Tenho, por vezes, necessidade de fugir ao trabalho; outras, consigo saborear estreitos períodos sem responsabilidades sociais e ainda liberto a família da minha presença. Nestas alturas, faço os possíveis por medir o tempo sem tempo, numa espécie de viagem ao limbo. Depois, navego sem rumo ou com objetivo específico de encontrar algo inesperado e que me dê prazer. Muitas vezes não encontro nada, mas também não recordo esses momentos. Em contrapartida, tenho histórias e vivências de achados que me marcaram vivamente. Andam lá por casa ao deus-dará, como é meu hábito, e que me obrigam a ouvir das boas, de quando em vez. Outras perdem-se, por culpa minha, ou então não são mais do que frutos de um caos permanente, que, posteriormente, me premeia com reencontros, despertando velhas sensações, sempre diferentes e que alimentam a fome das emoções.
Acabei o dia mais cedo e vi que tinha pelo menos duas preciosas horas para navegar no nada sem nada que me inquietasse. O ideal para procurar o inesperado. Estava perto de uma loja de velharias, onde já tinha ido algumas vezes. Entrei, saudei o dono, reparei que tinha dado uma nova orientação na desorganização típica destes locais e comecei a procurar algo que me chamasse a atenção. Estava a acabar de dar a primeira volta quando vi uma pequena caixa de resmas de papel, meio desconchavada, com papéis e mais papéis, no meio de louças, jarras de vidro, cerâmica diversa, candeeiros, velhos gira-discos, e pensei: - O homem deve querer isto limpo e, para o efeito, lembrou-se de colocar um caixote de papelão. Mas podia arranjar uma coisa mais decente para as pessoas deitarem fora os seus papéis. Mas quem é que se lembra de deitar papéis no caixote numa loja destas? Não liguei mais e continuei na minha exploração sem encontrar nada de especial. Nada. Dei a segunda volta, não fosse o diabo tecê-las e perder algo que me tivesse escapado, quando volto a embirrar com o caixote. Olho atentamente e consigo vislumbrar muitos envelopes com marcas de anos, manchados, com letras desfeitas pela humidade ou algum banho de água, carregados de pó e cadáveres de aranhas à mistura. Retirei o primeiro envelope, tinha o nome de uma mulher, não estava rasgado, quem o abriu cortou a aresta cirurgicamente e pensei de imediato: - Uma carta de amor! Retirei as folhas apergaminhadas, com cuidado, desfraldei-as e comecei a ler; era de facto uma carta de amor. Bem escrita, deliciosa, ternurenta e eivada de paixão. O autor descrevia o seu dia-a-dia, o sofrimento da ausência e a sua doce loucura amorosa. Para escrever daquela maneira só mesmo um apaixonado. Rebusquei as restantes, muitas em mau estado, dirigidas sempre à amada, em diferentes lugares. Muitas cartas, à mistura com folhas, pagelas, cartões de natal, marcadores de livros, tudo embebido no pó de décadas, comprovando o seu efeito alérgico, porque não consegui evitar alguns espirros. Ainda retirei uma segunda do molhe, do fundo e não resisti a lê-la. Escrita no decurso de uma viagem de comboio. Tinha comprado a carta na estação e estava agora a terminá-la à pressa porque o dono da esferográfica ia sair na paragem seguinte. Pedia-lhe desculpa pela escrita, meio tremelicada, a ponto de não se perceber bem a assinatura. Presumo que não terá sido só o dançar do comboio o responsável, mas também o tremor da paixão. Agarrei na caixa, que se desmembrou, e com alguma dificuldade, e embaraço, aproximei-me do lojista. Olhou para mim, curioso por trazer a caixa nos braços e, ao pespegar-lhe em frente, perguntei: - Quanto quer por isto? Desconfiado, meteu as mãos nos envelopes, retirando-as logo em seguida, sujas, como é óbvio, e propôs-me um preço. - O quê? Refilei. Coisa que não tenho hábito fazer. Respondeu de imediato, justificando-se com os selos... - Selos? Estes? Oh! homem fique com os selos, a mim só me interessa as cartas. Deve ter-me achado meio maluco, pensando por que razão eu quereria aquilo, velho, a desfazer-se, cheio de humidade e de pó. Baixou para 5 euros! E ainda deverá ter-se ficado a rir.
Levei-as para Coimbra. Estão na bagageira do meu carro, à espera de um destino.
Já encontrei muitas coisas nas velharias, mas é a primeira vez que me deparo com cartas de amor. “Cartas de amor, Quem as não tem, Cartas de amor, Pedaços de dor, Sentidas de alguém.”
Antes de abalar, passei pela morada da destinatária de há cerca meio século. Cheguei a Coimbra e passei pela rua onde também viveu.
Tenho de as devolver. Sei que está viva. Independentemente do que tenha acontecido, e levado a esta exposição, a amada é a legítima proprietária de tantas emoções, sentimentos, esperanças, desejos e alegrias numa época em que as mesmas viajavam mais lentamente, mas com muito amor. São pedaços de alma perdidos que têm de encontrar repouso, e eu só vou descansar quando lhes der destino. Se a amada as aceitar... enviar-lhas-ei acompanhadas de um ramo de flores.
