom ano, mas um sincero voto de que consultasse o seu médico assistente e seguisse os seus conselhos. Para reforçar o meu voto, socorri-me da minha pessoa, coisa que raramente faço, penso que é a segunda vez na minha vida, dizendo-lhe que sofria da mesma doença, que fazia medicação, dieta e exercício e sentia-me bem, sem problemas de maior. Nada. É a primeira vez que me acontece algo de semelhante. Ao fim de 36 anos de clínica ainda há quem consiga surpreender-me. Também lhe disse que da próxima vez que o visse não ia incomodá-lo mais.
No momento em que o senhor ia a sair, despedindo-se com as suas inconfundíveis trombas: - Então, bom dia! Pensei: - Mau começo do ano. Só espero que fique por aqui. Infelizmente não ficou, porque, passados uns minutos, um telefonema de uma familiar anunciava, com uma voz muito triste, o seu despedimento. Mais uma a engrossar o bando de desempregados e com futuro incerto. Pobre gente, pobre país! Ainda estive tentado a perder o apetite, mas a raiva, com que me espetei à hora do almoço, obrigou-me a comer e a pensar que ainda tenho de lutar...
O senhor sofre de diabetes, e, como me lembrei das recomendações e cuidados que lhe fiz, a propósito, em 2009, perguntei-lhe, com a maior naturalidade: - Então, o senhor tem controlado como deve ser a sua diabetes, e tem feito medições diárias do açúcar no sangue? Ao fazer estas perguntas, estava à espera de respostas positivas que fossem de encontro ao meu natural anseio. Mas o senhor não respondeu à primeira, pelo que tive de repetir mais do que uma vez. Comecei, então, a sentir algum desconforto, que me alertou para eventuais respostas negativas. Só depois de muita insistência, e quando as minhas palavras já revelavam evidente frustração, é que o senhor respondeu, “Tenho-me descuidado um pouco”. Ao dizer isto, as suas “trombas” ingurgitaram-se, revelando, sem ter necessidade de dizer mais nada, que não tem ido ao médico, nem feito dieta ou qualquer tratamento. Fiquei estarrecido com a resposta e com o silêncio. Na última consulta, o senhor já sofria de diabetes há mais de dezassete anos e, agora, com mais um ano cima, estava a atingir a segunda década da doença. Perguntei-lhe se sabia quais os riscos que corria. Respondeu-me com um silêncio angustiante. Só após alguma insistência, é que disse: - Sim, já ouvi dizer alguma coisa. Foi então que lhe expliquei, detalhadamente, os riscos que estava a correr, sempre de trombas, sem dúvida o maior trombudo que já vi em toda a minha vida, e não se pense que o senhor sofre de algum défice cognitivo, nada disso, pelo menos a testemunhar pelas funções que exerce. Por esta razão, até lhe disse que pessoas com debilidade intelectual não só compreendem a situação como tentam corrigi-la, seguindo os conselhos do médico. - Será que o senhor é um suicida lento? Perguntei-lhe. Ainda tentei saber se era uma questão pessoal, porque qualquer pessoa tem o direito a se tratar ou não, ou se era uma forma de negação da doença. Não tive sucesso. Fiz-lhe ver os problemas que iria acarretar para a família - aqui ainda fui capaz de o obrigar a dizer que era casado e que tinha filhos, mas, depois, nada. Deixou-se examinar sem qualquer obstáculo e, no fim, fiz uma derradeira tentativa, dizendo-lhe que não lhe ia desejar um bom ano, mas um sincero voto de que consultasse o seu médico assistente e seguisse os seus conselhos. Para reforçar o meu voto, socorri-me da minha pessoa, coisa que raramente faço, penso que é a segunda vez na minha vida, dizendo-lhe que sofria da mesma doença, que fazia medicação, dieta e exercício e sentia-me bem, sem problemas de maior. Nada. É a primeira vez que me acontece algo de semelhante. Ao fim de 36 anos de clínica ainda há quem consiga surpreender-me. Também lhe disse que da próxima vez que o visse não ia incomodá-lo mais.
No momento em que o senhor ia a sair, despedindo-se com as suas inconfundíveis trombas: - Então, bom dia! Pensei: - Mau começo do ano. Só espero que fique por aqui. Infelizmente não ficou, porque, passados uns minutos, um telefonema de uma familiar anunciava, com uma voz muito triste, o seu despedimento. Mais uma a engrossar o bando de desempregados e com futuro incerto. Pobre gente, pobre país! Ainda estive tentado a perder o apetite, mas a raiva, com que me espetei à hora do almoço, obrigou-me a comer e a pensar que ainda tenho de lutar...
Caro Doutor Massano
ResponderEliminarA nossa indiferença, o nosso comodismo e conformismo, lançou-nos para esta desgraça. Desgraça que afecta novos e velhos, gente com pouca formação, mas também mestres, licenciados e doutorados.Eu por mim depois de ver o trabalho notável de colegas seus em S.Tomé, pretendo pegar no meu mestrado e atirar-me para os primórdios naquele lugar. Pelo menos ali um recomeço fará mais sentido do que neste lugar infectado da indiferença e desumanidade da posse egoísta de muitos de nós.
Claro que tem que lutar, qual é a sua dúvida? Não é um trombudo zangado com a vida que o pode desmoralizar, o homem lá teria a sua revolta e assim de manhã cedo ainda não teria tido espírito para disfarçar. O ambiente geral não ajuda, de facto.
ResponderEliminarHá pessoas que parecem ter nascido já trombudas, passam uma vida inteira mal humoradas. Será que o pobre homem foi ou é trombudo em todos os momentos do dia? Pobre mulher, digo eu! : )
ResponderEliminarE quanto ao seu espírito lutador, caro Prof, não tem que fugir... é o seu karma!
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderEliminarPaulo
ResponderEliminarAlguns comentários. Primeiro, é falso que os seres humanos viveram milénios sem médicos. É falso, porque ser-se médico é tão velho como ser-se humano, ou será que o senhor só contabiliza "médicos" a partir do momento em começou a haver licenciatura em medicina? Quanto ao segundo comentário, faça o que entender com a sua saúde, é algo que não me diz respeito, obviamente. Quanto ao sermão, dispenso o seu, por motivos mais do que óbvios, até, porque a sua formação, superior, não deverá compatibilizar-se com “padralhadas” vinda de padres ou de “médicos.” Vou continuar com os meus “sermões”, porque, ao contrário do que julga, têm sido úteis a inúmeras pessoas preservando-lhes o “miolo” da vida, contribuindo para o seu bem-estar e dos familiares.
De facto, o velho ditado segundo o qual “de médico e de louco todos temos um pouco” é muito pertinente, sobretudo no que toca à segunda parte. E mais, essa de contar histórias pessoais ou de conhecidos para reforçar certas posições é facilmente rebatível com outras tantas ou mais numerosas em sentido oposto, e, no caso de ser-se médico, é assunto que não falta.
Quanto à matéria de repugnância, seja de que tipo for, nunca a senti e nem sei o que é outros “sabem” sobre isso. Já passei por inúmeras situações, complexas, difíceis, dramáticas, inesperadas, traumatizantes e, até, impensáveis e nunca a senti.
Não me surpreende que tivesse uma reação deste tipo ao meu texto. Não é a primeira vez que o faz neste registo, sempre que abordo esta temática. Enfim, todos nós somos meio estereotipados, e cada um à sua maneira. Continue com a sua que eu vou continuar com a minha, disso não tenha qualquer dúvida. Entretanto vou preferir andar do lado de cá do espelho, o mundo real, e deixo para outros o mundo virtual.
A “repugnância é perante o pôr em causa todo um mundo que são também muitas certezas”. Mas quem é que tem certezas? Eu? Como? Por ter dado alguns conselhos a um “trombudo” e transmitir-lhe quais os riscos que corre, em termos probabilísticos? A minha profissão baseia-se em probabilidades, em muitas incertezas, e nem por isso, nós, os médicos, deixamos de decidir, sempre que somos chamados. Não sei qual é a sua profissão, desconheço, mas gostaria de a comparar neste aspeto. Deveria ser muito interessante.
Não fiquei particularmente satisfeito perante a sua afirmação “parece que o meu amigo começou bem o ano mas perante a possibilidade de passar para o outro lado do espelho…” Não quero adjetivá-la, porque considero-a de mau gosto, porque logo a seguir a este evento, que me deu para partilhar com os meus colegas do blogue e comentadores, tive uma notícia muito triste que me afectou particularmente. Por isso, o ano não começou nada bem, quer em termos profissionais quer noutros aspetos. Recordo que há dois anos, também numa troca de impressões, fiquei tentado a não partilhar mais os meus textos. Depois reconsiderei e, apesar de alguns altos e baixos, lá fui escrevendo. Vou continuar, com toda a certeza, mas tenho de pensar como. O início do ano é sempre uma boa época para repensarmos na nossa vida. E é o que vou fazer. Por isso agradeço-lhe, sinceramente, o seu comentário, Pensando bem o seu texto poderá ser-me muito útil, muito mais do que esperaria. Saber tirar proveito de algo que nos atinge, e que não nos agrada, é um sinal de maturidade que nos pode ajudar a alcandorar a outros objetivos.
Um bom ano e votos de muita saúde.
Salvador Massano Cardoso
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderEliminarNão se preocupe, no fundo, no fundo, isto é apenas resultado da golada de champanhe que deve ter tomado (em pecado) às 00:00 de 1.1.2011 :) (punição divina, passa rápido)!
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