Sou, temporariamente, “proprietário” de uma paixão. Prometo que não irei ler mais nenhuma carta. Afinal, cartas de amor, quem as não tem?
Acabei o dia mais cedo e vi que tinha pelo menos duas preciosas horas para navegar no nada sem nada que me inquietasse. O ideal para procurar o inesperado. Estava perto de uma loja de velharias, onde já tinha ido algumas vezes. Entrei, saudei o dono, reparei que tinha dado uma nova orientação na desorganização típica destes locais e comecei a procurar algo que me chamasse a atenção. Estava a acabar de dar a primeira volta quando vi uma pequena caixa de resmas de papel, meio desconchavada, com papéis e mais papéis, no meio de louças, jarras de vidro, cerâmica diversa, candeeiros, velhos gira-discos, e pensei: - O homem deve querer isto limpo e, para o efeito, lembrou-se de colocar um caixote de papelão. Mas podia arranjar uma coisa mais decente para as pessoas deitarem fora os seus papéis. Mas quem é que se lembra de deitar papéis no caixote numa loja destas? Não liguei mais e continuei na minha exploração sem encontrar nada de especial. Nada. Dei a segunda volta, não fosse o diabo tecê-las e perder algo que me tivesse escapado, quando volto a embirrar com o caixote. Olho atentamente e consigo vislumbrar muitos envelopes com marcas de anos, manchados, com letras desfeitas pela humidade ou algum banho de água, carregados de pó e cadáveres de aranhas à mistura. Retirei o primeiro envelope, tinha o nome de uma mulher, não estava rasgado, quem o abriu cortou a aresta cirurgicamente e pensei de imediato: - Uma carta de amor! Retirei as folhas apergaminhadas, com cuidado, desfraldei-as e comecei a ler; era de facto uma carta de amor. Bem escrita, deliciosa, ternurenta e eivada de paixão. O autor descrevia o seu dia-a-dia, o sofrimento da ausência e a sua doce loucura amorosa. Para escrever daquela maneira só mesmo um apaixonado. Rebusquei as restantes, muitas em mau estado, dirigidas sempre à amada, em diferentes lugares. Muitas cartas, à mistura com folhas, pagelas, cartões de natal, marcadores de livros, tudo embebido no pó de décadas, comprovando o seu efeito alérgico, porque não consegui evitar alguns espirros. Ainda retirei uma segunda do molhe, do fundo e não resisti a lê-la. Escrita no decurso de uma viagem de comboio. Tinha comprado a carta na estação e estava agora a terminá-la à pressa porque o dono da esferográfica ia sair na paragem seguinte. Pedia-lhe desculpa pela escrita, meio tremelicada, a ponto de não se perceber bem a assinatura. Presumo que não terá sido só o dançar do comboio o responsável, mas também o tremor da paixão. Agarrei na caixa, que se desmembrou, e com alguma dificuldade, e embaraço, aproximei-me do lojista. Olhou para mim, curioso por trazer a caixa nos braços e, ao pespegar-lhe em frente, perguntei: - Quanto quer por isto? Desconfiado, meteu as mãos nos envelopes, retirando-as logo em seguida, sujas, como é óbvio, e propôs-me um preço. - O quê? Refilei. Coisa que não tenho hábito fazer. Respondeu de imediato, justificando-se com os selos... - Selos? Estes? Oh! homem fique com os selos, a mim só me interessa as cartas. Deve ter-me achado meio maluco, pensando por que razão eu quereria aquilo, velho, a desfazer-se, cheio de humidade e de pó. Baixou para 5 euros! E ainda deverá ter-se ficado a rir.
Levei-as para Coimbra. Estão na bagageira do meu carro, à espera de um destino.
Já encontrei muitas coisas nas velharias, mas é a primeira vez que me deparo com cartas de amor. “Cartas de amor, Quem as não tem, Cartas de amor, Pedaços de dor, Sentidas de alguém.”
Antes de abalar, passei pela morada da destinatária de há cerca meio século. Cheguei a Coimbra e passei pela rua onde também viveu.
Tenho de as devolver. Sei que está viva. Independentemente do que tenha acontecido, e levado a esta exposição, a amada é a legítima proprietária de tantas emoções, sentimentos, esperanças, desejos e alegrias numa época em que as mesmas viajavam mais lentamente, mas com muito amor. São pedaços de alma perdidos que têm de encontrar repouso, e eu só vou descansar quando lhes der destino. Se a amada as aceitar... enviar-lhas-ei acompanhadas de um ramo de flores.
Sou, temporariamente, “proprietário” de uma paixão. Prometo que não irei ler mais nenhuma carta. Afinal, cartas de amor, quem as não tem?
Acabo de ler o seu texto com prazer. Mas a intenção de as enviar à destinatária "begs a question": As cartas foram enviadas, têm selo e foram abertas. Se a destinatária está viva, porque se separou das cartas?
ResponderEliminarFico à espera "with trepidation" confesso, da segunda parte da história...
Caged Albatross
ResponderEliminarAcabei de falar com a senhora depois de ter conseguido contactar com a filha. Foi através dela que soube que eu estava na posse do espólio epistolar. Como já tinha o meu número de telemóvel, ligou meio constrangida, mas à medida que lhe ia explicando como as adquiri, senti que ia perdendo o receio. Tudo muito simples. Foi aluna interna de um colégio de freiras desde os nove anos, até se licenciar. Os pais estavam fora do país. Uma tia era a responsável pela sua “criação”, e era na casa desta que passava as férias, o único lugar onde poderia “esconder” as cartas de namoro. A tia desapareceu e com ela os haveres foram distribuídos pelos descendentes. Nunca conseguiu saber qual foi o destino das cartas. Ainda hoje, guarda as de casada, que o marido lhe enviava de África, durante a guerra. Ao longo dos anos tem pensado muito nestas cartas, onde andarão ou o que é que lhes terá acontecido. Agora, nem quer acreditar no que está a acontecer. Disse-me, meio emocionada, que pensava que estas coisas só aconteciam nos filmes. Respondi-lhe que também acontecem na vida real. No final, agradeceu-me novamente, dizendo que nada acontece por acaso... Achei interessante a sua expressão: “Só pode ser a mão da Divina Providência”! Só pode ser! Sorri, mas a senhora não viu.
Ha poucos dias, escutei na rádio enquanto conduzia, alguém que explicava o processo que conduz à "capacidade" de profetizar.
ResponderEliminarPor aquilo que consegui perceber, tudo se passa a nível cognitivo, sendo essa capacidade, adquirida gradualmente, à medida que o "profeta" vai conseguindo esvaziar-se do mundo físico e encher-se do mundo espiritual.
Ah quem ache tudo isto, uma enorme balela. A mim, parece-me possível desde que se possua esse desejo de nos enchermos de nada. Difícil é conseguir-se esse isolamento do mundo material, como me parece que o caro Professor Massano Cardoso, está a conseguir, com muito sucesso.
Parabéns por mais este maravilhoso texto!
Que história bonita...
ResponderEliminarWe were born to tread the earth as angels,
ResponderEliminarto seek out heaven this side of the sky.
But they who race above shall
stumble in the dark, and fall from grace.
Then love alone can make the fallen angel rise.
For only two together can enter Paradise
Esta estória só poderia ter acontecido com o Professor Salvador Messano Cardoso! Há uma razão por que as tais cartas continuavam naquele amontoado de papéis.
ResponderEliminarNome completo, caro Prof, a dar mais ênfase ã minha frase exclamativa.
Quando li o título apercebi-me que não poderia esperar, peguei no prato de sushi e os respectivos pauzinhos e aqui estive a deliciar-me com o texto esquecendo-me de saborear o sushi como merecia! Mas valeu a pena!
"Massano"! Desculpe...
ResponderEliminarSó hoje li esta bela história e é claro que também fiquei em suspenso com a ideia do Massano Cardoso procurar a destinatária de tão grande paixão! Que fim tão bonito, parece mesmo um filme mas daqueles cada vez mais raros, os que acabam bem! Caro amigo, continue por favor a explorar esses alfarrabistas, e faça-nos aproveitar dos tesouros que aí encontra quem sabe ver sem ser só com os olhos.
ResponderEliminarCaro Professor Massano Cardoso
ResponderEliminarQue linda história, que final tão feliz! Acho que realmente "nada acontece por acaso...".
Que bom partilhar connosco as suas "aventuras". Obrigada.
Obrigado pela segunda parte da história, um "denouement" inesperado e afinal notável pela sua simplicidade... Para mais colorido com os costumes da sociedade portuguesa e os acontecimentos duma época conturbada. Um romance inteiro em poucos parágrafos. Se me permite, uma última curiosidade, que só se justifica em relação à sofisticação da sua escrita (a qual reflecte sempre o escritor...): que flores enviou à Senhora juntamente com as cartas?
ResponderEliminarAlbatross
ResponderEliminarJá enviei as cartas para casa da filha, porque a senhora parte amanhã, ou sábado, para o Brasil, a fim de passar uma temporada com o pai que tem 91 anos. Por isso, não as enviei, mas como a senhora manifestou interesse em conhecer-me pessoalmente, nessa altura, quando regressar, entregar-lhe-ei as flores. Não sendo especialista nesta matéria, recorri a entendidas que me sugeriram várias, mas fiquei com a ideia de que rosa chá ou rosa champagne não seria despropositado...
Todos fazemos o mesmo, para certos assuntos, pergunta-se a uma mulher (ou mais)... A sua escolha deve estar certa, eu obtive o mesmo conselho: rosa chá (tender memories).
ResponderEliminarUm bom final de história. Fico à espera da próxima.